Ruy Castro sobre o Rio de Janeiro na 2ª Guerra: ‘Cartas eram censuradas, as famílias nem desconfiavam do que estava acontecendo no front’
Crédito, Heloísa Seixas
- Author, Júlia Dias Carneiro
- Role, Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
O escritor Ruy Castro já retratou tantas facetas do Rio de Janeiro em sua obra que sua escolha como homenageado da Bienal do Livro deste ano, celebrando o título da cidade como Capital Mundial do Livro, é mesmo o “óbvio ululante” – para citar um de seus mais célebres biografados.
E é justo Nelson Rodrigues que Castro evoca ao dizer o que achou da homenagem: “Eu não caí das nuvens, eu quase caí do terceiro andar com essa notícia, que é muito mais grave que cair das nuvens”, brinca, recorrendo ao humor ácido do dramaturgo. “Isso me deixou muito contente, é claro.”
Castro, jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras, dedicou boa parte de sua carreira a obras que trazem o Rio como pano de fundo ou protagonista, desde livros sobre Ipanema e a bossa nova às biografias de Rodrigues e Garrincha.
Trincheira Tropical – A Segunda Guerra Mundial no Rio, que acaba de lançar (Companhia das Letras), desvela um novo prisma. “É quase uma história da vida privada no Rio durante o conflito, falando sobre tudo que aconteceu na cidade por causa da guerra”, descreve em entrevista à BBC News Brasil.
O livro traz à luz um tempo em que viver na então-capital era temer bombardeios dos países do Eixo nazista, conviver com blecautes rotineiros na orla para que a luzes não fossem avistadas por submarinos e aprender a buscar refúgio sob túneis, pilotis ou abrigos antiaéreos. O livro também recuperou relatos das agruras enfrentadas por pracinhas brasileiros no front, que na época tinham suas correspondências censuradas pelo Estado Novo de Getúlio Vargas.
“O Rio recebeu não só espiões e contra-espiões, como também refugiados da guerra. Mas isso nunca tinha sido contado. Foi isso que me empolgou a buscar informações durante seis anos”, afirma. O autor falará sobre o livro na Bienal do Livro, que começa nesta sexta-feira (13/6) no Riocentro, zona oeste do Rio.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil: Você é o escritor homenageado da Bienal do Livro no ano em que o evento celebra o título da cidade como Capital Mundial do Livro. Sua obra é muito ligada ao Rio. Como se sentiu com essa homenagem?
Ruy Castro: O Rio ser escolhido Capital Mundial do Livro é a coisa mais justa. A partir da chegada da Corte ao Brasil em 1808 e da Independência do Brasil em 1922, a cidade se tornou altamente livresca, com uma quantidade enorme de jornais, livrarias, editoras. A história da literatura brasileira passa inevitavelmente por aqui.
Para comemorar, a Bienal do Livro deste ano se propõe a ser a maior de todos os tempos, com o maior número de estandes, palestras, lançamentos e até uma roda gigante. Vai ser um acontecimento.
E, espantosamente, me escolheram como o homenageado deste ano. Naturalmente, como diria Nelson Rodrigues, eu não caí das nuvens, eu quase caí do terceiro andar com essa notícia, que é muito mais grave que cair das nuvens. Isso me deixou muito contente, é claro.
Crédito, Heloísa Seixas
BBC: O que inspira mergulhos tão profundos em histórias ligadas ao Rio, como no seu novo livro sobre a Segunda Guerra Mundial?
Castro: O Rio sempre foi muito importante para mim. Desde que eu comecei a ler jornais, entre 4 e 5 anos de idade, não passei um dia sem ler um jornal carioca. Tenho uma preocupação e uma ligação diária, horária, com o Rio. Acompanho tudo que está acontecendo, torço pela revitalização de certas áreas, lamento a destruição de outras, me orgulho muito de ter trabalhado no Correio da Manhã, na revista Manchete e no Jornal do Brasil em seus melhores períodos.
Passei do jornalismo para os livros quando comecei a ter ideias que não cabiam em jornal nem em revista. A primeira delas foi a história da bossa nova. Eu propus para uma editora que estava começando em São Paulo, a Companhia das Letras. A bossa nova estava abandonada, fora do ar, desprezada. O Luiz Schwarcz, dono da Companhia, era um cara jovem, curioso. Eu falei: “Não quero fazer um livro de ensaio ou tese. Quero contar a história da bossa nova, como aconteceu, quem era aqueles meninos.” Ele topou imediatamente.
Em seguida, tive a ideia de biografar o Nelson Rodrigues. Depois, de fazer um livro sobre Ipanema. Depois, de biografar o Garrincha. Todos esses livros se passam no Rio. Acredito que o escritor deve tratar de assuntos que conhece. É um trabalho tão monstruoso você levantar a vida de alguém ou a história de uma época sem conhecer, a priori, o cenário. Eu parto de um conhecimento grande e de um amor pelo Rio para mergulhar e descobrir as histórias que eu conto.
Recentemente, escrevi Metrópole à Beira-Mar, a história do Rio moderno dos anos 1920. Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Roquete Pinto, João do Rio, uma quantidade enorme de pessoas modernas estava no Rio fazendo coisas que nunca tinham sido feitas. Concluí que o Rio não precisava ser modernista coisa nenhuma, porque o Rio já era moderno. Apenas as pessoas nunca tinham falado isso. E aconteceu de eu ser o primeiro a falar. A história da participação da Segunda Guerra na vida do Rio é outro assunto inédito. Eu tenho muita sorte. Os historiadores, os grandes entendidos, passam por cima dessas ideias e deixam elas para mim.
BBC: Trincheira Tropical fala sobre como a Segunda Guerra Mundial impactou a vida no Rio de Janeiro. O que te levou a escolher esse tema?
Castro: O livro é quase uma história da vida privada no Rio durante o conflito, falando sobre tudo que aconteceu na cidade por causa da guerra, que foi muito importante na vida do brasileiro. Atingiu todo mundo, principalmente no Rio, que era não só capital federal, como também a única metrópole do Brasil. Era o centro do corpo diplomático, o centro militar, o principal porto do país. O Rio recebeu não só espiões e contra-espiões, como também refugiados da guerra. Mas isso nunca tinha sido contado. Foi isso que me empolgou a buscar informações durante seis anos.
Os livros que existem a respeito tratam basicamente da luta dos pracinhas na Itália. Mas são chatos de ler e difíceis para o leitor entender. A maioria foi escrita por generais e coronéis que nunca estiveram a menos de 5 km do front da batalha. Como, aliás, os correspondentes de guerra. A ignorância e o desconhecimento sobre a guerra dentro do Brasil é muito grande.
A primeira coisa que fiz foi ler toda a imprensa da época, que era completamente censurada. Depois, comecei a buscar todos os livros publicados a partir de 1940 que faziam referência ao Rio naquele período. Livros de memórias de generais, políticos, jornalistas, escritores, empresários, diplomatas, uma quantidade enorme de pessoas publicaram suas memórias nesses últimos 80 anos. Foram seis anos lendo mais de mil livros para coletar informações.
BBC: Como o conflito era acompanhado do Brasil? Havia um clamor pela entrada do Brasil na guerra?
Castro: Apesar de a guerra ter sido declarada em 1939, os mundos fascista, comunista e democrático já estavam em guerra no Brasil desde 1935, com a Intentona Comunista, o Estado Novo de 1937, que era fascista, e o Putsch Integralista de 1938. Durante a guerra, como o Brasil exportava alimentos e matéria-prima para países inimigos da Alemanha, submarinos alemães começaram a botar abaixo esses navios para impedir que chegassem à Europa e aos Estados Unidos.
No Rio, havia talvez dois mil espiões alemães dedicados a informar a Alemanha sobre as características e trajetos desses navios. Muitas casas tinham rádios clandestinos com antenas no telhado. Os espiões mandavam essa informação via rádio para Hamburgo, bombardeavam o navio e, pronto, morriam 200 pessoas. Mais de mil brasileiros morreram nesses bombardeios em 1942. E por causa dessas agressões, o Brasil declarou guerra ao Eixo Nazista — Alemanha, Itália e Japão.
Mas essa declaração de guerra só aconteceu porque houve uma pressão monumental dentro do Brasil. Havia uma ditadura aqui, tudo era proibido, mas de repente não houve como conter as manifestações de rua, lideradas pelos estudantes pela União Nacional dos Estudantes. A UNE botou milhares de pessoas na rua todos os dias exigindo a entrada do Brasil na guerra e a luta pela liberdade.
Ironicamente, o Brasil não tinha um regime de liberdade, tinha uma ditadura terrível, comandada pelo Getúlio Vargas. Mas ele não teve mais como segurar aquela onda, e foi obrigado, por pressão interna, a nos mandar para lutar na guerra.
Crédito, Heloísa Seixas
BBC: Como a vida na cidade foi afetada pela entrada na guerra? Havia medo real de bombardeios?
Castro: Havia uma ameaça constante de bombardeios às cidades costeiras, principalmente o Rio. Campanhas monumentais ensinaram a população a se proteger. Panfletos ensinavam o que fazer em caso de ataque. Havia um sistema de sirenes para emitir alertas. Se soasse uma segunda sirene, havia certas medidas a tomar, como ir para debaixo de prédios de pilotis, entrar em túneis inexpugnáveis ou procurar abrigos antiaéreos — que, a partir de 1943, se tornaram obrigatórios em prédios em construção.
Foram instituídos os blecautes. Se você morasse à beira-mar, a partir da segunda sirene, não podia ter uma luz acesa em casa. Se quisesse acender uma vela, tinha que vedar a janela com um pano preto. Dizia-se que a luz de uma vela podia ser enxergada a quilômetros de distância por um submarino alemão. Nos postes da Avenida Atlântica [Copacabana], todas as lâmpadas que davam para o mar eram pintadas de preto. Só as que davam para a rua podiam continuar acesas. Se uma pessoa fosse apanhada fumando na orla, tinha que apagar o cigarro no chão para não virar alvo. Jogos de futebol noturnos foram proibidos, casas de espetáculo tiveram que vedar suas janelas para funcionar.
A única categoria que adorava os blecautes eram os jovens namorados. Alguns lugares do Rio, como o Leme e Arpoador, eram muito bons para levar a namorada, naquela escuridão total. Como os carros eram muito espaçosos, você tinha ali uma situação ideal. Isso chegou até nós com o nome de “corrida de submarino”. Vamos ver a corrida de submarino?
BBC: O livro conta que o conflito também impôs dificuldades econômicas e racionamento aos brasileiros. Como foi?
Castro: Não há como ficar alheio a uma guerra mundial. Qualquer máquina que havia no Brasil, automóvel, geladeira, liquidificador, peça de reposição de ônibus, bonde, tudo vinha de fora. Mas, lá fora, estavam convertendo essas indústrias para a guerra, para fabricar canhão, tanque. Não entrava nada novo aqui.
A carne que o Brasil produzia passou a ser exportada para os Estados Unidos, então não havia carne para comprar. E o bombardeio de navios interrompeu o transporte de mercadorias entre o Sul/Sudeste e o Norte do Brasil. O Norte fabricava açúcar até dizer chega, mas não podia transportar para o Rio ou São Paulo. Lá havia excesso, aqui, escassez. Começou a haver racionamento de laticínios, ovos, trigo, com cotas semanais. A economia brasileira foi sendo desmantelada.
Crédito, Heloísa Seixas
BBC: O senhor também encontrou relatos inéditos descrevendo o que os pracinhas passaram no front da batalha.
Castro: As famílias nem desconfiavam o que estava acontecendo com seus filhos e irmãos lá fora. As cartas eram censuradas. Você tinha aqui os quinta-colunas dizendo para elas, “você está aí passando dificuldades, racionamento, mas seu marido, seu irmão, está numa boa na Itália, namorando as italianas, comendo do bom e do melhor, esquiando na neve”.
Essas famílias não sabiam que seu irmão, ou marido, podia estar conversando com um soldado amigo e de repente vê-lo levar uma rajada de metralhadora do nada, dividindo o cara do meio em sua frente. Outra cena terrível que encontrei foi de um soldado que levou um tiro na cabeça, o capacete caiu, ele caiu com a cabeça por cima e o sangue escorreu, enchendo o capacete. Isso acontecia e as pessoas não sabiam. E quando os pracinhas voltaram, continuaram sem saber, porque eles não gostavam de contar as suas histórias na Itália. Queriam esquecê-las.
BBC: Ruy, o senhor biografou figuras fundamentais, extraordinárias, na vida cultural brasileira e do Rio. Como você se sentiria se alguém quisesse fazer sua biografia? Daria seu aval?
Castro: Só por cima do meu cadáver. Eu não acredito que ninguém tenha que permitir fazer uma biografia. Ninguém é dono da vida de ninguém. Nem a própria pessoa. Agora isso está estabelecido, desde aquela fabulosa medida da Ministra Cármen Lúcia que liberou as biografias não autorizadas, dez anos atrás, falando “Cala a boca já morreu”.
Se alguém se interessar por fazer minha biografia, eu não vou ser contra, não vou fazer nada. Só não sei se vou colaborar muito. Porque eu não acredito em você ficar entrevistando seu biografado. Você não pode chegar muito perto do seu biografado, na minha opinião. Eu vou gostar muito. Talvez não consiga ver, né? Talvez eu já tenha ido para as nuvens.