Trump faz ‘apaziguamento’ com Putin ao pressionar Ucrânia, diz Biden à BBC
- Author, Nick Robinson
- Role, Apresentador do programa Today, da BBC
- Reporting from Delaware
O ex-presidente americano Joe Biden disse à BBC que a pressão do governo Trump sobre a Ucrânia para que ceda território à Rússia seria uma “versão moderna do apaziguamento” em uma entrevista exclusiva, a primeira desde que deixou a Casa Branca.
Biden fez uma referência à política de “apaziguamento” do ex-primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, que tentou, em 1938, aplacar exigências de Adolf Hitler em uma tentativa fracassada de evitar uma guerra total catastrófica na Europa.
Em Delaware, na segunda-feira, ele disse que o presidente russo, Vladimir Putin, acredita que a Ucrânia faz parte da Rússia e que “qualquer um que pense que ele vai parar” se algum território for cedido como parte de um acordo de paz “é simplesmente tolo”.
Biden, que discursou durante as celebrações de países aliados na Segunda Guerra do 80º aniversário do Dia da Vitória na Europa esta semana, disse estar preocupado com o rompimento das relações EUA-Europa sob o presidente Donald Trump, o que, segundo ele, “mudaria a história moderna do mundo”.
É difícil acreditar que o homem que cumprimentei no hotel em Delaware onde ele lançou sua carreira política há mais de meio século fosse o “líder do mundo livre” há pouco mais de 100 dias.
Joe Biden ainda está cercado por todos os símbolos do poder — os SUVs pretos, os seguranças com as espirais de fones de ouvido, os cães farejadores enviados para vasculhar a sala em busca de explosivos. Ainda assim, ele passou os últimos três meses observando muito daquilo em que acredita ser varrido por seu sucessor.
Donald Trump tem usado o nome Biden de forma reiterada — é sua arma política preferida. Uma análise recente mostrou que o republicano mencionou ou escreveu o nome do antecessor pelo menos 580 vezes nesses primeiros 100 dias no cargo. Após afirmar que as altas nos preços de ações nas bolsas americanas eram o “mercado de ações de Trump” em operação, ele posteriormente atribuiu as quedas acentuadas nos papéis ao “mercado de ações de Biden”.
Até esta semana, o presidente Biden (ex-presidentes mantêm seus títulos após deixarem o cargo) vinha mantendo a tradição seguida por seus antecessores de não criticar os sucessores no início de seus mandatos. A partir do momento em que nos cumprimentamos com um aperto de mão, contudo, ficou claro que ele também estava determinado a falar o que pensava.
De terno azul escuro, o ex-presidente chega sorridente e relaxado, mas com o ar determinado de um homem com uma missão. É sua primeira entrevista desde que deixou a Casa Branca, e ele parece mais irritado com o tratamento que Donald Trump tem dispensado aos aliados dos Estados Unidos — em particular, ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
“Achei que aquilo não foi digno da América, a forma como aconteceu”, diz ele sobre a explosiva discussão no Salão Oval entre Trump e Zelensky em fevereiro. “E a maneira como falamos agora, ‘é o Golfo da América’, ‘talvez tenhamos que retomar o Panamá’, ‘talvez precisemos adquirir a Groenlândia’, ‘talvez o Canadá deva ser um [51º estado]’. O que diabos está acontecendo aqui?”
“Que presidente fala assim? Não é isso que somos. Somos a favor da liberdade, da democracia, da oportunidade — não do confisco.”
Depois de pouco mais de 100 dias bastante movimentados da segunda gestão de Trump, não faltaram alvos para o presidente Biden.
Mas sua principal preocupação parece estar no cenário internacional, e não no doméstico: ele acha que a aliança entre os Estados Unidos e a Europa — que, como ele diz, garantiu a paz, a liberdade e a democracia por oito décadas — estaria ameaçada.
‘Sérias preocupações’ sobre a OTAN
Momentos antes da entrevista, que ocorreu dias antes do 80º aniversário do Dia da Vitória na Europa (que comemora a derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra), Biden tirou uma grande moeda de ouro do bolso e a colocou na minha mão.
Era um suvenir da comemoração do Dia D do ano passado, quando esteve na França.
Biden acredita que o discurso que fez na praia na Normandia na ocasião tenha sido um dos mais importantes que já proferiu, quando declarou que os homens que lutaram e morreram “sabiam — sem sombra de dúvida — que há coisas pelas quais vale a pena lutar e morrer”.
Pergunto se ele acha que a mensagem sobre sacrifício corre o risco de ser esquecida nos Estados Unidos. Não pelo povo, ele responde, mas sim, pela liderança. Segundo ele, é uma “séria preocupação” que a Otan, também conhecida como Aliança Atlântica, pareça estar se desfazendo.
“Acredito que mudaria a história moderna do mundo se isso acontecesse”, ele argumenta.
“Somos a única nação em posição de ter a capacidade de unir as pessoas, de liderar o mundo. Caso contrário, teremos a China e a antiga União Soviética, a Rússia, se destacando.”
Crédito, Reuters
Agora mais do que nunca a aliança está sendo questionada. Uma antiga figura importante da Otan disse à BBC nesta semana que as comemorações do Dia da Vitória na Europa pareciam mais um funeral.
O presidente Trump se queixou que os Estados Unidos estariam sendo “enganados” por seus aliados, o vice-presidente, J.D. Vance, afirmou que seu país estaria sendo usado para “resgatar” a Europa e o secretário de Defesa, Pete Hegseth, repetiu que a Europa estaria “se aproveitando” dos americanos.
Biden chama o compromisso que todos os membros da Otan — a Aliança Atlântica — fazem de “defender cada centímetro do território de seus membros com toda a força do nosso poder coletivo” de uma “obrigação sagrada”.
“Temo que nossos aliados ao redor do mundo comecem a duvidar se ficaremos onde sempre estivemos nos últimos 80 anos”, diz Biden.
Sob sua presidência, tanto a Finlândia quanto a Suécia aderiram à Otan — algo que ele acredita ter fortalecido a aliança. “Fizemos tudo isso — e em quatro anos temos um cara que quer jogar tudo pro alto.”
“Estou preocupado que a Europa perca a confiança na certeza sobre a América e na liderança da América no mundo não apenas em relação à Otan, mas a outras questões importantes.”
Biden, o ‘velho confuso’?
Me encontrei com o presidente Biden no lugar que ele chama de lar desde menino, a cidade de Wilmington, em Delaware. Fica a uma hora e meia de trem da capital, Washington D.C., uma jornada que ele faz há 50 anos, desde que se tornou senador com apenas 30 anos. Ele passou mais anos em cargos eletivos do que qualquer outro presidente.
Tinha 82 anos quando deixou o Salão Oval. Sua idade tem sido alvo de inúmeras análises — um “velho às vezes confuso”, é como os jornalistas Jake Tapper e Alex Thompson o descrevem em seu livro, Original Sin: President Biden’s Decline, Its Cover-Up, and His Disastrous Choice to Run Again (“Pecado Original: O Declínio do Presidente Biden, o Acobertamento e Sua Desastrosa Escolha de Concorrer Novamente”, em tradução literal).
Sua performance calamitosa no debate ao vivo na TV em junho passado, quando Biden gaguejou, perdeu o fio da meada no meio da frase e se gabou, de forma um tanto desconcertante, de que “finalmente vencemos o Medicare!”, levantou uma série de perguntas sobre sua capacidade de concorrer à reeleição e governar por mais quatro anos.
Ele retirou a candidatura logo depois do episódio.
Crédito, Reuters
Hoje, Biden ainda é afetuoso e carismático, características que o fizeram vencedor nas urnas, mas é uma versão muito mais lenta, quieta e hesitante do líder que já foi. Ao conhecê-lo pessoalmente, achei difícil imaginar que ele pudesse ter servido por mais quatro anos na Casa Branca, chegando mais perto dos 90 anos.
Pergunto a Biden se ele teve que repensar suas decisões do ano passado. Ele desistiu da corrida presidencial apenas 107 dias antes da eleição, deixando Kamala Harris com tempo limitado para montar sua própria campanha.
“Não acho que teria feito diferença”, ele diz. “Saímos num momento em que tínhamos uma boa candidata, com a campanha totalmente financiada.”
“O que tínhamos planejado fazer ninguém pensou que conseguiríamos”, ele continua. “E tínhamos tido tanto sucesso na nossa agenda que era difícil dizer: ‘Não, vou parar agora’… Foi uma decisão difícil.”
Uma da qual ele se arrepende? Certamente desistir antes poderia ter dado mais chances a outra pessoa?
“Não, pensei que fosse a decisão certa.” Ele faz uma pausa. “Eu acho que… Bem, foi apenas uma decisão difícil.”
Trump ‘não se comporta como um presidente republicano’
Biden diz ter entrado na política para lutar contra a injustiça e até hoje não perdeu a disposição para lutar. No ano passado, nas comemorações do Dia D, ele alertou: “Estamos vivendo em uma época em que a democracia está mais em risco no mundo do que em qualquer outro momento desde o fim da Segunda Guerra Mundial.”
Hoje, ele vai além ao refletir sobre o assunto: “Vejam a quantidade de líderes europeus e países europeus que se perguntam: ‘O que eu faço agora? Qual é o melhor caminho para mim? Posso contar com os Estados Unidos? Eles estarão lá?'”
“Em vez de a democracia se expandir pelo mundo, ela está recuando. Democracia — cada geração tem que lutar por ela.”
Em um discurso dado recentemente em Chicago, Biden declarou que “ninguém é rei” nos Estados Unidos. Perguntei se ele acha que o presidente Trump está se comportando mais como um monarca do que como um presidente com poderes limitados pela Constituição.
Ele escolhe a resposta cuidadosamente. “Ele não está se comportando como um presidente republicano”, afirmou.
Em outro momento da entrevista, Biden admite que está menos preocupado com o futuro da democracia dos EUA do que costumava estar, “porque acho que o Partido Republicano está acordando para o que Trump representa”.
‘Qualquer um que pense que Putin vai parar é tolo’
O presidente Biden usou de seu papel como figura de liderança na Otan para compartilhar com um mundo cético em 2022 informações dos serviços de inteligência americanos que sugeriam que Vladimir Putin estava prestes a lançar uma invasão em grande escala na Ucrânia.
Desde que assumiu o cargo, o presidente Trump traçou um rumo diferente, comunicando à Ucrânia que o país deve considerar ceder território à Rússia se quiser que a guerra termine.
“É uma versão moderna do apaziguamento””, diz Biden sobre a abordagem de Trump, fazendo a referência à política de “apaziguamento” do ex-primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain com Hitler em um encontro em Munique em 1938.
Putin, diz ele, vê a Ucrânia como “parte da Mãe Rússia. Ele acredita ter direitos históricos sobre a Ucrânia… Ele não suporta o fato de que […] a União Soviética entrou em colapso. E qualquer um que pense que ele vai parar é simplesmente tolo.”
Ele teme que a abordagem de Trump possa sinalizar para outros países europeus que é hora de ceder à Rússia.
Biden recebeu, no entanto, acusações em relação à sua postura diante da guerra da Ucrânia. Críticos em Kiev e seus aliados, assim como alguns no Reino Unido, afirmam que ele deu ao presidente Zelensky apoio suficiente para resistir à invasão, mas não o suficiente para derrotar a Rússia, talvez por medo de que Putin considerasse usar armas nucleares se fosse encurralado.
Quando Putin foi questionado diretamente na TV nesta semana se usaria armas nucleares para vencer a guerra, ele declarou que esperava que elas “não fossem necessárias”, acrescentando que tinha os meios para levar a guerra ao que chamou de “conclusão lógica”.
Comento com Biden as críticas de que ele não teve coragem de ir até o fim para dar à Ucrânia as armas de que ela precisava para vencer.
“Demos a eles [Ucrânia] tudo o que precisavam para garantir sua independência”, ele argumentou. “E estávamos preparados para responder de forma mais agressiva se, de fato, Putin agisse novamente.”
Ele diz que estava ansioso para evitar a perspectiva de uma “Terceira Guerra Mundial, com potências nucleares”, acrescentando: “E nós a evitamos.”
“O que Putin faria se as coisas ficassem realmente difíceis para ele?” ele continua. “Ameaçaria o uso de armas nucleares táticas. Isto não é um jogo nem uma roleta.”