Papa Francisco: por que povo yanomami fez ritual pelo pontífice
- Author, João Fellet
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
“Um grande xamã se foi.” Foi assim que Dario Kopenawa, uma jovem liderança do povo yanomami, descreveu a morte do papa Francisco à BBC News Brasil.
Kopenawa não é católico – ele diz seguir a “cosmovisão yanomami”, conjunto de crenças não cristãs dessa etnia indígena com cerca de 45 mil membros, espalhados pelo norte do Brasil e sul da Venezuela.
Mas isso não o impede de ver em Francisco características comuns a líderes espirituais de seu povo – grupo que inclui o pai dele, o xamã Davi Kopenawa, que foi recebido pelo papa em 2024 e é um dos grandes nomes do movimento indígena no Brasil.
Para Dario Kopenawa, Francisco era como “uma árvore grande, que faz várias sombras”.
“Quando o papa se foi, foi como se essa grande árvore caísse”, disse o indígena, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, uma das principais organizações da etnia.
O povo yanomami não foi o único grupo indígena a lamentar a morte de Francisco.
Dezenas de organizações e lideranças de outras etnias do país prestaram homenagens ao pontífice, descrito como um aliado que ajudou a divulgar as contribuições e demandas das populações originárias em um mundo em crise.
Francisco se aproximou dos indígenas como nenhum outro papa, afirmam essas lideranças, e consolidou uma mudança iniciada há algumas décadas na relação da Igreja Católica com essas populações.
Em vez da busca por converter indígenas – missão que guiou a organização por séculos -, eles dizem que a postura de Francisco foi a de valorizar as tradições desses povos e apoiá-los em suas bandeiras, como o acesso à terra.
Entre os gestos do papa que se alinhavam com bandeiras indígenas, Kopenawa também destaca sua defesa por “equilibrar nosso mundo” e combater as mudanças climáticas.
Crédito, Vatican News
Primeira encíclica sobre meio ambiente
Francisco abordou a questão climática ao longo de todo seu papado. Em 2015, ele lançou uma encíclica – uma carta oficial dirigida a bispos e fiéis de todo o mundo – associando o consumismo e modelos econômicos predatórios à crise ecológica global.
A carta, batizada de Laudato Si’ (“Louvado sejas”, em italiano antigo), foi a primeira encíclica papal dedicada inteiramente ao meio ambiente e destaca os modos de vida indígenas como exemplo de harmonia com a natureza.
“Para eles [povos indígenas], a terra não é um bem econômico, mas um dom de Deus e dos antepassados”, diz o papa em um trecho da encíclica. Em outro, afirma que, “quando [indígenas] permanecem em seus territórios, são quem melhor cuida deles”.
O líder yanomami diz ainda ser especialmente grato a Francisco por ter cobrado “o governo brasileiro a retirar garimpeiros, melhorar a assistência de saúde e combater a desnutrição no nosso território”, e também por seu papel durante a pandemia de covid-19.
Na época, segundo Kopenawa, Francisco “nos deu um grande apoio como rezador e fez um grande trabalho xamânico para que não morressem tantos indígenas”.
Nos últimos meses, quando a saúde do papa se deteriorava, ele conta que xamãs de seu povo também realizaram trabalhos para tentar “fortalecer o espírito dele, conectando-o com os espíritos dos yanomami”.
“Mas nossos médicos da floresta não curam as doenças da cidade, que são as doenças que ele tinha. Nós só conseguimos curar doenças da floresta, da cachoeira, do animal, da chuva, das montanhas e as doenças do espírito”, diz Kopenawa.
Desde que Francisco morreu, ele afirma que “os espíritos dos xamãs estão chorando e celebrando, recebendo o espírito do papa nas cerimônias deles”.
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Conversões forçadas
A popularidade de um papa entre tantos indígenas é uma novidade na longa e conflituosa relação da Igreja Católica com comunidades nativas.
Desde os primeiros anos da colonização do Brasil, sacerdotes jesuítas – a mesma ordem católica a que Francisco pertencia – assumiram a missão de converter indígenas ao cristianismo, afastá-los de crenças que viam como pagãs e ensinar-lhes práticas agrícolas e culturais europeias.
Para atingir esse objetivo, os religiosos estabeleceram em vários pontos do país comunidades onde indígenas eram agrupados e organizados sob a supervisão dos jesuítas.
Esse modelo orientou a postura da Igreja Católica frente aos indígenas brasileiros por séculos.
Após o Concílio Vaticano 2º (1962-1965), porém, a entidade enterrou de vez as práticas e passou a pregar o respeito à diversidade de culturas e crenças – valores que já guiavam alguns missionários católicos que trabalhavam junto a indígenas.
Encampando esses novos ideais, surgiu em 1972 o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) dedicado à ação entre indígenas.
Em seu site, o Cimi se descreve como “um aliado nas lutas pela garantia dos direitos históricos” dos povos indígenas, e diz agir contra “as estruturas de dominação, violência e injustiça” que os afetam.
Até o papado de Francisco, no entanto, os contatos da alta cúpula do Vaticano com o Cimi eram limitados.
O cenário mudou sob o pontificado do argentino, quando integrantes do grupo tiveram vários encontros com o próprio papa e influenciaram em documentos importantes da igreja – como na encíclica Laudato Si’.
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Sínodo da Amazônia
Em entrevista à revista Época em 2015, o bispo emérito do Xingu – e então presidente do Cimi – Dom Erwin Kräutler contou de uma audiência que teve com Francisco em 2014, quando falou das ameaças enfrentadas por povos indígenas no Brasil.
Kräutler conta que o papa então lhe revelou que escrevia uma encíclica sobre ecologia e pediu que o bispo colaborasse com reflexões. Segundo o religioso, suas ideias foram incorporadas no documento.
Após a encíclica, Francisco também passou a receber indígenas periodicamente no Vaticano, incluindo lideranças dos povos Kayapó, Yawanawá, Borari, Macuxi, entre outras etnias sul-americanas.
E, em 2018, o papa esteve pessoalmente na Amazônia peruana e organizou um sínodo (assembleia de bispos) para tratar da ação da igreja na região.
O atual presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, foi um dos quatro religiosos brasileiros a participar com o papa das reuniões preparatórias para aquele sínodo.
“Foram dois dias com encontros de manhã e de tarde, com momentos de lazer, de cafezinho, e ele estava sempre de bom humor, fazendo brincadeiras com cachaça, futebol, Maradona e Pelé”, diz Paloschi à BBC News Brasil.
Em seu documento final, o sínodo recorreu a uma linguagem poética ao descrever os indígenas como “povos de antigos perfumes que continuam a perfumar o continente contra todo desespero”.
Anos após o sínodo, porém, o bispo emérito do Xingu Dom Erwin Kräutler criticou Francisco por não ter acolhido uma das principais demandas dos sacerdotes presentes: a possibilidade de ordenação de mulheres e homens casados.
Em entrevista ao site católico suíço cath.ch em 2023, Kräutler disse que a medida tinha o apoio de 80% dos bispos no sínodo e ajudaria a sanar um dos grandes problemas da Igreja Católica na região: a falta de padres.
“Mas, no fim, ele não aceitou, o que me frustrou e decepcionou muito”, disse o bispo emérito do Xingu.
Hoje com 85 anos, Kräutler vive na Áustria, seu país natal, e não tem mais dado entrevistas, segundo um assessor do Cimi.
Questionado sobre as críticas do colega, o arcebispo de Porto Velho, Roque Paloschi, diz não considerar oportuno tratar do tema no momento, mas afirma que neste campo “o papa preferiu caminhar mais devagar, mas caminhar com toda a igreja”.
Para Paloschi, o sínodo da Amazônia sensibilizou Francisco ainda mais para as questões indígenas, mas ele afirma que a conversão do papa à causa ocorreu anos antes, em 2007, quando ele ainda não era pontífice.
Naquele ano, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, teve um papel central na 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe em Aparecida (SP), um encontro convocado para discutir os rumos da Igreja Católica na região.
“Ele confessou que o impactou muito, durante a assembleia, a insistência dos bispos da região amazônica, não só do Brasil, levantando a problemática dos povos originários, dos povos extrativistas, dos quilombolas e também a questão da destruição da natureza”, diz Paloschi.
Para o arcebispo, a encíclica Laudato Si’ foi um desdobramento e aprofundamento do documento final de Aparecida, que já valorizava os povos indígenas e criticava a exploração desenfreada de recursos naturais.
Paloschi cita outro ponto de destaque na relação de Francisco com os povos indígenas: ele foi o primeiro papa a se desculpar “pela postura etnocêntrica da igreja, pelo extermínio de línguas, pela demonização da cultura e das espiritualidades dos povos indígenas”.
Uma das ocasiões em que Francisco tratou do tema foi durante uma viagem ao Canadá, em 2022, quando expressou “tristeza, indignação e vergonha” por atos cometidos contra crianças indígenas em internatos católicos que funcionaram no país entre 1870 e 1996.
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Legado sob ameaça?
Questionado se o próximo papa poderia ter um perfil mais conservador e reverter os movimentos de Francisco nas pautas indígena e ambiental, Paloschi diz não ter “nenhum medo de retrocesso”.
“Pelo contrário, os ventos vão continuar soprando e a Igreja precisa continuar vivendo esse caminho de despojamento, de proximidade, de fidelidade e, sobretudo, de uma Igreja que acolhe, que respeita e que não condena”, afirma.
Dario Kopenawa também diz esperar que o próximo pontífice dê continuidade ao papado de Francisco e critica posturas da Igreja Católica no passado, quando “quiseram nos evangelizar e acabar com a cultura dos povos indígenas”.
Para ele, o papa Francisco se opunha “ao preconceito, à discriminação e à violência”, e valorizava as tradições e os conhecimentos das populações originárias.
Kopenawa vai além e diz ver paralelos entre gestos de Francisco e o trabalho de xamãs do povo yanomami para impedir o fim do mundo.
O “apocalipse” yanomami é descrito em “A queda do céu”, livro publicado em 2010 e baseado em entrevistas dadas pelo pai de Dario, o xamã Davi Kopenawa, ao antropólogo francês Bruce Albert.
Nele, os xamãs do povo yanomami são descritos como intermediários entre o mundo físico e o mundo espiritual que trabalham para manter um intrincado equilíbrio no cosmos.
Mas, segundo Davi Kopenawa, se os rituais dos xamãs deixarem de ser feitos ou a floresta for destruída, o céu pode desabar e aniquilar todos.
Para seu filho, Dario, mesmo que o papa Francisco não conhecesse a cosmologia yanomami, ele também “tinha a visão de proteger a humanidade, de evitar a destruição e impedir o desmatamento da Amazônia”.
“Acho que ele também queria evitar a queda do céu”, diz o líder indígena.