‘Psicose’: a música assustadora que mudou a história do cinema
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- Author, Thomas Hobbs
- Role, BBC Culture
Violas estridentes que soam como se estivessem saindo de um abatedouro. Notas graves estrondosas, que diminuem lentamente de velocidade e parecem imitar os batimentos cardíacos oscilantes de uma vítima.
Se tirarmos a trilha sonora composta por Bernard Herrmann para o filme de terror Psicose — que completa 65 anos este mês — é justo dizer que não teria o mesmo impacto angustiante.
Particularmente importante é a música que toca quando Marion Crane (Janet Leigh), pouco depois de fazer check-in no motel Bates, é atacada por trás da cortina do chuveiro por um assassino misterioso — que mais tarde se revela ser o dono do motel, Norman Bates (Anthony Perkins), vestido como sua falecida mãe.
“Aquela música é tudo”, diz Rachel Zeffira, compositora de trilhas sonoras para filmes e integrante da dupla de folk Cat’s Eyes.
“São os pássaros, as abelhas e as vozes no fundo da sua cabeça. “
“Psicose certamente não era um filme ruim antes da trilha sonora, mas faltava tensão”, explica Steve Smith, autor do novo livro Hitchcock and Herrmann: The Friendship and Film Scores that Changed Cinema (Hitchcock e Herrmann: a amizade e as trilhas sonoras que mudaram o cinema, na tradução livre para o português).
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Herrmann deu ao filme o impulso que precisava ao compor uma trilha para uma orquestra de 50 músicos apenas com cordas.
No caso da cena mais famosa, isso resultou em uma sequência de agudos psicologicamente perturbadores, que fizeram com que o público aterrorizado deixasse de ver o chuveiro como um lugar seguro.
“Antes da cena do chuveiro, muitas das trilhas musicais tinham um tom depressivo e não eram realmente tão altas assim”, diz Smith. “Mas, de repente, com a cena do chuveiro, as cordas tocam sem surdina e gritam de forma animalesca. Isso cria uma ligação inteligente com Norman Bates, o taxidermista de pássaros.”
Herrmann forçou Hitchcock, inicialmente indiferente, a assistir à sequência do chuveiro com e sem a música.
“Devemos usá-la!”, concordou Hitchcock. “Mas eu achei que você não queria minha música aqui”, disse Herrmann sarcasticamente antes do diretor retrucar: “Meu caro, sugestão imprópria.”
É uma anedota que reflete bem essa parceria explosiva.
A união criativa dos dois resultou em trilhas sonoras que fazem o espectador se sentir imerso no diálogo interior obscuro de um personagem, cúmplice tanto de seus sonhos mais românticos quanto de seus pesadelos mais desesperadores (veja Um corpo de cai).
Zeffira descreve a música que toca toda vez que Norman Bates aparece em cena como “abatida e ansiosa”, o que, segundo ela, “faz com que você sinta pena de um assassino”.
“Sei que antes de escrever uma trilha para um filme, Herrmann sempre lia o romance no qual o filme era baseado ou estudava a obra literária, por isso suas trilhas eram mais empáticas. Cada nota que Herrmann tocava tinha um significado.”
As origens do gênio Herrmann
Leitor ávido na infância, Herrmann (ou Benny, como ele era chamado pelos amigos) passou a maior parte de seu tempo livre debatendo de forma apaixonada se a literatura ou a música era a forma de arte suprema.
A música acabou ganhando, e Herrmann começou a vencer competições de música clássica aos 13 anos.
Ele estudou na Universidade de Nova York, sob a orientação do lendário compositor Percy Grainger, e um dos primeiros trabalhos profissionais de Herrmann como músico de estúdio foi na rádio CBS.
Na CBS, ele trabalhou com Orson Welles, ganhando sua confiança com a adaptação para o rádio de A Guerra dos Mundos, em 1938, que era tão realista que alguns ouvintes acreditaram se tratar de uma invasão alienígena de verdade.
Trabalhar com centenas de peças radiofônicas ensinou a Herrmann como criar composições que evocassem imagens mentais, além de lhe mostrar o poder das pausas longas: ele usava o silêncio como mais instrumento para construir suspense.
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Profissionalmente, Herrmann era conhecido por ter um temperamento explosivo e, como conta sua filha Dorothy ao New York Times, ele “não tinha paciência para tolos”.
Ainda assim, Smith faz questão de destacar que o músico era menos temperamental do que sua reputação sugeria e costumava recomendar compositores mais jovens para trabalhos. “Ele era mal compreendido”, afirma.
“Dada a sua reputação de se irritar com facilidade, acho que as pessoas ficariam surpresas em quão gentil Bernard era, especialmente com os animais. Ele desconfiava de humanos arrogantes, mas dava amor incondicional aos seus gatos.”
Brandon Brown, cinegrafista que mora na Carolina do Sul e está trabalhando em um documentário sobre a vida de Herrmann, diz que uma das coisas que com frequência é esquecida são os horrores da época em que Herrmann cresceu.
Embora ele tenha nascido na cidade de Nova York, em 1911, a família de Herrmann era de judeus russos que fugiram da Europa Oriental em busca de uma vida melhor. Eles certamente tiveram que deixar para trás amigos na Ucrânia, que posteriormente foram deslocados à força ou massacrados pela invasão de tropas nazistas.
“É possível ouvir no trabalho de Herrmann para o rádio e o cinema, especialmente nas obras produzidas durante a Segunda Guerra Mundial, o quanto ele foi profundamente afetado pelo que estava acontecendo”, diz Brown, citando a música que ele compôs para o drama sobrenatural O fantasma apaixonado, de 1947.
Na peça The Spring Sea, há uma harmonia crescente de flautas que representa o canto revigorante dos pássaros pela manhã. No entanto, os tons ensolarados são permeados por uma tristeza melancólica, graças a cordas descendentes que soam mais como o choro de uma mãe.
“Herrmann considerava O fantasma apaixonado seu melhor trabalho”, diz Brown. “É fácil entender por quê. É uma trilha tão bonita e melancólica ao mesmo tempo, que capta como o mundo se sentia nos anos de 1940, numa época em que até um dia de sol era assombrado por fantasmas. Foi esse tom sombrio que ele levou para Psicose.”
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Em 1960, Herrmann já era um gigante na indústria cinematográfica. Além disso, ele e Hitchcock já tinham feito cinco filmes juntos (O Terceiro Tiro, O Homem que Sabia Demais, O Falso Culpado, Um Corpo que Cai e Intriga Internacional), e desenvolveram uma química criativa impecável.
Ainda assim, Smith acredita que Psicose foi uma produção em que Herrmann deu um novo fôlego a um diretor cansado. “Hitch temia ter cometido um erro ao filmar um material tão macabro, algo que muitos o aconselharam a não fazer”, explica.
“Mas Herrmann fez Hitchcock se apaixonar pelo projeto mais uma vez. Herrmann contou mais tarde que ele escreveu a trilha sonora de Psicose para uma orquestra de cordas, a fim de criar ‘um som em preto e branco’ que complementasse a fotografia em preto e branco.”
Além de transformar Psicose em um enorme sucesso para Hitchcock — arrecadando 32 milhões de dólares com um orçamento de apenas 800 mil — Herrmann viu sua trilha sonora gerar repercussões na cultura popular de muitas formas inesperadas. O produtor George Martin baseou seu arranjo de cordas de 1966 para Eleanor Rigby, dos Beatles, na música de Psicose.
“George queria trazer um pouco de drama para o arranjo”, contou Paul McCartney à BBC em uma entrevista.
O legado da trilha sonora
O tema central do filme também seria posteriormente reutilizado por dezenas de outros artistas. Talvez o exemplo mais eletrizante seja o single de 1998 do rapper Busta Rhymes, Gimme Some More.
De acordo com o produtor de hip hop e compositor de música clássica contemporânea Michael Vincent Waller, a trilha de Psicose é adorada por artistas do rap.
“Herrmann sabia como repetir pequenos fragmentos e se tornar um mestre da repetição. Em muitos aspectos, a forma como ele conduzia a música para o cinema se parecia muito com o modo como os produtores de rap fazem seus beats.”
Waller afirma que Psicose não mudou apenas o gênero do terror, mas ampliou a narrativa cinematográfica como um todo.
“A música de Psicose é uma referência toda vez que você quer construir tensão, e é claro que John Williams se inspirou nela para as notas graves e ameaçadoras de Tubarão. Sempre que você ouve violinos assustadores em um filme de terror, ou sente que a trilha sonora virou quase um personagem à parte, tudo isso remete à Psicose.”
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A parceria criativa entre Hitchcock e Herrmann chegou ao fim em Cortina Rasgada (1966).
Hitchcock ficou furioso com a recusa de Herrmann em seguir suas ordens para produzir uma trilha mais enxuta, com apelo pop — o compositor insistia em usar 12 flautas, 16 trompas, nove trombones, duas tubas, oito violoncelos, oito contrabaixos e dois conjuntos de tímpanos.
Herrmann foi demitido, mas isso não prejudicou sua carreira. Ele continuou sendo uma força inovadora até a sua morte em 1975, quando sofreu um ataque cardíaco.
Em especial, uma colaboração com Martin Scorsese para Motorista de Táxi —lançado um ano depois, em 1976, consolidou o legado musical de Herrmann.
Trabalhando proeminentemente com um saxofonista (Ronnie Lang), ele compôs notas de jazz esfumaçadas e flutuantes, tão vívidas que era possível imaginar a poluição subindo pelas rachaduras dos esgotos de Manhattan.
O filme de Scorsese também oferece um momento de ciclo completo com Psicose: no final de Motorista de Táxi, Herrmann faz uma citação direta ao tema de três notas do filme anterior, The Madhouse.
“Ele disse à esposa, Norma, que fez isso porque queria dizer ao público que Travis Bickle, de Motorista de Táxi, voltaria a cometer violência”, explica Smith.
Entre os trabalhos excepcionais de Herrmann, a trilha sonora de Psicose e seus arranjos de violino arranhados e angustiantes continuam sendo um destaque óbvio. É uma das poucas trilhas que Herrmann regravou, um claro sinal de orgulho, e continua sendo um exemplo perfeito de como a música pode elevar um filme. Ou, como o próprio Herrmann disse uma vez:
“Um compositor escreve a trilha sonora para um filme e dá vida a ele. Como um sujeito que vai ao médico e diz ‘estou morrendo’, e o médico o cura.”