Zika: como estão as crianças com microcefalia, 10 anos após a epidemia
Crédito, Felix Lima/BBC News Brasil
- Author, Camilla Veras Mota
- Role, Enviada da BBC News Brasil a Maceió, Monteirópolis e Arapiraca
Anne Caroline Rosa ajeita o filho Moisés no colo e lhe dá um cheirinho no pescoço, enquanto sua mais nova, Maria, faz cafuné na cabeça do irmão.
O menino de 9 anos direciona o olhar para as duas e esboça um sorriso. Moisés não fala e não se movimenta.
Ele é uma das quase duas mil crianças que nasceram com microcefalia por zika entre 2015 e 2016 no Brasil, filhos de mulheres que foram infectadas pelo vírus durante a gestação.
Transmitida pelo mesmo mosquito da dengue, a zika naquela época se espalhou por dezenas de territórios e fez do país, que se preparava para sediar uma Olimpíada, o epicentro da primeira grande epidemia já registrada da doença.
A proliferação de casos levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar em fevereiro de 2016 emergência de saúde pública de importância internacional, alerta que se estendeu até novembro daquele ano.
No Brasil, onde o mundo passou meses acompanhando com apreensão o avanço da doença, o fim da emergência nacional foi decretado seis meses depois, em maio de 2017.
Do sofá da sala de casa, um imóvel de dois quartos no andar térreo de um residencial do Minha Casa Minha Vida com 4 mil apartamentos em Maceió (AL), Rosa sobe a camisa de Moisés e mostra o tubo que sai da barriga do menino.
Ele passou por uma cirurgia de gastrostomia em 2022 porque tinha cada vez mais dificuldade de se alimentar pela boca.
A microcefalia é apenas uma das sequelas deixadas pela passagem do vírus no cérebro dos bebês quando estão no ventre das mães.
A síndrome congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ) é caracterizada por um espectro de alterações: problemas cardíacos, nas articulações, dificuldade de coordenar a mastigação e a deglutição.
Com a fala rápida e a voz cheia de energia, Rosa diz que já perdeu as contas das vezes em que a sonda do filho foi objeto da curiosidade de estranhos na rua.
“A gente anda muito de ônibus, às vezes está muito quente, tenho que dar água, e o povo fica olhando…”
Para dar água a Moisés, ela encaixa um funil na ponta do tubo e derrama o líquido, que vai direto para o estômago da criança.
“Tem uns que mexem e falam assim: ‘Bichinho…’. Eu digo: ‘Bichinho não, viu? Ele é uma criança. Tem a deficiência dele, mas não é ‘bichinho’, não’. Eu não abaixo a cabeça. Boto um sorriso no rosto, beijo ele e pronto.”
Crédito, Felix Lima/BBC News Brasil
Mulheres, as principais vítimas do zika
Rosa é uma das mulheres afetadas pela zika que a reportagem visitou em Alagoas dez anos depois do surto de microcefalia, que se concentrou especialmente no Nordeste e em famílias com poucos recursos.
Em uma década, cada uma viveu trajetórias singulares, mas não faltaram experiências parecidas, que acabaram fazendo delas um coletivo e as aproximaram — literalmente, em alguns casos.
Abraçando os cuidados dos filhos, a maioria não encontrou alternativa a não ser parar de trabalhar ou de estudar. Muitas sobrevivem com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) — salário mínimo pago, nesse caso, às pessoas com deficiência em condição de pobreza — e colecionam relatos de brigas na Justiça para garantir de cirurgias de média e alta complexidade a cadeiras de rodas, medicamentos e latas de leite.
As mães de crianças com síndrome congênita pelo zika de certa forma foram virando especialistas na condição dos filhos, se apropriaram dos termos da medicina que mal conheciam e hoje falam com desenvoltura sobre sondas gástricas, sobre aspiração traqueal e sobre neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de se adaptar após sofrer uma lesão.
Quase 300 já perderam os filhos, conforme os dados mais recentes do governo, de 2024, e pouco mais de 1,5 mil estão vendo as crianças se aproximarem dos 10 anos de vida, em algumas situações com melhora das sequelas e em tantas outras com piora no quadro de saúde — como é o caso de Moisés, que hoje não fica mais em pé e tem as mãos atrofiadas.
Muitas foram abandonadas pelos maridos. Os relatos são cheios de momentos de ansiedade, depressão e solidão.
Rosa perdeu os pais quando era criança, não tem familiares próximos com quem possa contar e se separou do marido quando descobriu que ele estava “aprontando”.
Ela conta que o pai das crianças dá pouca assistência e praticamente não leva os filhos para passear, apesar dos pedidos insistentes dela. Rosa acha que ele tem vergonha de andar com Moisés em público.
“Saio com ele de ônibus para cima e para baixo, vou para o shopping, levo para a piscina, levo para a praia”, diz Rosa.
“A mãe tem que enfrentar o preconceito, que é em todo canto que tem, né?”, diz, olhando para Moisés. “Eu não tenho apoio de ninguém”, ela continua. “Sou mãe solo, vivo para os dois.”
“Ai, não vou mentir, eu já arrumei namorado, mas a maioria dos homens, quando vê que tem uma criança que depende de você… é muito diferente”, relata a alagoana.
“E eu já deixo bem claro que, se ele quiser ficar comigo, vai ter que aceitar meus filhos também.”
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‘Elas são meu esteio’
Quando precisa, Rosa recorre a duas vizinhas, a pernambucana Rute Freires e Lenice França, ambas também mães de crianças com síndrome congênita pelo zika, Tamara e Enzo.
Unidas pelo zika, as três se tornaram melhores amigas e a rede de apoio que nunca tiveram.
Foi por meio dela que Freires teve a chance de retomar os estudos e concluir o ensino médio. No último ano, França e Rosa cuidaram de Tamara enquanto ela cursava o ensino noturno.
“Elas são meu esteio”, diz Freires, que agora planeja estudar Pedagogia e sonha em um dia comprar um carro.
França aprendeu a manusear a sonda de gastrostomia para ajudar as amigas. Seu filho Enzo é uma das crianças com síndrome congênita pelo zika que falam, têm mobilidade e alguma autonomia.
Por essa razão, ela nunca pensou que alimentaria uma criança por sonda: “Eu tremia só de pensar, mas aprendi”.
Crédito, Felix Lima/BBC News Brasil
‘É a gente que segura uma a mão da outra’
No residencial em que as três moram, são quase 15 as mulheres com filhos afetados pela síndrome congênita pelo zika. Não é coincidência: todas fazem parte da Associação das Famílias de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal), por meio da qual elas se organizaram para pleitear os apartamentos.
Desde 2009, a legislação dá prioridade de acesso ao Minha Casa Minha Vida a famílias com pessoas com deficiência e, em 2016, uma portaria do Ministério das Cidades passou a priorizar as famílias com crianças com microcefalia.
“O nosso intuito foi que elas ficassem uma perto na outra para se ajudarem, para serem uma rede de apoio, que a grande maioria não tem”, diz Alessandra Hora, fundadora e presidente da associação.
“Eu falo que nós, mulheres, a gente é quem aprendeu a se mobilizar e é a gente que segura a mão da outra”, diz ela, que abraçou a criação do neto Erik, afetado pela síndrome congênita pelo zika, depois de perder o filho assassinado.
Para as que não estão geograficamente próximas, a tecnologia encurta a distância. A maioria das mulheres se comunica diariamente em grupos pelo WhatsApp, tiram dúvidas umas com as outras, desabafam.
“Várias mães já vieram conversar comigo de madrugada por questão de suicídio. E a gente conversando dá reviravolta, né, tira isso da cabeça”, pontua Alessandra.
A reportagem da BBC News Brasil a encontrou na sede da associação, no bairro Benedito Bentes, também na periferia de Maceió. A Afaeal hoje reúne 425 associados, entre familiares de crianças com microcefalia pela síndrome congênita do zika e por outras causas.
O imóvel amplo, com sala de fisioterapia e serviço de psicólogo, começou como um casebre sem vidro na porta, que molhava quando chovia. Foi emprestado pela mãe de Alessandra, uma senhorinha pequena que anda pela casa com o passo apressado distribuindo sorrisos.
A ideia de montar uma associação nasceu em 2017, quando Alessandra e outras mulheres sentiram que o grupo de apoio formado pela Secretaria Municipal de Saúde para dar apoio às famílias na fase mais aguda da epidemia de zika não estava dando o suporte de que precisavam.
Rute Freires lembra, por exemplo, que chegaram a negar atendimento à filha, Tamara, porque elas não eram naturais de Alagoas.
Com o tempo, a associação construiu contatos com médicos e especialistas da área e passou a ter suporte de organizações como a Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que foca em políticas públicas para promoção da cidadania, igualdade e direitos humanos. Alessandra foi alfabetizada nos meandros do terceiro setor — e da política.
“A gente faz o papel do Estado quando ele não faz, então a gente precisa estar dentro do Orçamento [público], a gente precisa saber como briga, como cobra”, afirma.
A associação faz parte de pelo menos quatro conselhos municipais e um estadual, conseguiu uma van financiada pelo Estado para recolher as doações de alimentos oferecidas por feirantes e chegou a captar recursos de emendas parlamentares de deputados estaduais e vereadores de Maceió.
Alessandra chegou a se candidatar pelo União Brasil a deputada estadual em 2022 “sabendo que ia perder, para dar visibilidade à associação”.
E, em janeiro, uma reviravolta a levou a Brasília, onde ela vinha fazendo política com líderes de redes de mulheres com “crianças da zika” de Estados como Ceará, Tocantins, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Crédito, Felix Lima/BBC News Brasil
Depois de dez anos tramitando no Congresso, um projeto de lei que previa reparo financeiro às famílias de crianças com síndrome congênita pelo zika foi aprovado em dezembro de 2024, mas vetado no mês seguinte pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O PL 6064/23 previa uma indenização de R$ 50 mil e o pagamento de uma pensão vitalícia equivalente ao teto da Previdência às crianças com síndrome congênita pelo zika.
Criticado, o governo federal argumentou ter substituído o PL por uma medida provisória que previa uma indenização única de R$ 60 mil, regulamentada por meio de portaria no último dia 20 de maio.
À BBC News Brasil, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência declarou que o projeto foi vetado “por não obedecer à Lei de Diretrizes Orçamentárias”, argumentando que ele criaria “despesa obrigatória de caráter continuado sem a devida estimativa de impacto orçamentário e financeiro, identificação da fonte de custeio, indicação de medida de compensação e sem a fixação de cláusula de vigência para o benefício tributário”.
As famílias consideram o valor injusto e insuficiente e, reunidas em torno da Unizika, que reúne associações de familiares de crianças com síndrome congênita pelo zika, vinham se encontrando nos últimos meses com dezenas de parlamentares de todo o espectro ideológico, da deputada Taliria Petrone (PSOL-RJ) às senadoras Mara Gabrilli (PSD-SP) e Damares Alves (Republicanos-DF), em busca de apoio para derrubar o veto presidencial ou para costurar um novo projeto de lei que se aproximasse do anterior.
Elas também tentaram, sem sucesso, reuniões com o presidente, o vice-presidente e a primeira-dama. A reportagem questionou os gabinetes sobre os pedidos de audiência e só teve retorno sobre o assunto da vice-presidência, que afirmou ter recebido representantes da Unizika em 2023 e disse estar analisando o pedido feito neste ano para verificar quando seria possível atendê-lo.
Crédito, Reprodução/Instagram
‘É um tratamento caro’
A maioria das mães sabe exatamente o que faria com o dinheiro. Anne Caroline Rosa, por exemplo, que hoje vive com o salário mínimo do BPC, começaria contratando um plano de saúde para Moisés.
Também colocaria um ar condicionado no quarto dele e providenciaria para ele novas órteses, que são dispositivos ortopédicos para alinhar melhor o corpo.
“A maioria dessas crianças, elas estão ficando atrofiadas. A gente dá entrada numa órtese do pé, da mão e, quando vai sair, já não dá mais na criança”, ela diz, queixando-se da demora no Sistema Único de Saúde (SUS).
“É um tratamento que custa caro”, diz a infectologista Mardjane Lemos, que diagnosticou os primeiros casos de síndrome congênita pelo zika em Alagoas em 2015.
O dano causado pelo vírus no cérebro dos bebês é irreversível, mas, segundo ela, é possível garantir qualidade de vida para as crianças com um acompanhamento de especialistas, por exemplo, em fisioterapia, fonoaudiologia, odontologia, terapia ocupacional.
“São muitos profissionais envolvidos, tem uma rede de cuidados muito intensa. Não tem plano de saúde que oferte tudo que uma criança dessa necessite — no SUS, então, é o básico”, ela completa, falando à reportagem no pequeno jardim nos fundos do Hospital de Doenças Tropicais de Maceió, onde trabalha.
E esses cuidados, acrescenta a médica, são fundamentais para determinar o grau de comprometimento da criança, que também depende do próprio dano provocado pelo vírus.
Lemos diz que é difícil estimar uma expectativa de vida, mas que muitas têm morrido antes do que se esperava por problemas que seriam contornáveis, “porque não tiveram uma pneumonia diagnosticada a tempo, porque não conseguiram acesso a uma cirurgia de gastrostomia”.
Na visão da especialista, o Estado errou em não dar “acolhimento rápido e oportuno a essas crianças, para garantir que elas tivessem estimulação adequada e conseguissem ter uma vida mais próxima do normal possível”, e por não proporcionar condições para que as mães pudessem voltar a estudar ou ao mercado de trabalho.
Falhou também, ela prossegue, em prevenir o surto de zika que deu início a toda essa história dez anos atrás, com a falta de saneamento básico e de políticas robustas para controlar o vetor de transmissão, que é o mosquito.
Crédito, Felix Lima/BBC News Brasil
Perguntas sem resposta
“O grande boom de casos parece ter cessado espontaneamente. Então, isso leva à teoria de que há alguma imunidade natural. Quanto tempo ela dura? Ela é real? Nós não sabemos”, pontua Lemos.
Essas são algumas entre muitas perguntas que, dez anos depois, seguem sem resposta.
Outra questão importante ainda em aberto é por que o Nordeste foi mais afetado.
O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, de março de 2024, fala que 1.828 casos de síndrome congênita pelo zika foram confirmados no país entre 2015 e 2023, sendo 1.380 (75,5%) deles no Nordeste. Outros 2.877 casos permanecem em investigação, sendo 1.898 (65,9%) de nascimentos entre 2019 e 2023.
Outras estudam uma possível relação com a contaminação da água de reservatórios durante a seca severa de 2015 por bactérias que produzem uma neurotoxina que pode ter potencializado a ação do vírus zika no cérebro dos bebês.
Especialistas como a biomédica Patrícia Garcez e o neurocientista Stevens Rehen, que estiveram à frente dessas duas investigações, disseram à BBC News Brasil acreditar que a resposta possa ser uma combinação desses e de outros fatores.
“A gente sabe um pouquinho mais agora que tem fatores ambientais que podem estar contribuindo para essa maior prevalência, mas a gente não entende completamente como eles estão contribuindo. E são poucos os estudos”, afirma Garcez, que atualmente dá aulas na King’s College London, na Inglaterra.
Mardjane Lemos concorda: “Sinto que algumas lacunas de resposta estão muito atreladas ao fato de que tivemos uma população afetada que é negligenciada por políticas públicas, que não estão nos nichos de pesquisa, que estão mais concentrados no Sul e Sudeste”.