Pix na mira dos EUA: como sistema afeta interesse das big techs no Brasil?
Crédito, SHAWN THEW/Pool via REUTERS
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- Author, Luiz Fernando Toledo*
- Role, Da BBC News Brasil, em Londres
O governo americano anunciou a abertura de uma investigação comercial contra o Brasil nesta terça-feira, 15. Um dos pontos se destacou: o interesse em apurar supostas irregularidades na adoção do Pix, mais popular método de pagamento no país e usado por 3 em cada 4 brasileiros.
A medida, anunciada pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, ou USTR na sigla em inglês, afirma que o sistema poderia estar prejudicando empresas americanas que atuam no setor de pagamentos.
O órgão afirma que o Brasil “parece envolver-se em uma série de práticas desleais em relação aos serviços de pagamento eletrônico, incluindo, mas não se limitando a promover seu serviço de pagamento eletrônico desenvolvido pelo governo”.
A ordem de investigar partiu do presidente americano Donald Trump e já era esperada — tinha sido mencionada na carta divulgada por ele na semana passada, em que ameaçou impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros.
Trump, em justificativa, mencionou o fato de o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estar sendo alvo de um processo judicial que ele classificou como uma “caça às bruxas” e um suposto déficit na relação comercial entre Brasil e os Estados Unidos, que o governo brasileiro nega.
Desenvolvido na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB) e lançado em 2020, na gestão Bolsonaro (PL), o Pix tem hoje mais de 170 milhões de usuários.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as medidas seriam uma forma de proteger as big techs e serviços de pagamentos americanos.
“Estamos falando aqui de uma competição tecnológica, onde os EUA visam tirar qualquer tipo de tecnologia que possa oferecer algum tipo de inovação e que não esteja sendo gerida dentro do próprio país ou que não esteja sob controle dos EUA”, diz Bruna Martins dos Santos, gerente de políticas e advocacy da Witness, organização internacional sem fins lucrativos focada em tecnologia e direitos humanos.
“A gente sabe que o Pix é um método de pagamento extremamente inovador e relevante para o contexto brasileiro, com grandes níveis de adesão. De nenhuma maneira ele deveria ser visto como uma prática desleal de serviço de pagamento eletrônico.”
A disputa para lançar o Whatsapp Pay no Brasil em 2020
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“Se há algum eventual prejudicado, é a Meta”, lembra o economista Roberto Kanter, professor dos MBAs de Gestão Estratégica de Negócios da FGV e diretor da consultoria Canal Vertical.
Kanter se refere a uma disputa iniciada entre órgãos do governo brasileiro e a empresa de Mark Zuckerberg em 2020.
O WhatsApp Pay, que pertence à Meta, foi lançado em junho de 2020 no Brasil — o primeiro país a receber a novidade — e permitiria pagamentos por meio do aplicativo, em parceria com a empresa Cielo.
Na época, o Brasil tinha cerca de 120 milhões de usuários do WhatsApp, sendo o segundo maior público do mundo, atrás apenas da Índia.
Poucos dias após o lançamento, a operação do WhatsApp Pay foi suspensa pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por meio de uma medida cautelar.
A análise do órgão, à época, foi de que a Cielo “possui elevada participação no mercado nacional de credenciamento de captura de transações” e que “o WhatsApp possui uma base de milhões de usuários no Brasil, o que pode garantir, na sua entrada, um poder de mercado significante”.
O Cade avaliou que isso dificultaria a replicação do modelo por concorrentes da Cielo, já que havia um acordo de exclusividade entre a empresa e o WhatsApp.
“Há potencialmente consideráveis riscos à concorrência que merecem ser mitigados ou evitados via intervenção deste Conselho, considerando que os efeitos podem derivar da operação e causar danos irreparáveis ou de difícil reversibilidade nos mercados afetados.”
Em novembro do mesmo ano, o Banco Central lançou o Pix. “Quando a Meta foi autorizada a lançar o WhatsApp Pay, meses depois, o serviço não teve a adesão esperada”, diz o economista.
“Essas empresas tentaram e tentam monetizar suas mídias sociais por meio do mobile commerce. No Brasil, não deu certo, não funciona”, diz Kanter.
Ele avalia que, hoje, o Pix não representa qualquer ameaça às big techs americanas.
“Do ponto de vista atual, não faz o menor sentido. O Pix é um sucesso absoluto, mas quem o utiliza é a base da população, classes D e C. Esse público tem uma característica particular: muitos são desbancarizados e abriram conta em bancos digitais que não exigem praticamente nada, porque não oferecem crédito. O banco digital favorece a utilização do Pix. Estamos falando do crescimento de empresas como Nubank, PicPay e Mercado Pago. O Pix não concorre com Apple Pay, Google Pay nem PayPal.”
Kanter avalia, no entanto, que é possível discutir um impacto em empresas como Visa e Mastercard, já que o Pix se tornou o principal meio de pagamento no Brasil, superando cartões de crédito e débito.
“Ainda assim, isso não é justificativa para se abrir um processo por concorrência. Tem muito mais a ver com uma questão política”, afirma.
O diretor para os Estados Unidos da empresa de consultoria Eurasia Group, Clayton Allen, disse à BBC News Brasil que é difícil apontar uma influência geral das big techs sobre a administração de Trump e que esse processo se concentra mais em indivíduos específicos, citando o exemplo de Peter Thiel, cofundador do Paypal, e CEOs de tecnologia a ele associados.
“Eles ainda exercem uma influência enorme, em parte porque muitos de seus aliados ocupam cargos-chave no governo”, citando o caso do vice-presidente dos EUA, JD Vance. Em 2017, Vance criou sua própria agência de capital de risco com o apoio de Peter Thiel. Em 2021, o empresário doou US$ 10 milhões (R$ 55,6 milhões) a um comitê que apoiava sua candidatura ao Senado.
Allen avalia que Trump queria encontrar um pretexto para atingir alguns dos países que foram atingidos por uma tarifa de 10%, entre eles o Brasil, e que a questão do do Pix é uma parte pequena de uma dinâmica muito maior.
“Os problemas de Trump com o Brasil são principalmente políticos.” Para ele, a natureza da ameaça das tarifas é de base política e não econômica, o que pode ampliar barreiras de relacionamento entre os dois países.
Procuradas pela BBC News Brasil, Meta e Apple não quiseram comentar o assunto.
‘O que mais machuca as big techs é que o sistema do Pix funciona bem’
O professor do curso de Administração da ESPM Jorge Ferreira dos Santos Filho, doutor e mestre em administração pela mesma instituição, explica que o Pix foi formulado para responder a uma necessidade da sociedade brasileira pouco bancarizada. “A ideia era criar uma infraestrutura de pagamento que fosse simples, grátis para pessoa física.”
Para que fosse criado, foi preciso exigir que todo sistema de pagamento brasileiro aderisse ao Pix, eliminando a receita de outros métodos.
“Temos de pensar que, para instituições financeiras, de pagamento, como Google Pay ou Paypal, por exemplo, grande parte do resultado vem da remuneração na transferência de pagamento. Aí chegam num país em que a infraestrutura de pagamento é extremamente eficiente, gratuita para pessoa física e muito barata para pessoa jurídica. Como fazem a monetização dos seus serviços? Esse é o ponto que dificulta muito para serviços de pagamento que queiram entrar no Brasil.”
Para o professor, é justamente a eficiência do Pix que “mais machuca as big techs”. Ele avalia que, apesar das críticas sobre possível monopólio, o sistema financeiro brasileiro se adaptou ao Pix e outros de fora que queiram operar no Brasil devem fazer o mesmo.
“O contra-argumento a essa ideia de monopólio é: eu tenho um sistema bancário e de fintechs extremamente robusto, que entrega qualidade para uma população sem renda, em um país com índices de inadimplência historicamente muito altos — e mesmo assim consegue gerar receita e oferecer outros tipos de serviço. Quer operar no Brasil? Tem que se adaptar.”
Discussão sobre moeda dos Brics tem impacto?
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Outro ponto lembrado por especialistas foi a ameaça de Trump, no início de julho, de impor tarifas adicionais de 10% sobre os países do Brics, agrupamento formado por onze países membros: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã.
A ameaça surgiu depois de membros do bloco criticarem políticas tarifárias dos EUA e proporem reformas no Fundo Monetário Internacional e na valorização das principais moedas além do dólar.
“Diversos bancos centrais dos Brics poderiam se conectar e fazer com que a transferência de fundos não precisasse passar pelo padrão dólar. Como alguns desses países não têm meio de pagamento, o Pix poderia ser licenciado e usar como base de pagamento internacional. É algo que poderia mexer com as grandes estruturas de transferência”, avalia Kanter.
“Isso é muito mais uma atitude de negociação preventiva, com uma mão forte batendo na mesa pra estabelecer espaços, do que obrigatoriamente uma discussão sobre se o Pix hoje afeta a economia americana, porque afeta pouquíssimo. É uma argumentação muito vazia.”
Jorge Ferreira dos Santos Filho, professor do curso de Administração da ESPM, avalia que o impacto da pressão dos EUA sobre o Pix não deve ter um grande efeito sobre o sistema de pagamento, mas pode atrasar o projeto de um Pix internacional, que possibilitaria pagamentos a outros países.
“Ele enfrenta uma barreira muito grande. Você já tem, primeiro, instituições consolidadas. No sistema internacional se usa Swift, uma plataforma criada na década de 70 que é muito boa e consolidada. Com essa pressão dos EUA, não sei até que ponto o Pix internacional continua viável no curto prazo.”
Com informações de Julia Braun e Leandro Prazeres*