Quais países latino-americanos mudaram sua Constituição para permitir a reeleição presidencial para sempre?
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- Author, Gerardo Lissardy
- Role, BBC News Mundo
Neste caso, a história é de um presidente popular que concentra poder e é autorizado, por meio de uma mudança constitucional, a se candidatar à reeleição quantas vezes quiser, em nome da soberania popular.
A reforma em El Salvador foi votada de forma acelerada na última quinta-feira (31/07) na Assembleia Legislativa, onde o presidente Nayib Bukele tem ampla maioria.
A mudança na Constituição, aprovada por 57 dos 60 legisladores, ainda ampliou o mandato presidencial de cinco para seis anos e eliminou o segundo turno das eleições.
Por mais drástica e inédita que essa reforma pareça para El Salvador, está longe de ser algo inusitado na América Latina, onde diferentes países permitiram a reeleição presidencial indefinida nos últimos anos.
E, segundo os especialistas, a evidência regional mostra que, permitir, sem limites, a continuidade dos mandatários em regimes presidencialistas, representa sérios riscos para a democracia.
“A reeleição por tempo indeterminado é sinônimo de autocratização”, afirma Mario Torrico, cientista político que tem estudado o fenômeno, à BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC.
‘Um tecnicismo’
Sob um estado de exceção, seu governo prendeu dezenas de milhares de pessoas acusadas de envolvimento com gangues, uma estratégia que, segundo organizações de direitos humanos, envolve abusos de poder.
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O mandatário, de 44 anos, agora pode tentar permanecer no cargo sem um prazo de saída obrigatório.
Diante das críticas à reforma, Bukele respondeu que “90% dos países desenvolvidos permitem a reeleição por tempo indeterminado do seu chefe de governo, e ninguém se incomoda”.
“Mas, quando um país pequeno e pobre como El Salvador tenta fazer o mesmo, falam que é o fim da democracia”, disse o presidente em uma publicação na rede social X.
Bukele incluiu nesse comentário tanto os sistemas parlamentares de países desenvolvidos quanto os regimes presidencialistas da América Latina, e afirmou que distinguir entre eles é um “tecnicismo” e “um pretexto”.
Contudo, os especialistas acreditam que essa diferença é fundamental.
“Em um regime parlamentarista, a eleição do primeiro-ministro ou presidente acontece por meio de um acordo no Parlamento entre forças políticas diversas”, disse Agustín Grijalva, ex-juiz da Corte Constitucional do Equador.
“Em um regime presidencialista, há duas eleições separadas e independentes: a do Parlamento, por um lado, e a do presidente, por outro, que não depende da escolha parlamentar. E cada um tem um mandato fixo”, acrescenta.
“É outra estrutura institucional totalmente diferente, que exige o cumprimento desses mandatos fixos.”
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Segundo Grijalva, que é professor na Universidade Andina e pesquisa o tema, “o argumento de Bukele seria crível se ele nos desse exemplos de países com regimes presidencialistas que têm reeleição indefinida: aí veríamos que são os autoritários, como a Venezuela e Nicarágua”.
De fato, esses dois países, assim como Equador e Bolívia, permitiram a reeleição por tempo indeterminado de seus presidentes neste século, anos antes de El Salvador.
A mudança permanece em vigor na Venezuela e na Nicarágua, cujos governos passaram a ser considerados autocráticos por boa parte da comunidade internacional, enquanto Equador e Bolívia voltaram atrás e limitaram a permanência no poder.
Um paradoxo é que esses quatro países autorizaram a reeleição sem limites sob governos de esquerda, supostamente com ideologias opostas a de Bukele, estrela da direita continental.
E a forma como isso foi feito também revela semelhanças que chamam atenção.
‘Vamos fazer isso rápido’
A reeleição por tempo indeterminado na América Latina sempre foi aprovada durante o governo de presidentes que já haviam cumprido mais de um mandato e se aproximavam do limite constitucional que os obrigava a deixar o poder.
Ou seja, foi feita com nome e sobrenome.
Esses presidentes contavam com maiorias no Legislativo, no Judiciário ou em ambos os poderes ao mesmo tempo, para mudar as regras do jogo.
Bukele e o nicaraguense Daniel Ortega são os primeiros a governar por dois mandatos consecutivos em seus países desde a década de 1980, com base em decisões judiciais que derrubaram a proibição de reeleição imediata prevista em suas constituições.
Depois, em ambos os casos — assim como no Equador, sob a presidência de Rafael Correa —, maiorias legislativas mudaram as constituições para permitir a reeleição ilimitada. Atualmente, Ortega governa a Nicarágua há mais de 18 anos.
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Na Bolívia, o Tribunal Constitucional autorizou o então presidente Evo Morales a tentar a reeleição por tempo indeterminado quando ele terminava seu terceiro mandato consecutivo, ainda que a Constituição permitisse apenas uma reeleição — e mesmo após a população ter rejeitado a mudança em referendo.
Assim como El Salvador aprovou a reeleição indefinida por meio de um trâmite acelerado, a Venezuela também fez o mesmo às pressas quando o então presidente Hugo Chávez solicitou isso ao Legislativo no fim de 2008. “Se é para fazer, vamos fazer isso rápido”, declarou.
A proposta foi aprovada em menos de dois meses e ratificada em um referendo pouco mais de um ano depois de essa possibilidade ter sido rejeitada também pelo voto popular.
Chavez defendia que os eleitores é que deveriam determinar se um presidente deve ou não continuar no cargo, porque “o povo é o dono de um país”.
Argumento similar ao que tem sido usado por Bukele.
“O poder voltou ao único lugar a que pertence verdadeiramente…ao povo salvadorenho”, disse a vice-presidente do Congresso, Suecy Callejas, ao votar a emenda.
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Mas Grijalva também rejeita essa ideia.
“Não é que se esteja devolvendo um direito à maioria. A maioria se expressa na Constituição e nas leis para que haja um regime democrático. O que está acontecendo é que essa maioria está sendo invocada para se estabelecer um regime autoritário.”
Consequências
O alerta de que o El Salvador de Bukele está trilhando “o mesmo caminho” que a Venezuela de Chávez também foi feito por Juanita Goebertus, diretora para as Américas da organização Human Rights Watch.
“Começa com um líder que usa sua popularidade para concentrar poder e termina em ditadura”, escreveu Goebertus na rede social X, quando El Salvador aprovou a reeleição por tempo indeterminado.
Chavéz, por exemplo, presidiu a Venezuela por 14 anos consecutivos até sua morte, em 2013. Seu sucessor, Nicolás Maduro, segue no poder até hoje.
Os especialistas acreditam que aprovar uma reeleição indefinida em um país é mais fácil quando há flexibilidade para alterar a Constituição ou quando o Judiciário está subordinado ao Poder Executivo.
Como exemplo oposto, destacam o caso da Colômbia, quando a Corte Constitucional impediu, em 2010, que o então presidente Álvaro Uribe concorresse a um terceiro mandato.
“É importante que as instituições construam reputação e atuem com profissionalismo. A Corte Constitucional [colombiana] era assim e conseguiu frear Uribe”, afirma Torrico, que é pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais no México.
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Ainda não sabemos até que ponto El Salvador vai se parecer, daqui para frente, com os países da região que autorizaram a reeleição por tempo indeterminado de seus presidentes.
Os casos da Bolívia e do Equador, que reverteram essa regra depois que Morales e Correa deixaram o poder, sugerem que também é possível voltar atrás.
Mas os especialistas veem motivos suficientes para se preocupar com os sinais vitais da democracia de El Salvador.
“A reeleição consecutiva já nos coloca em apuros, porque os presidentes, para se reelegerem, distorcem regras e acumulam poder”, diz Torrico.
“Mas, quando, além disso, se introduz uma reeleição indefinida, eles tentam controlar tudo. E o que se vive já é um regime autocrático.”