Trump e a nova ordem mundial: as 4 mudanças do governo que estão alterando a geopolítica internacional
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- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Uma nova ordem mundial em menos de cem dias.
É assim que muitos líderes mundiais e analistas estão enxergando os primeiros meses do segundo mandato de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.
Seria esse um ponto de virada na história mundial — semelhante ao que aconteceu após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ou a queda do Muro de Berlim, em 1989? Ou será que o mundo está apenas atravessando um momento temporário de tensão que duraria apenas até o final do mandato do presidente americano, em 2028?
A BBC News Brasil conversou com especialistas em relações internacionais para entender como Trump está redefinindo a ordem mundial. Para eles, ainda não está claro quão duradouros serão os efeitos das políticas anunciadas até agora — e também se Trump será bem-sucedido em todas suas tentativas.
Para os especialistas, em muitos temas, sequer é possível quais são os objetivos específicos de Trump — já que ele é um líder volátil e imprevisível, ora anunciando uma política, e em seguida recuando ou revertendo dessa posição.
Mas eles concordam que algumas das políticas anunciadas por Trump são tão impactantes no mundo que já alteraram de forma irreversível a ordem mundial vigente.
“Eu diria que não há dúvida de que estamos presenciando o fim da ordem mundial que tínhamos até agora”, afirma à BBC News Brasil o especialista em relações internacionais Stefan Wolff, da universidade inglesa de Birmingham, que escreveu diversos artigos sobre a nova ordem mundial que Donald Trump estaria construindo.
“A ideia de uma ordem cada vez mais globalizada e liberal, na qual as regras e o direito internacional importa, foi por água abaixo. Mas ainda não está claro o que realmente a substituirá. E acho que isso contribui para toda essa sensação de incerteza.”
Confira abaixo quatro formas como Trump está mudando a ordem mundial, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
1. Fim do respeito a territórios internacionais
Até o começo do século 20, as potências mundiais cresciam expandindo seus territórios.
Após a Segunda Guerra Mundial, houve uma grande expansão territorial da União Soviética — mas nos países ocidentais houve diminuição do território, com movimentos de descolonização. E a integridade territorial virou um dos pilares do direito internacional.
Nas últimas décadas, países ocidentais promoveram invasões de outros países — como no caso do Afeganistão e do Iraque — mas não houve incorporação dessas regiões ao território americano ou europeu.
O Ocidente arrogava a si o papel de protetor de territórios internacionais, advogando contra a expansão territorial da Rússia com invasões da Geórgia e da Ucrânia, e trabalhando para conter a ameaça da China sobre Taiwan.
Mas agora, segundo os analistas, os próprios EUA parecem ter abandonado esses princípios — e estão eles próprios com intenções expansionistas.
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Trump tem sugerido que quer mudar o mapa dos EUA ao rebatizar o Golfo do México de Golfo da América, controlar a Groenlândia e o Canal do Panamá e tornar o Canadá o “51º Estado americano”.
“Temos uma espécie de desintegração de algumas regras básicas da ordem, como não invadir outros países ou anexar territórios”, diz Wolff.
“O problema que temos com Trump agora é que ele está normalizando isso, dando à Rússia bastante margem de manobra em negociações, e também replicando a linguagem de [Vladimir] Putin quando ele fala sobre retomar o Canal do Panamá, obter a Groenlândia, e tornar o Canadá o 51º Estado americano. Nesse sentido, a velha ordem está agora ameaçada tanto pela Rússia, o disruptor mais tradicional, mas também pelos EUA, que eram seu principal garantidor.”
Para Leslie Vinjamuri, diretora do programa para EUA da entidade britânica Chatham House, as falas de Trump representam um perigo para as normas internacionais.
“A recente conversa de Trump sobre a aquisição da Groenlândia e a anexação do Canadá ameaça tornar as invasões à soberania uma proposta aberta, aumentando os temores de que seu desrespeito aberto à soberania possa levar a uma reorganização fundamental das normas internacionais”, escreveu Vinjamuri em artigo.
“Isso acarretaria sérios riscos para os EUA: se as restrições normativas e legais à soberania forem enfraquecidas, isso colocará mais pressão sobre a dissuasão (e também sobre a credibilidade da dissuasão) para impedir que outras grandes potências usem coerção ou força militar direta para alterar fronteiras — uma questão séria em qualquer conflito com a China, especialmente em relação a Taiwan.”
2. Redefinição do papel da China
Um país fundamental na nova ordem mundial, que está tendo seu papel redefinido pelas políticas de Trump, é a China.
Na era da Guerra Fria, analistas diziam que o mundo era “bipolar”, com duas grandes superpotências que rivalizavam entre si: EUA e União Soviética.
No começo dos anos 1990, com o colapso da União Soviética, especialistas já falavam em um mundo unipolar — em que havia apenas os EUA como superpotência.
Mas o novo milênio viu a rápida ascensão da China no cenário internacional. O mundo voltou a uma situação de bipolaridade, mas com uma nova superpotência no lugar da União Soviética.
A relação do mundo ocidental com a China tem várias ambiguidades. Por um lado, todos os países do planeta dependem muito dos bens produzidos na China. O país é vital no comércio internacional.
Por outro, existe um temor de que a China não compartilha valores fundamentais do Ocidente, como democracia e liberdades individuais.
E a China também desconfia do Ocidente — a quem acusa de usar esses valores ocidentais —que para os chineses não são valores universais — apenas para barrar a sua ascensão econômica.
Pois essa relação do Ocidente com a China está sendo mudada radicalmente com a guerra comercial declarada por Trump.
“Se você me perguntasse antes de janeiro ou fevereiro de 2024 qual seria a posição da China neste novo mundo, eu diria que ela lideraria um bloco do qual a Rússia faz parte e alguns outros países da região que se sintam ideologicamente afiliados à China e à Rússia”, afirma Elisabeth Braw, especialista em relações internacionais do instituto americano Atlantic Council, à BBC News Brasil.
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O maior alvo da guerra comercial de Trump é a China. Mas o presidente americano também anunciou tarifas pesadas contra grandes aliados ocidentais, como Canadá, México e a Europa.
“Agora vimos os EUA imporem tarifas injustas. E tarifas também à China. E agora, de repente, a China parece um país mais responsável do que os EUA no comércio. E isso é algo extraordinário.”
Para ela, a guerra comercial de Trump contra os próprios aliados tradicionais dos Estados Unidos tem potencial para fazer todos os países se aproximarem da China.
“Os EUA cometeram muitos erros ao longo dos anos, mas sempre tentaram agir de forma responsável sob uma perspectiva global. E agora estamos vendo os EUA agindo de forma muito imprudente, impondo tarifas desnecessárias e prejudicando toda a economia global. E, em contraste, a China parece relativamente responsável”, afirma Braw.
“E acredito que isso levará não apenas a negociações mais próximas entre a China e a Europa, e a China e outros países.Mas também a mais comércio entre esses países, porque se houver menos comércio com os EUA por causa dessas tarifas, então você terá que negociar mais com os demais.”
3. Redefinição do papel da Europa e da Rússia
Uma das relações mais estáveis do pós-Guerra está sendo radicalmente modificada: entre EUA e Europa.
Até Trump chegar ao poder, a aliança EUA-Europa nunca esteve ameaçada — e foi um dos pilares da ordem mundial existente por quase 80 anos.
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA ajudaram a reconstruir a Europa com o Plano Marshall. E desde então, os EUA são praticamente os garantidores da segurança do continente através da aliança militar Otan, cuja maior parte dos custos é coberta pelos EUA.
A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 aproximou ainda mais europeus e americanos — então sob a liderança de Joe Biden — diante do temor de que Vladimir Putin tentasse expandir sua influência na Europa.
Mas Trump alterou radicalmente a relação com europeus.
Isso ficou claro em um discurso dado pelo vice-presidente J.D. Vance em fevereiro em uma conferência de segurança na Alemanha, no qual ele praticamente anunciou o fim da aliança histórica.
“A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, não é qualquer outro ator externo. O que me preocupa é a ameaça interna, o recuo da Europa em relação a alguns de seus valores mais fundamentais, compartilhados com os EUA”, disse Vance.
“E, infelizmente, quando olho para a Europa hoje, às vezes não fica tão claro o que aconteceu com alguns dos vencedores da Guerra Fria.”
“Olho para Bruxelas, onde os comissários da UE alertam os cidadãos que pretendem desativar as redes sociais durante períodos de agitação civil no momento em que identificarem o que julgam ser, entre aspas, conteúdo de ódio.”
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Vance também sinalizou o fim dos moldes atuais da Otan, em que os EUA custeiam a maior parte da segurança do continente.
“Embora o governo Trump esteja muito preocupado com a segurança europeia e acreditemos que possamos chegar a um acordo razoável entre a Rússia e a Ucrânia, nós achamos que é importante que a Europa se empenhe significativamente nos próximos anos para prover sua própria defesa”, disse o vice-presidente.
Essa divisão entre EUA e Europa ficou mais clara ainda na famosa visita do presidente ucraniano à Casa Branca em março, que terminou em um grande bate-boca entre Volodymyr Zelensky, Donald Trump e J.D. Vance.
A reação da Europa à nova política da Casa Branca foi quase imediata. Os europeus prometeram que vão investir 150 bilhões de euros nos próximos anos para se tornarem independentes dos EUA em segurança.
“A mensagem principal para Donald Trump é: a Alemanha está de volta. A Alemanha cumprirá suas obrigações em termos de defesa e está disposta a fortalecer sua própria competitividade. Faremos a União Europeia avançar”, disse o provável futuro chanceler alemão Friedrich Merz.
Para o analista Stefan Wolff, vai demorar para a Europa reconstruir sua defesa — mas a tarefa é possível. E isso provavelmente vai levar a um equilíbrio de poderes maiores entre europeus e russos no futuro.
“Tem sido interessante ver como a Europa, pelo menos em parte, está se recompondo. Eu acho que provavelmente nos próximos 5 a 10 anos, a Europa vai ressurgir como um desses grandes centros de poder, porque economicamente, ela definitivamente é um deles. É um dos três principais atores: China, UE/Europa e EUA”, afirma Wolff.
E como fica a Rússia de Vladimir Putin na nova ordem mundial?
Para Elisabeth Braw, do Atlantic Council, por mais que Moscou tenha ganhado algum poder com a decisão de Trump de enfraquecer a aliança com os americanos, na Nova Ordem Mundial, a Rússia seguirá sendo um país com menos influência do que a China e Estados Unidos na geopolítica internacional.
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“O papel da Rússia continuará sendo o de um país que perturba a ordem global, causando caos e desordem. É um país que inspira medo, o que, aparentemente para Putin, é melhor do que ser um país que segue as regras e não inspira medo”, afirma a especialista.
“Outro aspecto interessante do papel da Rússia no mundo atual é que, economicamente falando, ela é completamente dependente da China. É o parceiro júnior da China. E durante a Guerra Fria, a relação era completamente oposta. A União Soviética era, em grande parte, um parceiro sênior e a China, um parceiro júnior.”
Wolff também acredita que a influência russa no novo mundo é limitada — assim como a ameaça que ela representa para a Europa.
“A Rússia é, até certo ponto, mais uma potência militar, principalmente em termos de seu arsenal nuclear. Em um sentido convencional, a Rússia não representa realmente uma grande ameaça militar para a Europa. Se você olhar para o tamanho da economia, para o tamanho da população”, diz Wolff.
“A Europa terá algum trabalho a fazer para desenvolver sua própria base industrial de defesa, investir mais em exércitos permanentes, e assim por diante.”
“A Rússia não é um gigante de 3 metros que consegue facilmente marchar até Bruxelas. Eles não conseguiram muito progresso nem mesmo na Ucrânia nos últimos três anos.”
4. Fim da era dourada da globalização
Outro ponto levantado pelos especialistas sobre a nova ordem mundial sob Donald Trump é o possível fim da era dourada da globalização.
A globalização foi uma construção lenta da economia global, que aconteceu ao longo de décadas e resultou em uma cadeia complexa de produção e consumo. Hoje produtos complexos — como carros e telefones celulares — têm seus componentes produzidos em diversas partes do mundo.
Uma reportagem da BBC mostrou por exemplo que 80% dos iPhones vendidos nos EUA são produzidos na China — e os outros 20% são produzidos na Índia. Uma tarifa de importação de mais de 140% — como a que chegou a ser anunciada por Trump, e posteriormente modificada — provocaria uma disparada no preço pago pelos americanos pelo telefone.
Para Elisabeth Braw, a guerra comercial de Trump é um ataque a essa globalização.
O presidente diz que quer que muitas empresas que vendem produtos aos EUA fechem suas operações no exterior e abram fábricas no país — gerando empregos para os americanos.
A noção é justamente o oposto da globalização — em que cada país se especializa em produzir algum produto, e o comércio internacional integra todas as cadeias, gerando bens mais baratos para todos.
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Segundo os especialistas, o fim da globalização não é uma tendência nova que surge com Trump — mas ela é acelerada com a chegada do republicano ao poder.
No ano passado, antes da eleição de Trump, Elisabeth Braw havia escrito o livro Goodbye Globalisation (“Adeus à Globalização”), no qual ela mostra como o movimento antiglobalização ganhou força no mundo.
A ascensão de Trump teria se dado justamente por eleitores que se dizem prejudicados pela globalização.
E como seria um mundo pós-globalização? Ele seria mais fragmentado, segundo a especialista do Atlantic Council.
“O subtítulo do meu livro é ‘O Retorno de um Mundo Dividido’. E é isso que veremos: países negociando mais com nações com ideias semelhantes”, diz Braw.
“No que diz respeito à Europa, até algumas semanas atrás, as nações com ideias semelhantes, de uma perspectiva europeia, incluíam outras nações europeias e também os EUA.”
“Mas agora estamos vendo que os EUA provavelmente não farão parte desse grupo de democracias liberais ocidentais com ideias semelhantes. Mas o que estamos vendo com certeza é países se unindo para negociar mais dentro desse grupo.”
“E, francamente, devo dizer que tivemos sorte que a globalização tenha durado tanto, porque ela se baseia no comportamento dos países, no cumprimento das regras.”
Ponto de virada ou tensão passageira?
Apesar de haver um debate atual sobre o surgimento de uma nova ordem mundial, não existe ainda uma perspectiva concreta de quão sólidas serão essas mudanças no mundo.
Será que as mudanças vistas no mundo hoje vão se concretizar mesmo?
Estamos vivendo um ponto de virada na história mundial? Ou só um momento temporário de tensões?
Os especialistas não têm uma resposta definitiva para isso. Mas eles dizem que mesmo que essa nova ordem mundial não se consolide, algumas coisas já mudaram para sempre nesses primeiros meses de governo Trump.
“Acho que o que está ficando muito claro é que não se pode mais confiar nos EUA. Vamos imaginar que o governo Trump tenha terminado em 2028. E que o presidente agora seja J.D. Vance ou um presidente democrata. Isso significaria que a Europa suspiraria aliviada, voltando aos velhos hábitos, sabendo que Washington vai consertar tudo?”, diz Wolff.
“Acho que Trump, agora, em menos de 100 dias, destruiu completamente essa confiança, não apenas na Europa, mas também entre alguns aliados importantes na Ásia, de que os EUA são um parceiro confiável. Acho que, nesse sentido, já temos uma mudança na forma como o sistema internacional funciona que não pode ser desfeita.”
Elisabeth Braw concorda que algumas mudanças parecem definitivas.
“Não saberemos o quão grande é essa mudança até que alguns anos se passem e saibamos como o governo Trump termina”, diz.
“Mas o que sabemos é que esta é a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que os EUA essencialmente se voltaram contra seus aliados europeus em um ponto fundamental, dizendo que não precisamos de aliados, somos um país importante, só vamos lidar com outros países importantes como Rússia e China, e eles serão nossos parceiros de negociação, e vocês, nossos aliados europeus, simplesmente não são tão importantes.”
Já Leslie Vinjamuri vê com certo ceticismo as intenções de Trump e quão duráveis suas políticas podem ser.
“O desafio para os líderes é como decifrar as intenções de Trump. Pode ser que Trump esteja planejando, fundamentalmente, manter a posição atual dos EUA nas relações internacionais e esteja simplesmente usando táticas não convencionais para obter melhor acesso aos mercados e alianças mais fortes e equilibradas. Nesse caso, conciliação, diplomacia, visitas, presentes e medidas para atender às suas solicitações podem ser uma resposta inteligente”, escreve a diretora da Chatham House.
“Mas se Trump tem intenções genuínas em relação ao Canadá e à Groenlândia e planeja abandonar Taiwan e a Ucrânia como parte de um grande projeto para uma nova ordem internacional, então os parceiros e aliados dos EUA devem adotar uma resposta mais estratégica, mas também mais firme e de longo prazo.”