Quem são os afrikaners, brancos da África do Sul que os EUA recebe como refugiados por ‘sofrer racismo’
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Um avião que partiu de Joanesburgo com 59 sul-africanos brancos a bordo pousou em Washington DC na segunda-feira (12/5).
Sua chegada à capital americana acontece após meses de tensões diplomáticas entre os EUA e a África do Sul.
O presidente também se referiu ao que descreveu como uma “matança em larga escala de agricultores brancos”, um argumento respaldado publicamente pelo empresário Elon Musk, nascido em Pretória, que chegou a falar de um “genocídio branco”.
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O governo sul-africano rejeita estas acusações e nega a existência de perseguição racial contra brancos.
O ministro das Relações Exteriores do país, Ronald Lamoa, declarou na segunda-feira que “não há perseguição aos sul-africanos brancos afrikaners” — e afirmou que os dados da polícia contradizem a narrativa promovida por Washington.
Os afrikaners, em sua maioria descendentes de colonos holandeses, desempenharam um papel central na história do país, desde a colonização até o regime do apartheid.
Quem são os afrikaners?
O programa de reassentamento de Trump é voltado para os afrikaners, uma comunidade sul-africana branca descendente em sua maioria de colonos holandeses, franceses huguenotes e alemães que começaram a se estabelecer no sul da África em 1652.
Durante séculos, os afrikaners dominaram a política e a produção agrícola do país, especialmente sob o apartheid (1948-94), quando formavam o grupo branco majoritário e o pilar ideológico do regime.
Hoje, eles representam pouco mais de 5% da população da África do Sul — cerca de 2,7 milhões de pessoas —, e a maioria fala africânder como língua materna.
Trump justifica seu programa com o argumento de que os afrikaners sofrem “discriminação racial” devido às políticas do Congresso Nacional Africano (CNA), no poder desde o fim do apartheid em 1994.
Em sua ordem executiva de fevereiro, o presidente dos EUA citou especificamente a recém sancionada lei sul-africana que prevê a expropriação sem indenização de terras improdutivas, abandonadas ou adquiridas de forma fraudulenta durante o regime segregacionista.
Embora a lei tenha sido defendida como uma ferramenta para corrigir desigualdades históricas, tanto setores conservadores americanos — incluindo empresários influentes como Elon Musk e Peter Thiel — quanto muitos afrikaners na África do Sul a veem como uma ameaça direta aos direitos de propriedade dos brancos.
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Trump também denunciou o que descreveu como “uma matança em larga escala de agricultores brancos”, uma tese apoiada por Musk, Thiel e outros membros da chamada “Máfia do PayPal”, um influente grupo do Vale do Silício que mantém laços com a África do Sul.
O governo sul-africano nega que exista uma perseguição racial: o chanceler Ronald Lamola classificou as acusações de Washington como infundadas, e argumentou que os relatórios policiais desvinculam a violência rural de um suposto genocídio branco.
Segundo dados oficiais, foram registrados 44 homicídios em áreas agrícolas em 2024, sendo oito deles de agricultores.
O Instituto Sul-Africano de Relações Raciais (SAIRR, na sigla em inglês) concluiu que os ataques atingem tanto trabalhadores brancos quanto negros, e costumam ser motivados por roubo ou disputas trabalhistas.
Vítimas de racismo?
A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com o analista sul-africano Ryan Cummings, diretor da consultoria Signal Risk, que questiona a base legal e humanitária para a concessão de asilo aos afrikaners.
“Eles certamente não enfrentam nenhum tipo de marginalização coletiva por causa de sua cultura, raça ou idioma”, observa.
O especialista acredita que as leis de ação afirmativa promovidas pelo CNA não são punitivas em relação aos brancos — mas, sim, mecanismos para reverter a exclusão histórica da população negra, e lembra que “os afrikaners ainda estão no topo da escala socioeconômica”.
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Cummings acrescenta que a percepção de insegurança nas áreas rurais, onde ocorreram ataques violentos a fazendas, alimentou uma narrativa política dentro de setores afrikaners mais conservadores.
“Eles foram apresentados como atos de violência étnica, como se houvesse um genocídio sistemático em andamento — mas, na verdade, respondem a dinâmicas locais: fazendas isoladas, segurança precária, armas e dinheiro armazenados nas instalações”, explica.
Ele reconhece, no entanto, que figuras como Julius Malema, líder do partido comunista Combatentes pela Liberdade Econômica, alimentaram essa sensação de ameaça com cânticos como “Kill the Boer“, música dos tempos da luta contra o apartheid, reforçando os temores de alguns afrikaners de um ressurgimento do nacionalismo negro em suas formas mais violentas.
O conflito geopolítico
Isso causou uma deterioração nas relações entre a África do Sul e os EUA, aliado de Israel.
“Trump quer mostrar para a comunidade internacional que o mesmo governo que leva Israel perante um tribunal internacional por supostas violações dos direitos humanos está infringindo os mesmos direitos dos seus próprios cidadãos”, avalia Cummings.
O secretário de Estado americano, Marco Rubio, justificou a medida chamando o diplomata de “agitador racial” que “odeia os EUA”.
O governo sul-africano afirma, por sua vez, que a narrativa promovida por Washington é infundada, e responde a interesses políticos internos nos EUA.
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Desde que Trump assinou o decreto, mais de 70 mil sul-africanos brancos manifestaram interesse em emigrar, de acordo com a Câmara de Comércio Sul-Africana em Atlanta.
O grupo de 59 pessoas que desembarcou em Washington nesta semana é o primeiro a se beneficiar do programa.
Como isso é visto na África do Sul
Na África do Sul, o programa de reassentamento de Trump é visto com ceticismo e até mesmo com um certo sarcasmo, de acordo com o diretor da Signal Risk.
“Muitos sul-africanos veem os afrikaners que se beneficiam do programa de Trump como pessoas que estão buscando uma saída, uma maneira de encontrar a utopia que procuram: uma sociedade onde possam existir sem ter que compartilhar espaço com sul-africanos negros”, diz Cummings.
De acordo com o especialista, há “muitas almas perdidas” entre os afrikaners que cresceram durante o fim do apartheid.
“Eles sentem que não foram cúmplices, mas que estão sendo obrigados a pagar pelo que aconteceu décadas antes de terem nascido”, afirma.
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No entanto, ele conclui que a maioria dos sul-africanos concorda com a ideia de uma sociedade multirracial, e que aqueles que resistem a ela — e agora emigram — “provavelmente não estavam interessados em participar deste projeto desde o início”.
Cummings acredita, inclusive, que muitos sul-africanos moderados veem com bons olhos a emigração de certos afrikaners para os EUA sob a iniciativa de Trump.
Parte da sociedade sul-africana considera isso “uma forma de se livrar de pessoas que têm uma ideologia racista ou de supremacia branca”.
“Muitos sul-africanos acham que a África do Sul, como país, provavelmente vai ficar melhor sem eles, no sentido de que vamos perder indivíduos que essencialmente não têm interesse de participar da construção da nação ou de viver em um país multirracial”, afirma.