‘Oscar verde’: como três cientistas da América Latina chegaram ao prêmio — entre eles, uma brasileira
Crédito, Whitley Award/BBC
- Author, Alejandra Martins
- Role, BBC News Mundo
Quando a brasileira Yara Barros ficou frente a frente com uma onça-pintada pela primeira vez, decidiu “fazer o impossível para garantir que aqueles olhos dourados continuassem brilhando na floresta”.
No caso de Andrés Link, foi o contato com um dos primatas mais ameaçados do mundo que definiu seu destino. Já Federico Kacoliris foi impulsionado por uma viagem ao norte da Patagônia a dedicar sua vida a salvar da extinção um pequeno anfíbio.
Os três cientistas latino-americanos — Yara Barros, do Brasil, Andrés Link, da Colômbia, e Federico Kacoliris, da Argentina — receberam na terça-feira (29/4) em Londres um dos prêmios de conservação mais prestigiados do mundo: o Prêmio Whitley, também conhecido como o “Oscar Verde”.
A honraria é concedida anualmente pela fundação britânica de mesmo nome a líderes da conservação na Ásia, África e América Latina.
Barros, Link e Kacoliris não apenas protegem espécies ameaçadas. Eles também constroem ecossistemas resilientes e futuros sustentáveis para as comunidades ao redor.
O trabalho dos três reflete uma combinação de paixão pela biodiversidade, inovação científica e a compreensão de que soluções duradouras em conservação devem incluir e empoderar as populações locais.
Yara Barros, Brasil: ‘Aqueles olhos dourados incríveis cativaram meu coração’
Crédito, Whitley Fund for Nature
Barros é diretora do Projeto Onças do Iguaçu, iniciativa que atua no Parque Nacional do Iguaçu, área protegida com mais de 180 mil hectares no lado brasileiro, famosa pelas suas cataratas.
Ela já tinha uma longa trajetória dedicada à conservação de aves quando, em 2018, teve seu primeiro encontro com uma onça-pintada. A partir desse momento, decidiu dedicar sua vida à proteção do felino.
“Capturamos o Croissant, um macho lindo. Ele estava na armadilha e eu fiquei na frente dele para chamar sua atenção, para que o veterinário conseguisse um bom ângulo para aplicar a anestesia. Foi então que pude olhar bem de perto aqueles olhos dourados incríveis — e eles me cativaram o coração”, contou a cientista à BBC Mundo, o serviço da BBC em espahol.
Crédito, Whitley Fund for Nature
Crédito, Whitley Fund for Nature
Barros e seus colegas do Projeto Onças do Iguaçu buscam transformar a percepção das comunidades locais em relação a esses felinos.
“Realizamos cerca de 400 visitas por ano a propriedades no entorno do Parque Nacional do Iguaçu. Isso cria uma relação de confiança, que também ajuda a combater e eliminar crenças equivocadas sobre as onças.”
“Nós orientamos os moradores rurais sobre boas práticas de manejo para evitar predações e agimos imediatamente em casos de ataque, mesmo de madrugada.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Uma das medidas para prevenir ataques ao gado é a instalação das luzes Foxlights, que funcionam com energia solar ou baterias.
“São dispositivos de iluminação projetados para dissuadir predadores de gado, como lobos, raposas e grandes felinos.”
“Funcionam emitindo flashes de luz aleatórios ao longo da noite, simulando a presença de humanos ou cães de guarda, o que assusta os carnívoros e os impede de se aproximar.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
No extenso Parque Nacional do Iguaçu, a cooperação com a Argentina é fundamental.
“A população de onças da região circula entre o Brasil e a Argentina, então faz todo sentido que os dois países trabalhem juntos para protegê-las. Realizamos ações conjuntas com o Proyecto Yaguareté (onça-pintada em guarani), na Argentina, como campanhas de captura e censos binacionais. Acho que é uma história de sucesso de dois países e dois projetos que uniram forças para conservar uma espécie.”
“O Projeto Onças do Iguaçu utiliza uma linguagem emocional que busca conectar as pessoas às onças-pintadas e ao Parque Nacional, criando um senso de pertencimento e responsabilidade compartilhada por sua proteção”, explicou Barros.
“Transformar o medo em fascínio é uma estratégia que envolve criar uma conexão emocional com as onças.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Barros e sua equipe envolvem escolas, instituições e moradores locais em sua missão de conservação. Um exemplo é a iniciativa Crocheteiras da Onça, que empodera mulheres locais e gera renda alternativa.
“Identificamos o crochê como um talento que muitas mulheres da região já tinham. Encontramos uma professora que deu um curso de amigurumi [arte japonesa de fazer bonecos de crochê] e formamos o grupo Crocheteiras da Onça, que reúne mulheres que vivem nos arredores do Parque Nacional do Iguaçu.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
“Elas produzem amigurumis de onça-pintada, e o projeto ajuda a encontrar compradores entre empresas do setor turístico do Parque Nacional.”
O que significa, para Barros, receber o prestigioso Prêmio Whitley?
“Vejo este prêmio como o reconhecimento por toda uma vida dedicada à conservação de espécies ameaçadas de extinção. É um reconhecimento ao esforço de uma equipe extremamente dedicada para que os olhos dourados das onças continuem brilhando na Mata Atlântica.”
Andrés Link, Colômbia: ‘Devemos fazer todos os esforços para preservar a bela diversidade deste planeta’
Crédito, Whitley Fund for Nature
“Para o meu trabalho de conclusão de curso em Biologia, no ano 2000, tive a oportunidade de viver em uma pequena estação de campo na selva amazônica, e justamente a casinha onde morávamos ficava sobre uma colina por onde passavam com muita frequência alguns macacos-aranha”, relatou à BBC Mundo o cientista colombiano Andrés Link, fundador e pesquisador da Fundação Proyecto Primates e professor da Universidade dos Andes.
“A forma ágil com que esses macacos se movem e o fato de que cada um pode ser facilmente diferenciado por suas marcas únicas no rosto me chamaram muito a atenção, assim como uma fêmea adulta, Emi, que havia acabado de ter gêmeos (Meyo e Meya), o que provavelmente foi minha primeira pesquisa com esses macacos.”
Link e seus colegas lideram o único projeto de estudo e conservação na Colômbia dedicado aos macacos-aranha-marrom (Ateles hybridus), também conhecidos como choibos, que estão em perigo crítico de extinção.
Crédito, Whitley Fund for Nature
Devido ao desmatamento para a pecuária ou cultivo de dendê, o macaco-aranha-marrom está na lista dos 25 primatas mais ameaçados do mundo.
“No vale do rio Magdalena e no nordeste da Colômbia, onde vive o macaco-aranha-marrom, resta menos de 15% do habitat original — e o que sobrou está fortemente fragmentado”, explicou Link.
Crédito, Whitley Fund for Nature
Crédito, Whitley Fund for Nature
Com determinação e envolvendo os habitantes locais, os cientistas estão plantando árvores para reconectar o habitat fragmentado em reservas naturais privadas. Trata-se, como dizem Link e seus colegas, de “tecer florestas”.
“Acho que aqui há duas coisas interessantes. A primeira é a ideia de que os macacos-aranha estão dispersando todos os dias inúmeras sementes das árvores e plantas dessas florestas.”
“São os engenheiros ou semeadores das florestas do futuro”, conclui Link.
“A segunda é que, através dos corredores que plantamos para conectar esses fragmentos de florestas que ainda restam, é como se estivéssemos tecendo pontes entre eles.”
“Esse ‘tecido’ de florestas com seus ‘fios’ ou corredores nos permite alinhar as atividades econômicas, já bem estabelecidas no território, com estratégias bem-sucedidas de conservação da biodiversidade.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Os esforços em torno do macaco-aranha café também permitiram a Link criar um “viveiro” de conservacionistas.
“Através da Fundação Proyecto Primates e da Universidade dos Andes, conseguimos oferecer a oportunidade a mais de 200 estudantes de mais de 12 países [principalmente da América do Sul] para que realizem seus trabalhos de graduação, estágios, práticas ou voluntariado com a fundação.”
“Alguns, depois de mais de cinco anos, ainda trabalham conosco, mas a maioria foi para diferentes setores da sociedade para ter uma importante influência na conservação.”
“É uma das coisas que mais nos orgulha, o fato de apoiar nossos estudantes para que possam avançar em suas carreiras acadêmicas e profissionais e contribuam com mais um grão de areia para a conservação da biodiversidade.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Crédito, Whitley Fund for Nature
A BBC Mundo perguntou a Andrés Link qual é a sua principal mensagem com motivo do Prêmio Whitley.
“Acredito que gostaria de dizer a cada pessoa no planeta que existe uma verdadeira crise da biodiversidade e que, na medida do possível, deveríamos fazer todo o esforço necessário para conservar o que ainda temos e manter a bela diversidade deste planeta, onde cada espécie, se a observarmos com atenção, terá algo que nos causará fascinação e assombro.”
“Convidaria as pessoas a se apaixonarem novamente pelo mundo natural.”
Federico Kacoliris, Argentina: ‘Estamos conservando uma história de milhões de anos’
Crédito, Whitley Fund for Nature
Federico Kacoliris sempre foi fascinado por anfíbios e répteis.
Mas foi uma viagem ao norte da Patagônia, habitat da rã mais ameaçada de seu país, que definiu seu caminho.
“Decidimos fazer uma viagem para a Meseta de Somuncura, onde estava essa espécie única. O que mais nos impressionou foi o local onde essa rã vivia: um pequeno riacho termal no meio da Patagônia árida.
Foi ali que percebemos a situação tão complexa que essa espécie enfrentava e decidimos, em conjunto, iniciar um projeto para salvá-la da extinção”, disse o cientista à BBC Mundo.
Crédito, Whitley Fund for Nature
Esta espécie de rã vive nas cabeceiras de um riacho chamado Valcheta.
Essas cabeceiras são como um oásis no meio do deserto, com água quente e vegetação abundante. Mas a rã do riacho Valcheta enfrenta duas grandes ameaças: a introdução de trutas no rio e o impacto do gado sobre a vegetação, explica o pesquisador.
“As trutas foram introduzidas há quase um século e rapidamente se tornaram o predador topo do riacho. As trutas fizeram com que as rãs e as mojarras endêmicas tivessem que se refugiar em pequenas e isoladas porções de habitat.”
“Mas até mesmo nesses pequenos e isolados habitats, onde se esperaria que as espécies endêmicas prosperassem, elas estão em declínio devido ao gado que destrói a vegetação costeira e pisa no riacho, deixando as rãs sem refúgio e sem habitat para se reproduzir.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Crédito, Hernán Povedano
Kacoliris e seus colegas da Fundação Somuncura protegem e restauram o habitat da espécie com diversas ações, como criar santuários (locais cercados onde o gado não entra) e áreas protegidas.
Eles também promovem o uso de cães de guarda, uma estratégia que deixa claro o quão complexa é a tarefa de salvar uma espécie.
“Fora das áreas protegidas, os moradores locais historicamente mantinham rebanhos de ovelhas como principal atividade econômica, mas devido à predação de pumas ou zorros andinos, passaram a criar vacas, que têm um impacto maior no ecossistema.”
“Os cães de guarda permitem que os moradores continuem criando ovelhas sem sofrer perdas importantes. E também evitam que os pecuaristas acabem matando pumas e zorros.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Kacoliris e sua equipe envolvem as comunidades em seu trabalho. E uma forma de fazer isso é fazer com que as crianças das escolas locais “adotem” rãs criadas em cativeiro antes de reintroduzi-las no meio natural.
Mas como conseguem identificar individualmente cada anfíbio?
“É muito importante poder monitorar as rãs reintroduzidas e acompanhá-las ao longo do tempo para saber se a população está se recuperando. Para isso, as marcamos individualmente com elastômeros visíveis. Esses são biopolímeros inertes e inofensivos para os seres vivos, que permitem, por meio de combinações únicas de cores, identificar cada rã individualmente.”
“Nesse sentido, cada indivíduo apresenta uma espécie de tatuagem nas pernas, pequenos pontos com uma combinação única de cores. Quando as crianças da escola participam das liberações, cada uma adota uma rã e lhe dá um nome.”
Crédito, Whitley Fund for Nature
Crédito, Hernán Povedano
Kacoliris relatou à BBC Mundo que, quando fala sobre seu trabalho de conservação, algumas pessoas lhe perguntam: “E qual é o valor de conservar uma rãzinha?”
“O que estamos conservando é uma história de milhões de anos”, afirmou o cientista.
“Estamos protegendo uma peça chave dentro do delicado equilíbrio ecológico que sustenta o ecossistema do riacho Valcheta. Mas é muito mais do que isso, porque as espécies costumam ser bandeiras [flagship species] de processos de conservação muito mais transcendentes. Novamente, tomando como exemplo essa rãzinha, ao conservá-la estamos conservando todo o seu ecossistema e todas as espécies que dele dependem.”
“Graças a essa rãzinha, muitas pessoas foram contratadas para diversos trabalhos, um time foi consolidado e uma ONG foi criada para se dedicar à conservação da biodiversidade, além de estar sendo criado um Parque Provincial (área protegida) de milhares de hectares. Em resumo, estamos colocando nosso pequeno grão de areia para tornar este mundo um lugar melhor.”