‘Pague por seu desperdício’: como Coreia do Sul recicla 97% dos resíduos de alimentos
Crédito, Getty Images
- Author, Alejandra Martins
- Role, BBC News Mundo
“Já estou acostumada. Para mim, é um hábito.”
Yuna Ku é jornalista do serviço coreano da BBC e mora em Seul, capital da Coreia do Sul. A jovem paga para reciclar seus restos de comida, que deposita em máquinas com sensores espalhadas por diferentes pontos onde mora — um condomínio com 2 mil apartamentos.
O sistema de reciclagem de resíduos alimentares da Coreia do Sul pode parecer estranho à primeira vista, mas transformou o país em exemplo para o resto do mundo.
Jae-Cheol Jang é professor no Instituto de Agricultura da Universidade Nacional de Gyeongsang, no sul do país, e coator de um estudo recente sobre o sistema coreano de reciclagem de resíduos de alimentos.
“Dados do Sistema Nacional de Manejo de Resíduos de 2022 mostram que a Coreia do Sul processa cerca de 4,56 milhões de toneladas de restos de alimentos por ano (vindo de casas, restaurantes e comércios menores)”, disse Jang à BBC.
“Dessa quantidade, 4,44 milhões de toneladas são recicladas. Isso representa cerca de 97,5% dos resíduos de comida.”
O número é impressionante.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Agência Ambiental americana estima que, das 66 milhões de toneladas de resíduos de comida gerados em 2019 por restaurantes, casas e supermercados, cerca de 60% foram parar em aterros sanitários.
A ONU calcula que, em 2019, o desperdício de alimentos em casas, comércios e restaurantes chegou a 931 milhões de toneladas no mundo.
Mas como a Coreia do Sul consegue reciclar seus resíduos alimentares de forma tão eficiente? E o que ela pode ensinar a outros países?
Crédito, Getty Images
Campanhas de conscientização e protestos
O sistema sul-coreano é resultado de um trabalho de décadas. Em 1996, o país reciclava apenas 2,6% dos seus resíduos alimentares, mas isso começou a mudar com a transformação econômica iniciada nos anos 1980.
“A década de 1980 foi um período fundamental para o desenvolvimento econômico da Coreia do Sul”, explica o professor Jang.
“Com a industrialização e a urbanização, também surgiram problemas sociais, e um deles foi o manejo de resíduos.”
A Coreia do Sul tem mais de 50 milhões de habitantes e uma densidade populacional alta, de mais de 530 pessoas por quilômetro quadrado.
No Peru, por exemplo, a densidade não chega a 30 habitantes por quilômetro quadrado.
Com as mudanças econômicas, cresceu também o número de aterros sanitários, alguns deles próximos a áreas residenciais, o que gerou muitos protestos.
Crédito, Getty Images
Os restos de comida misturados com outros tipos de lixo causam mau cheiro e produzem líquidos poluentes, que contribuem para as mudanças climáticas.
Quando se decompõem, os resíduos liberam metano, um gás de efeito estufa muito mais potente que o dióxido de carbono.
Pressionados pelos cidadãos, o governo teve que buscar uma solução para o problema dos aterros.
“Havia um forte senso de comunidade para enfrentar os problemas sociais da época, e as políticas de gestão de resíduos do governo, combinadas com esforços nacionais, nos trouxeram até aqui”, afirma Jang.
Em 1995, foi aprovado um sistema que cobrava por volume de resíduo gerado, sem separar restos de alimentos de lixos em geral.
Em 2005, o descarte de restos de comida em aterros foi proibido por lei. E em 2013 foi implementado o atual sistema de Weight Based Food Waste Fee, ou cobrança por peso dos restos de comida, na tradução livre para o português.
O sistema continua evoluindo à medida que a tecnologia avança, mas se baseia em um princípio básico: “você tem que pagar cada vez que joga fora seus restos de comida.”
Sacolas, adesivos e radiofrequência: como funciona o sistema na prática
O sistema de cobrança varia de acordo com a região ou distrito, e até mesmo entre diferentes condomínios.
Mas, no geral, existem três opções:
1. Usar sacolas autorizadas
Para quem opta por usar sacolas para descartar os restos de comida, é obrigatório fazer isso com sacolas autorizadas.
“É o caso dos meus pais, que moram em casa. Eles compram as sacolas e, quando elas estão cheias, deixam no jardim por causa do cheiro. Elas são recolhidas uma vez por semana pelo serviço municipal”, conta Yuna.
Há sacolas de diferentes tamanhos. Uma de três litros custa 300 won sul-coreanos, cerca de 20 centavos de dólar (menos de R$ 1,20 na cotação atual). Uma de 20 litros custa US$ 1,50 (R$ 8,80).
Crédito, Yuna Ku
Comércios e restaurantes geralmente usam adesivos que devem ser comprados com antecedência e colados em cada recipiente de lixo, indicando o peso do conteúdo.
Na Coreia do Sul, os restos de comida nesses locais podem ter um volume bastante significativo devido a uma tradição culinária do país chamada de banchan, em que vários pratos são servidos como acompanhamento dos pratos principais.
3. Usar máquinas com tecnologia RFID
Até junho de 2024, Yuna comprava sacolas, mas seu condomínio passou a usar um sistema automatizado.
Hoje, ela deposita os restos de comida em máquinas equipadas com RFID (identificação por radiofrequência), que transmite os dados por ondas de rádio para um centro remoto.
“Todo dia coloco os restos de alimentos em um recipiente de aço. E, de tempos em tempos, levo esse recipiente até a máquina, que fica trancada. Para abrir, eu preciso digitar meu endereço ou aproximar um dos cartões que eu recebi quando me mudei para cá, e que identifica cada apartamento”, explica.
Crédito, Yuna Ku
A máquina automaticamente pesa os desperdícios. Em alguns casos, o valor é cobrado na hora no cartão de crédito. Em outros, como no caso de Yuna, a máquina registra cada uso feito e o valor final é cobrado em uma conta mensal que inclui outros serviços públicos, como água.
“O que você paga por mês depende da quantidade de comida que você joga fora.”
A jovem, que mora sozinha, paga menos de US$5 por mês (cerca de R$ 30) pelos resíduos de alimentos.
“Eu acho as máquinas mais intuitivas que as sacolas”, diz Yuna.
“Na minha opinião, esse sistema faz com que a gente fique mais consciente dos nossos desperdícios, porque você vê o peso dos restos de comida na máquina toda vez que joga fora.”
Além das máquinas que ficam nos condomínios, alguns distritos contam com caminhões equipados com RFID, que pesam os recipientes de lixo no momento da coleta, calculando o custo.
As multas
Yuna comenta que, no geral, a população usa corretamente o sistema de reciclagem, que além de regular o desperdício, tem regras específicas para o descarte de alumínio, plástico, papel e outros materiais.
Se alguém descarta restos de comida no lugar errado, pode levar uma multa. No caso de estabelecimentos comerciais, a infração pode ser detectada tanto pela quantidade reduzida de lixo registrada quanto por câmeras de segurança.
“No meu prédio teve um caso de advertência, e apareceu um aviso: ‘recentemente, alguém descartou resíduos de alimentos de forma errada. Temos câmeras de segurança e estamos observando tudo. Se continuar fazendo isso, será multado’.”
No caso das residências, as multas podem superar US$ 70 (R$ 400), a depender da frequência da infração.
Já para empresas, Jang diz que as multas podem superar 10 milhões de wons sul-coreanos, que equivalem a mais de US$ 7 mil (R$ 41 mil).
Crédito, Getty Images
Os restos de comida são reciclados com diferentes finalidades. De acordo com Jang, os principais usos, segundo dados de 2022, são para ração de animais (49%), adubo (25%) e produção de biogás (14%).
Mas o sistema de reciclagem da Coreia do Sul ainda enfrenta alguns desafios. Um deles é o possível risco para a saúde animal, já que as rações feitas com resto de comidas mal processados podem transmitir doenças.
“Atualmente, a maioria dos países industrializados proíbe ou limita o uso de restos de comidas em rações para animais”, afirma Rosa Rolle, especialista em desperdício de alimentos da Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura, a FAO (na sigla em inglês).
Em 2019, vários países asiáticos, incluindo a Coreia do Sul, enfrentaram um surto de peste suína africanaa, uma doença viral que causa febre hemorrágica em porcos e leva à morte.
O surto levou o governo sul-coreano a proibir o uso de rações feitas com restos de alimentos em criações de porcos.
Crédito, Getty Images
Rolle esclarece, no entanto, que “há estudos que mostram que, quando são usados os métodos corretos no processamento, as rações feitas a partir de restos de animais são seguras. A indústria suína na Coreia do Sul não foi afetada negativamente pelo uso dessas rações.”
Jang afirma que a Coreia do Sul tem um sistema rigorosamente regulado para processar restos de comida usados como ração, com métodos como o aquecimento e a fermentação.
Outros desafios da reciclagem incluem a alta quantidade de sal nas comidas típicas coreanas (o excesso de sal pode fazer mal aos animais) e a necessidade de melhorar a tecnologia para tornar a produção de biogás mais eficiente.
O que a Coreia do Sul nos ensina
Um dos segredos do sucesso do sistema coreano é o fato de ter diversos pilares, como cobrança por peso de resíduos, multas, campanhas educativas frequentes, que ensinam como separar os resíduos, e conscientização do impacto ambiental do descarte inadequado.
“É uma abordagem integrada, que combina incentivos financeiros, educação pública e regulamentações rigorosas”, explica o professor Jang.
“O sistema tem se monstrado eficaz para reduzir o desperdício de alimentos e pode servir como modelo para outros países que buscam melhorar seus sistemas de gestão de resíduos.”
Outro fator chave é o engajamento por parte da população.
“No geral, os coreanos costumam seguir as regras e têm um forte senso de responsabilidade moral”, diz Yuna.
“Claro que não são todos, mas no geral, é assim. Além disso, comparado com a média salarial na Coreia do Sul, o custo mensal para reciclar os restos de comida não é tão alto.”
Crédito, Korea Environment Corporation
Mas será que um sistema de “pagar pelo desperdício” funcionaria em países com uma renda muito menor?
Para Rose Rolle, políticas como a sul-coreana são muito eficazes para conscientizar a população, mudar hábitos e incentivar a reciclagem.
Mas ela pontua que, em países com insegurança alimentar, como muitos da América Latina, o foco deveria ser em maximizar o aproveitamento dos alimentos por meio da redução de perdas, doações e outras medidas.
Os sistemas de cada país “devem se basear em dados sólidos e ter uma compreensão de onde, por que, e em que quantidade ocorrem os desperdícios e perda de alimentos. As soluções precisam estar fundamentadas em evidências científicas e se adaptar à realidade local.”
Para a especialista da FAO, “não existe uma única fórmula que funcione para todos.”