Reverendo Moon: a cidade no Paraguai comprada por seita coreana
- Author, Ronald Alexander Ávila-Claudio
- Role, Enviado especial ao Paraguai, BBC News Mundo
Alcides Manena, um jornalista de 43 anos, recebe a gente na casa dele em uma quarta-feira quente e úmida de março. Ele está sentado na varanda da construção de alvenaria, vendo diversas fotografias em um laptop no seu colo.
É fim de tarde e choveu, então a lama cobre as ruas não pavimentadas ao redor da casa onde ele vive há 12 anos com a esposa, os cunhados e dois filhos.
O imóvel nunca pertenceu legalmente à família, embora sua companheira, Eva Noguera, uma professora de 37 anos, tenha herdado a casa dos pais, que viveram lá por décadas.
Manena passa as fotos uma por uma, e explica que elas foram tiradas durante a Grande Marcha de 2005, quando ele e outros moradores de Puerto Casado — uma pequena cidade no norte do Paraguai — caminharam 630 quilômetros até a capital, Assunção.
As imagens mostram dezenas de crianças e adultos. Eles estão caminhando por uma estrada ou de pé na boleia de vários caminhões, sob sol e chuva, segurando bandeiras, cartazes e instrumentos musicais.
Ele explica que a marcha foi um protesto que eles realizaram “porque estavam cansados dos abusos” depois que seu município — incluindo propriedades, animais e plantações — foi vendido, em 2000, para a Associação do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial, conhecida como seita Moon, uma organização religiosa de origem sul-coreana.
“Foi anunciado que não só a terra seria vendida, mas também tudo o que foi plantado e pregado. As casas, as escolas, a igreja e as instituições que deveriam ser administradas pelo governo”, conta Manena, que nasceu e cresceu no povoado.
Puerto Casado, ele explica, é um assentamento de sete mil habitantes que foi fundado em 1886 pelo rico empresário argentino Carlos Casado de Alisal — e sempre “esteve em mãos privadas”. É um exemplo do enorme problema de distribuição de terras no país sul-americano que persiste até hoje.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
Casado de Alisal usou Puerto Casado, localizado no Chaco paraguaio, uma região pouco povoada na parte ocidental do país, como base para extração de tanino, uma substância derivada do quebracho, uma árvore nativa, que foi essencial para a produção de couro durante grande parte do século passado.
“Ele veio para cá e explorou os recursos naturais. Formou um povoado, mas também era o proprietário que administrava absolutamente tudo, inclusive os serviços básicos. Antes da chegada da seita Moon, ninguém pagava pela água ou pela luz”, diz Manena.
A companhia operou por mais de cem anos, e se tornou uma das maiores empresas de curtume do mundo, permitindo ao empresário argentino acumular uma enorme fortuna e mais de 5 milhões de hectares no Chaco paraguaio.
Com o declínio dos taninos vegetais devido à chegada de novos produtos sintéticos, a empresa encerrou suas operações e, em 2000, decidiu vender centenas de milhares de hectares de terra, incluindo Puerto Casado.
“E é por isso que estamos nos organizando e exigindo que as terras sejam transferidas para os moradores locais”, acrescenta Manena.
Crédito, Arquivo pessoal
Mais de duas décadas depois, a reivindicação deles persiste.
O governo paraguaio e os atuais proprietários dizem que buscam uma solução para o conflito, marcado por promessas não cumpridas e abandono.
Enquanto isso, os moradores da comunidade lidam com as consequências de não ter um teto e um terreno próprios.
“Sempre houve o temor de que nossa casa fosse tirada de nós. Mas neste povoado ninguém vai ceder, mesmo que surja uma ordem judicial de despejo”, diz o jornalista.
‘Um Estado paralelo’
A rota mais rápida para chegar a Puerto Casado de carro leva cerca de oito horas de Assunção. Às vezes, a estrada não tem asfalto e, quando chove, fica cheia de lama.
Uma vez em Vallemí, povoado adjacente, você precisa pegar uma balsa e navegar 20 quilômetros pelo rio Paraguai até um pequeno porto de madeira.
Além do porto, abrem-se ruas de tamanho médio, ladeadas por construções, em sua maioria, com apenas um andar, que preservam as fachadas originais da época dos curtumes.
No centro do município, há um monumento de um soldado paraguaio com as cores azul, branco e vermelho da bandeira nacional. É em homenagem àqueles que lutaram na guerra do Chaco, um conflito com a Bolívia pelo controle da região, durante o qual Puerto Casado foi usado como base, e no qual o Paraguai saiu vencedor.
Em frente, na paróquia, uma construção modesta — também de alvenaria — e com um enorme pátio interno, o sacerdote Zislao Ksiasek recebe a reportagem.
“O mais doloroso dessa época é que o cidadão foi esquecido pelo Estado. Estava à mercê dos empregadores”, diz o padre polonês da Ordem Salesiana que vive na cidade há 40 anos.
O “paí Zislao”, como é chamado pelos moradores locais, é uma das vozes mais ativas em prol da entrega de títulos de terra à população de Puerto Casado.
Ele guarda centenas de reportagens publicadas pela imprensa, documentos, planos e fotografias originais que registram a vida dos moradores locais durante o período dos curtumes.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
“Eu guardo muito lixo”, diz ele com sarcasmo, e reclama que no país não existe um arquivo ou museu oficial sobre a época que ele vivenciou como capelão dos trabalhadores do quebracho.
Eles trabalhavam, segundo ele, em condições de “escravidão”. “O povo foi esbofeteado pelo Estado”, acrescenta.
O sociólogo Julio Rafael Espinola, da Universidade Nacional de Assunção, concorda com o padre Ksiasek.
O proprietário da empresa tinha o poder de proibir os funcionários de deixar suas terras, vetar seu consumo de álcool e controlar seus alimentos.
Os cidadãos adquiriam seus alimentos em um armazém de propriedade de Casado de Alisal e, no fim do mês, o custo dos produtos era descontado do salário.
“Pela legislação, a empresa não apenas tinha o poder administrativo de suas propriedades, mas também poderes de polícia e até mesmo judiciais”, explica o especialista.
E isso aconteceu porque, depois de perder a guerra da Tríplice Aliança contra a Argentina, Brasil e Uruguai, o Estado do Paraguai estava falido, e teve que vender parte do seu território para saldar suas dívidas, explica Carlos Aníbal Pérez, também sociólogo da Universidade Nacional de Assunção.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
“Como o Chaco ficava bem distante, a venda de terras públicas não afetava Assunção, o centro do país. É por isso que os proprietários das terras receberam carta branca, e foi criado uma espécie de Estado paralelo”, diz Pérez.
Para o especialista, “Puerto Casado é o lugar onde os poderes de facto tiveram mais incidência do que os poderes políticos reais”.
O avião ‘sequestrado’
Quando os curtumes fecharam, Puerto Casado ficou sem sua principal fonte de renda.
E como os moradores não tinham títulos de propriedades, eles não podiam ter acesso a crédito ou ajuda do governo para desenvolver seus lotes, e trabalhar em agricultura ou pecuária.
“Achamos que nos tornaríamos uma cidade fantasma”, diz Manena, que se dedica a cobrir as notícias da região do Chaco para a imprensa local.
Esta situação se somou a brigas entre boa parte dos moradores locais e a seita Moon, que depois de adquirir milhares de hectares de terra, queria desalojar a população.
O grupo religioso, por meio da sua representante legal da América Latina, Michelle Byun, disse à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, que o despejo não havia sido dirigido a todo o município.
“Como nossas propriedades são extensas, houve várias invasões”, ela afirmou.
Mas a resposta inicial dos moradores à chegada da seita foi feroz.
Quando os representantes do movimento religioso se mudaram para o município pela primeira vez, eles retiveram seu avião por várias horas.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
“Foi uma forma de protesto”, diz Manena. “Pedimos a presença de um representante do governo. Foi uma mensagem para que eles soubessem que em Puerto Casado há pessoas que querem ser independentes”, explica.
“No começo, não havia um bom relacionamento com os proprietários. Não sabíamos se, de um dia para outro, eles iriam nos desalojar das nossas casas”, conta Laura Diaz, uma professora de 37 anos que recebeu a reportagem na Escola Juan de Ayolas.
Ela vive em Puerto Casado desde que nasceu. Sua família chegou ao povoado há duas gerações, então ela conhece bem a história da região.
“Os militares vieram apaziguar os conflitos, assim como a polícia para mediar e tranquilizar a população. Nas manifestações, muitos foram agredidos”, diz ela.
Como consequência destas diferenças, a organização religiosa decidiu não estabelecer operações em Puerto Casado, e apenas realizar reuniões com alguns fiéis na capital do país, acrescenta Carmelo Caballero, também advogado do grupo.
Além disso, eles desistiram de levar adiante os projetos agrícolas que haviam planejado para as propriedades ao redor.
A luta dos moradores também conseguiu fazer com que o governo aprovasse, em seu favor, a desapropriação de 52 mil hectares de terras em 2005.
No entanto, a “alegria durou pouco”, diz Manena.
Em 2007, a Suprema Corte do Paraguai declarou a lei inconstitucional por considerá-la um “confisco”.
“Iniciamos uma série de conversas com as autoridades, e conseguimos que os 52 mil hectares de desapropriação fossem anulados, em troca de 30 mil hectares, mas como uma doação”, diz Byun.
Mas a transferência nunca foi executada pelo governo e, mais tarde, em 2012, após a morte de Sun Myung Moon, o controverso líder da Igreja da Unificação, surgiu um “cisma” na organização, e seus familiares dividiram os bens.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
Isso incluía as terras onde Puerto Casado está localizado.
Cerca de 300 mil hectares permaneceram nas mãos da igreja, agora liderada por Hak Ja Han, viúva de Moon, e o restante foi para várias empresas vinculadas a um dos filhos do falecido líder religioso.
Com esta divisão, iniciou-se uma disputa judicial pelas terras, que ainda não foi resolvida — e deixa os moradores de Puerto Casado na expectativa.
Uma promessa
Em março, quando a reportagem da BBC visitou Puerto Casado, Díaz estava entusiasmada.
Ela havia recebido um telefonema informando que receberia o título de propriedade da sua casa, onde seus pais também haviam morado antes dela.
Era o resultado de “20 anos de luta”, ela pensou.
A professora faria parte de um grupo de beneficiários a quem a empresa Atenil — vinculada ao filho do reverendo Moon, e que se tornou proprietária de cerca de 240 mil hectares após a divisão da Igreja — faria uma transferência direta da propriedade, à parte da lei que foi suspensa pela decisão do Judiciário do país.
Segundo Kiantar Betancour, gerente geral da Atenil, a empresa busca entregar 268 títulos de propriedade a famílias que vivem em uma região do centro urbano de Puerto Casado, que não está localizada dentro dos 30 mil hectares contemplados na lei de doações.
“É uma doação privada, fora do escopo da lei de doações. Queremos regularizar a área urbana”, afirmou Betancourt.
A empresa opera um centro industrial em Puerto Casado, onde possui diversos projetos de desenvolvimento sustentável financiados pela emissão de créditos de carbono.
A companhia também oferece assistência a escolas locais por meio da restauração de móveis e entrega de material didático.
Díaz é uma das professoras que recebe este apoio.
“Antes, não se conversava com os donos, sempre havia intermediários”, conta a educadora. “Agora, pelo menos com esta empresa, isso mudou”, ela argumenta.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
Mas o prefeito de Puerto Casado, Hilario Adorno, responsável pela administração territorial e arrecadação de impostos, alega que a empresa não tem capacidade legal para ceder os títulos de propriedade.
Adorno argumenta que eles devem primeiro doar as propriedades ao Estado paraguaio, para que ele então distribua os lotes entre os cidadãos.
Dois meses depois de ser orientada a visitar vários escritórios e assinar vários documentos, Díaz ainda não recebeu seus títulos de propriedade.
Ela não tem certeza do motivo, e atribui o atraso a problemas burocráticos e diferenças entre as empresas e o governo paraguaio.
Diego Puente, representante legal da Atenil, diz que os títulos de propriedade que eles pretendem doar ainda estão sendo processados.
“Vinte já foram concluídos, enquanto 30 estão no processo burocrático. Quando tivermos 50 casas, faremos um evento e comunicaremos”, eles informaram à BBC News Mundo em uma mensagem de texto em maio.
Foram as mesmas palavras que eles usaram quando visitamos seu escritório no início deste ano.
Falta de oportunidades
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
Agustina Sosa, de 18 anos, também é natural de Puerto Casado.
Ela está prestes a terminar o ensino médio, e espera entrar na universidade em breve.
Mas ela sabe que vai ter que deixar Puerto Casado quando decidir dar este passo, já que não há nenhuma instituição de ensino superior na cidade.
“Meu objetivo é ir para Concepción (cidade próxima com 76 mil habitantes), pois gostaria de me formar em instrumentação cirúrgica. Há uma demanda enorme na comunidade, onde só temos uma pessoa dedicada a essa profissão”, diz ela.
Ela afirma que não tem muito conhecimento sobre a questão dos títulos de propriedade.
“Ouvi algumas coisas, mas ainda não pensei muito nisso. Embora eu adoraria ter um imóvel no meu nome quando tiver meu trabalho e meus estudos.”
O que ela tem certeza é da falta de oportunidades para a população de Puerto Casado.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
“Aqui, às vezes é bom, às vezes é ruim. Digamos que a vida é mediana. É muito quente, não há muitos empregos ou coisas para fazer”, diz ela.
Arturo Méndez González, governador do Alto Paraguai, departamento onde fica Puerto Casado, reconhece que é necessário solucionar o problema da terra para que a cidade se desenvolva.
“Nenhuma universidade ou empresa vai investir em um lugar onde não há segurança em termos da própria terra”, ele observa.
E ele afirma que seu governo, no poder há quase dois anos, está “pela primeira vez” fomentando o diálogo entre os proprietários das terras e os cidadãos.
Mas, segundo ele, é preciso esperar que as divergências legais entre a Igreja e as empresas sejam resolvidas.
Crédito, Ronald Alexander Ávila-Claudio / BBC News Mundo
Com o tempo, diz o jornalista Alcides Manena no final da nossa conversa, o povo de Puerto Casado foi “perdendo o medo”.
Eles não têm intenção de “entrar em conflito”, mas vão continuar com suas reivindicações.
Pelo tanto que contribuíram para a história do país, os moradores de Puerto Casado deveriam ter mais do que promessas, na opinião dele.
“Por direito, cabe ao governo nos dar as terras.”