Trump e novo papa: como EUA podem influenciar conclave
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- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou neste sábado (3/5) uma imagem gerada por inteligência artificial em que aparece vestido como papa.
Sem qualquer comentário adicional, a foto foi compartilhada em seu perfil pessoal e nas contas oficiais da Casa Branca no X e no Instagram.
A postagem provocou reações negativas nas redes sociais.
“Não. Pare. Estamos de luto pelo papa Francisco e tentando ter paz enquanto aguardamos o conclave para eleger um novo. Ser católico nos EUA já é difícil o suficiente”, escreveu uma usuária.
“O nível de inadequação e desrespeito desta postagem é inacreditável. E eu sou ateu”, comentou outro perfil.
Embora a maioria dos comentários seja negativos, alguns usuários apoiaram a postagem.
“Como cristão, não vejo nada de errado nisso. Vestir uma fantasia não torna uma pessoa o que ela não é. E todo ser humano tem a liberdade de se expressar usando qualquer tipo de fantasia, desde que seja apropriado.”
A imagem foi divulgada dois dias após Trump declarar, em tom de brincadeira, que “gostaria de ser papa”. A declaração ocorreu em 29 de abril, quando foi questionado por jornalistas sobre qual cardeal escolheria para ocupar o posto de pontífice. “Essa seria minha primeira opção”, respondeu.
As declarações e a publicação ocorrem em meio a um momento delicado para a Igreja Católica. Com a morte de Francisco, cardeais de todo o mundo se reúnem em Roma para o conclave que definirá o novo papa. A movimentação tem gerado debate sobre o grau de influência que os Estados Unidos poderão exercer nesse processo.
O país abriga uma ala conservadora da Igreja Católica que foi um dos principais focos de resistência e oposição ao papa Francisco ao longo de seus 12 anos de pontificado. Essa ala também tem proximidade com o governo de Donald Trump, no qual há muitos católicos no alto escalão, entre eles o vice, J.D. Vance.
Desde seu primeiro mandato (2017-2021), a relação entre o governo Trump e o papa Francisco foi marcada por divergências públicas, tanto em temas políticos quanto eclesiásticos.
Agora, o conclave vai definir a direção da Igreja nos próximos anos ou décadas. O novo líder espiritual dos 1,4 bilhão de católicos do mundo poderá seguir a visão liberal e a agenda progressista adotada por Francisco ou marcar um retorno a uma postura mais conservadora, como defendem os que o criticavam.
Apesar de poucos analistas acreditarem na possibilidade de um americano ser eleito papa, representantes e simpatizantes da ala conservadora da Igreja nos Estados Unidos podem atuar nos bastidores para tentar impulsionar candidatos que se alinhem à sua visão.
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Mesmo que o governo Trump não exerça influência direta para eleger um candidato mais associado às suas prioridades políticas, há expectativa sobre o impacto que o trumpismo poderá ter no conclave.
“Acredito que (a possível influência dos Estados Unidos) seja uma preocupação entre alguns observadores, inclusive eu”, diz à BBC News Brasil o professor de teologia histórica Massimo Faggioli, da Universidade Villanova, na Pensilvânia.
Segundo Faggioli, há a percepção de que os Estados Unidos estão mais interessados no que vai acontecer neste conclave em comparação com anos anteriores.
“Há a sensação de que os Estados Unidos têm um projeto para mudar as coisas no mundo. E o Vaticano faz parte desse projeto do trumpismo e faz parte do projeto do catolicismo americano que apoiou Trump”, observa.
“O conclave é apenas um passo em um projeto de longo prazo dos Estados Unidos de Trump, dos católicos em torno de Trump e dos cristãos em geral em torno de Trump”, afirma Faggioli.
Grupo pequeno, mas influente
Dos 135 cardeais que têm menos de 80 anos e, portanto, podem votar no conclave, dez são dos Estados Unidos, o segundo país com maior número votos, atrás apenas da Itália.
“Mas, ainda assim, são apenas 8% dos eleitores”, ressalta David Gibson, diretor do Center on Religion and Culture (Centro de Religião e Cultura) da Universidade Fordham, em Nova York.
“E estão divididos entre aqueles que são a favor de Francisco e desse tipo de papa e aqueles que são anti-Francisco”, diz Gibson à BBC News Brasil.
Segundo Faggioli, a influência em um conclave pode ser exercida não apenas ao tentar eleger seu candidato favorito, mas também ao garantir que alguém (que tenha uma visão contrária à sua) não seja eleito.
“Eles sabem que são minoria, mas podem estabelecer ligações com outros cardeais em algumas questões específicas”, diz Faggioli.
“Os Estados Unidos têm influência sobre muitos cardeais ao redor do mundo, devido ao seu soft power. E isso vale tanto para os liberais quanto para os conservadores”, destaca Faggioli.
Apesar de o conclave ser realizado a portas fechadas e em segredo, os dias que antecedem a votação são marcados por reuniões e discussões sobre as qualidades necessárias no próximo líder da Igreja.
Nesse estágio, diferentes setores católicos, incluindo os conservadores americanos, têm a oportunidade de influenciar o debate e defender suas preocupações e preferências diante dos cardeais que irão votar, em uma espécie de “campanha eleitoral”.
Esses esforços podem partir não apenas de bispos e líderes religiosos, mas também de uma série de organizações católicas que buscam fortalecer a agenda conservadora da Igreja.
Nos Estados Unidos, a ala que se destacou pelas críticas ao papa Francisco é relativamente pequena, mas bastante influente.
“Eles são muito bem organizados e muito bem financiados. E, por isso, fazem muito barulho. Mas não acho que representem muitas vozes”, diz à BBC News Brasil o pesquisador de estudos católicos Michael Sean Winters, colunista do jornal National Catholic Reporter.
Os críticos de Francisco nos Estados Unidos são apoiados por um ecossistema de mídia católica independente, que frequentemente acusava o papa de prejudicar a Igreja e até questionava sua legitimidade.
“O centro da oposição conservadora ao papa Francisco está nos Estados Unidos. Não é grande, mas é muito poderoso, muito rico, muito influente e muito visível”, resume Gibson.
“Podem influenciar o conclave com campanhas nas redes sociais”, destaca Gibson. “A mídia social conservadora americana tem dinheiro, visibilidade e alcance global. Portanto, podem realmente prejudicar candidatos que não querem ver (eleitos).”
Uma Igreja mais inclusiva
Desde que se tornou papa, em 2013, Francisco implementou a visão de uma Igreja Católica mais inclusiva e em sintonia com atitudes modernas, com maior tolerância em relação a católicos divorciados, LGBTQ e outros grupos que se afastaram da doutrina.
O papa deu destaque para questões sociais, pregando a compaixão com imigrantes, refugiados e marginalizados e o combate à pobreza e às mudanças climáticas. Com sua imagem de humildade, conquistou admiração ao redor do mundo, não apenas entre católicos.
Mas sua postura também provocou forte oposição de setores conservadores, tanto no Vaticano quanto entre acadêmicos. Para os críticos, a abertura ao engajamento secular representava um afastamento da doutrina e poderia enfraquecer a religião e levar à perda da identidade da Igreja.
Muitos acusavam o papa de “semear confusão” nas doutrinas fundamentais da Igreja, em temas como homossexualidade, aborto e indissolubilidade do matrimônio. Outros o criticavam por um suposto estilo de liderança autocrático por trás de uma “fachada” de humildade.
Nos Estados Unidos, o pontificado de Francisco energizou setores conservadores na Igreja Católica, que desde o início deixaram claro que não gostavam do papa, de suas tentativas de reforma e também de suas posições políticas.
A ascensão do primeiro papa jesuíta e latino-americano marcou uma mudança nas relações com os Estados Unidos, que eram extremamente amigáveis sob seus antecessores mais próximos: Bento 16 (2005-2013) se identificava com ala conservadora da Igreja americana, e João Paulo 2º (1978-2005) via no país um aliado na luta contra o comunismo.
Entre os críticos do papa Francisco estão tradicionalistas, que defendem os antigos ensinamentos, rituais e costumes, de antes do Concílio Vaticano 2º (os encontros de cúpula nos anos 1960 para modernizar a Igreja, que levaram a mudanças na liturgia, no papel na sociedade e nas relações com outras religiões).
Para esses tradicionalistas, muitas das divergências são relacionadas à liturgia, como as ações do papa para limitar a celebração da missa em latim, da qual vários católicos americanos são adeptos.
O papa chegou a expressar publicamente sua consternação com “uma atitude reacionária muito forte e organizada” contra ele na Igreja americana, lamentando o que descreveu como “atraso” de alguns conservadores no país e alertando para os riscos quando “ideologias substituem a fé”.
Popularidade entre os americanos
Apesar da relação tensa com parte dos bispos americanos, que atacaram publicamente o papa, outros líderes religiosos no país apoiaram sua visão da Igreja, e ele permaneceu altamente popular entre os fiéis ao longo de seu pontificado.
Os Estados Unidos têm a quarta maior população católica do mundo, atrás apenas de Brasil, México e Filipinas. O protestantismo ainda é dominante, mas 20% dos adultos americanos são católicos, um contingente de mais de 50 milhões de pessoas.
Em pesquisa do instituto Pew Research Center em fevereiro deste ano, 78% dos católicos do país disseram ter opinião favorável sobre o papa. Esse percentual chegou a 90% em 2015, ano que marcou o pico de sua popularidade no país.
No entanto, segundo o Pew, as opiniões ficaram cada vez mais polarizadas ao longo dos anos. De acordo com a pesquisa de fevereiro, enquanto 88% dos católicos democratas manifestaram opinião positiva sobre Francisco, esse percentual caiu para 69% entre os católicos republicanos.
Na eleição do ano passado, Trump conquistou 54% dos votos dos católicos, um avanço de quatro pontos em relação a 2020, quando essa parcela do eleitorado se dividiu igualmente entre o republicano e o democrata Joe Biden.
Ao mesmo tempo em que a liderança em Roma se tornou mais aberta em vários aspectos sob o comando de Francisco, houve uma virada para a direita na Igreja nos Estados Unidos, impulsionada pela chegada de adultos recém-convertidos ao catolicismo e por jovens fiéis que se descrevem como conservadores e adotam uma visão rígida de moralidade cristã.
“Há várias pessoas (com cargos) importantes (nos Estados Unidos) que se converteram ao catolicismo e são muito conservadoras politicamente. Elas têm uma imagem da Igreja como algo imutável e permanente em um mundo que, de outra forma, seria caótico e liberal”, observa Winters.
“Mas essa (imagem) não é a Igreja de hoje, não é a Igreja da América Latina, da África. Não é onde a Igreja está crescendo”, diz Winters. “Eles querem a Igreja de Pio 12 (1939-1958), mas essa Igreja não existe mais, a não ser na sua imaginação.”
‘Animosidade sem precedentes’
Entre os católicos convertidos está o vice-presidente americano, J.D. Vance, que foi uma das últimas pessoas a se reunir com Francisco, em visita ao Vaticano no domingo de Páscoa (20/4), um dia antes da morte do papa. Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019, é admirado pelos católicos tradicionalistas americanos.
Desde o início do segundo mandato de Trump, em janeiro, o vice e outros católicos com posição de destaque no governo, como o “czar da fronteira” de Trump, Tom Homan, protagonizaram disputas públicas com o papa sobre as políticas de imigração americanas e aspectos dos ensinamentos da Igreja.
Vance tentou usar a doutrina católica para justificar algumas de suas políticas e foi corrigido pelo papa. Ao mesmo tempo, o papa foi criticado por dar declarações em oposição a políticas do governo, como os planos de deportação em massa.
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Em fevereiro, em carta aberta aos bispos americanos, Francisco disse que os planos de deportação violavam a dignidade humana e que imigrantes que entraram ilegalmente nos Estados Unidos não deveriam ser tratados como criminosos.
“Esse nível de animosidade (por parte de Vance e outros membros católicos do governo) em relação à própria Igreja é sem precedentes”, diz Gibson. “É realmente notável que haja tantos católicos (no governo Trump) sendo tão agressivos contra a própria Igreja e os ensinamentos católicos.”
“(No passado), mesmo que houvesse discordância, você nunca atacava o papa pessoalmente, não fazia acusações pessoais contra os bispos”, cita Gibson, referindo-se ao episódio em que Vance acusou os bispos americanos de terem motivação mais financeira do que humanitária em sua oposição às políticas de imigração.
Reação negativa
Alguns observadores alertam que as ações do governo Trump podem acabar prejudicando os interesses americanos no conclave.
“Acho que cria uma potencial reação negativa entre os cardeais”, afirma Gibson. “A Igreja é global, e a maioria da Igreja está na América Latina, na África, na Ásia.”
Gibson e Winters citam como exemplo os cortes feitos pelo governo na USAID, a agência americana para o desenvolvimento internacional.
Enquanto nos Estados Unidos essas mudanças foram discutidas em termos políticos e de preocupação com os funcionários demitidos, em partes da África “é uma questão de vida ou morte”, ressalta Gibson.
“Os cortes na USAID, o encerramento da ajuda externa pelo governo Trump, afetaram profundamente muitos dos países que têm cardeais no conclave”, lembra Winters.
Winters acredita que qualquer esforço aberto dos Estados Unidos para influenciar a decisão do conclave seria mal recebido pelos cardeais. Além disso, diz que o papel de Trump pode acabar sendo o de provocar rejeição por parte dos cardeais.
“Eles estarão buscando alguém (para ser papa) que enfrente seu tipo de política”, aposta Winters.
Gibson considera o governo Trump “desorganizado” e coloca em dúvida sua capacidade de montar uma campanha bem-sucedida para influenciar o conclave.
“Acho que os conservadores católicos (dos Estados Unidos) têm uma infraestrutura de mídia que poderia fazer isso. Mas no caso do governo, acho que mesmo se tentassem, seria um fracasso”, afirma Gibson.
O impacto do trumpismo
Embora tenha provocado forte rejeição de alas conservadoras, o papa Francisco também foi criticado por liberais, que defendiam reformas mais profundas e lamentam que a postura menos rígida nem sempre tenha se traduzido em mudanças concretas na Igreja.
“A oposição vinda da direita sempre ganhou atenção na imprensa, porque geralmente era muito virulenta. Mas acho que a decepção da esquerda é muito real. Ele foi criticado de ambos os lados”, ressalta Gibson.
“Acho que ele reconhecia isso, mas também foi muito cauteloso. Ele não queria dividir a Igreja ao agir rápido demais, queria que a Igreja tomasse decisões sobre mudanças importantes em consenso”, afirma Gibson.
Francisco deixou sua marca no Colégio dos Cardeais, em uma tentativa de consolidar suas reformas, nomeando muitos dos 135 membros que agora poderão escolher seu sucessor. O papa aumentou a diversidade do Colégio, nomeando vários cardeais de fora da Europa e de países que até então não eram representados.
“O teto deveria ser de 120 (cardeais com direito a voto), mas o papa Francisco ultrapassou esse limite (ao nomear mais cardeais). Ele estava muito ciente de que queria ir além do teto”, diz Gibson.
No momento em que esses cardeais irão escolher o novo papa e, assim, moldar o futuro da Igreja, Faggioli acredita que, independentemente do nível de esforço por parte dos Estados Unidos, o trumpismo já está influenciando o conclave.
“Essa é a era de Donald Trump na política mundial, e os cardeais sabem que têm de dizer algo sobre isso, de forma direta ou indireta”, afirma Faggioli. “Não há como a Igreja Católica ignorar que estamos na era de Donald Trump.”