O que esperar do papa Leão 14: ‘Um leão que rugirá no tom de Francisco’
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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Ao longo da história da Igreja Católica, ondas políticas costumam se alternar. Na história dos papados, há ondas de poder ora mais à esquerda, ora mais à direita.
O novo papa deve continuar o legado de seu antecessor, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
O teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes ressalta que o novo papa conhece a América Latina e será “um leão que rugirá no tom de Francisco”.
Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, esta eleição do novo papa “é uma escolha que derruba críticas”.
“Um americano, onde Francisco teve muita oposição, ligado aos pobres, então ligado à Francisco”, diz Ribeiro Neto.
“Uma escolha com uma força política chocante, ainda que eu acredite que o problema não é política, esse é o gesto político mais chocante da Igreja em toda a minha vida”, prossegue.
“Afirma estar em continuidade com Francisco, próxima aos Estados Unidos, mas sem abrir mão do seu perfil.”
Para o vaticanista Filipe Domingues, “do ponto de vista pastoral e de governo, ele está 100% na linha do que os cardeais estavam buscando”.
“É alguém que não vai jogar no lixo aquilo que o Francisco começou e alguém que sabe governar”, afirma Domingues, que é professor na Pontifícia Universidade Gregoriana e diretor no Lay Centre em Roma.
“Talvez seja mais discreto e mais protocolar, um pouquinho mais formal E tem trânsito no mundo americano.”
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A guinada progressista de João 23
O movimento ideológico pendular dos papados foi observado em meados no século passado.
“Entender as sucessões papais como a metáfora do mar que avança e recua é uma maneira de compreender o morde e assopra como a Igreja caminha, com avanços graduais lentos, marcados por processos de um certo controle”, diz Moraes.
Fazia cinco dias que o papa João 23 (1881-1963) havia assumido o comando da Igreja quando confidenciou a assessores próximos que queria convocar um concílio, sem nem consultar a alta cúpula da Igreja.
Em janeiro de 1959, dois meses depois de tomar posse, ele anunciou o Concílio Vaticano 2º, uma notícia pegou o mundo católico de surpresa.
Os anos seguintes veriam uma grande transformação, uma verdadeira guinada na gigantesca instituição religiosa.
Internamente, aquela série de encontros que ocorreu no Vaticano de 1962 a 1965 e envolveu mais de 2,5 mil pessoas de todo o mundo, era vista como uma “atualização” do catolicismo frente aos desafios do mundo contemporâneo.
“O Concílio inseriu mais a Igreja na sociedade. Secularizou a Igreja. Foi um sopro de renovação que irritou muito os conservadores”, comenta à BBC News Brasil o frade dominicano e escritor Frei Betto.
O religioso vê como um gesto de ousadia a convocação do evento por João 23 “sem consultar a Cúria Romana”.
“Ele foi muito inteligente. Se tivesse consultado previamente [as instituições administrativas da cúpula da Igreja], o conservadorismo iria querer travar sua decisão”, afirma Frei Betto.
O aspecto mais visível da mudança nos ritos da Igreja para os fieis foi na própria celebração da missa.
Antes, elas eram em latim, com os padres de costas para os fiéis. Então, passaram a ser feitas na língua local, com interação entre sacerdote e a audiência.
Mas o Concílio também previu uma série de novidades de postura e um catolicismo mais social, pastoral e preocupado com as realidades humanas.
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“Os papados vão construindo o simbólico ao longo da história. A Igreja se organiza em ondas, ora mais abertas a reformas, ora mais voltadas para dentro”, explica o pesquisador Rafael Alberto Alves dos Santos.
“João 23 propôs abrir as janelas para o mundo e deixar o mundo entrar. E com isso reformou não só a liturgia, mas a própria relação da Igreja com a modernidade, com as outras religiões, com as angústias do humano contemporâneo.”
O papa que convocou o Concílio morreu sem ver o evento encerrado. Seu sucessor, Paulo 6º (1897-1978), manteve a toada — concluiu o encontro e teve um pontificado preocupado com direitos humanos, atento sobretudo aos abusos de governos ditatoriais na América Latina.
“De seu pontificado temos a defesa radical dos direitos humanos”, recorda Frei Betto.
“Nesse período, eu e outros frades dominicanos estivemos quatro anos presos sob a ditadura militar brasileira, e Paulo 6º nos deu seu apoio, inclusive nos mandou de presente um rosário com um cartão manuscrito”, prossegue.
“Era um papa muito aberto, muito disposto a dialogar e a enfrentar os novos desafios do século 20.”
A guinada conservadora de João Paulo 2º
Para analistas, esse período considerado progressista na história da Igreja Católica foi interrompido em 1978.
O papado de João Paulo 1º (1912-1978), que sucedeu Paulo 6º, durou apenas 33 dias — o que torna difícil fazer qualquer avaliação sobre seu legado.
Bem diferente do que veio na sequência: os 26 anos do pontificado de João Paulo 2º (1920-2005).
Se por um lado o polonês esbanjava carisma, viajou o mundo e foi o primeiro a ter todos os passos acompanhados de perto pela televisão, um olhar sobre o seu papado encontra muitas marcas de um perfil considerado por muitos como conservador e reacionário.
Durante o pontificado de João Paulo 2º, a Igreja lutou diretamente contra o comunismo, empoderou alas conservadoras como a Opus Dei — que, em 1982, tornou-se a única prelazia pessoal do papa — e perseguiu movimentos considerados à esquerda, como a Teologia da Libertação — algumas de suas lideranças, como o religioso brasileiro Leonardo Boff, foram caladas.
“João Paulo 2º deixou claro que a doutrina não estava aberta a negociações. A Igreja se move muito lentamente”, pontua Santos.
Ele lembra, por exemplo, que durante o pontificado do polonês, a Arquidiocese de São Paulo foi dividida, fazendo da capital paulista a única cidade do mundo com mais de uma diocese em seu território.
Isso costuma ser interpretado como uma maneira encontrada pelo Vaticano, naquele contexto de Guerra Fria, de minar o poder de Paulo Evaristo Arns (1921-2016), o então arcebispo de São Paulo, que era alinhado a movimentos de esquerda.
O papa seguinte, Bento 16 (1927-2022), era um teólogo da Cúria Romana conhecido tanto pela ortodoxia quanto pelo zelo à doutrina.
De 1981 até ser eleito, ele comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão herdeiro do famigerado Tribunal do Santo Ofício que perseguia e condenava aqueles chamados de hereges séculos atrás.
Santos ressalta que, embora este tenha sido um período em que a Igreja “viveu uma onda conservadora”, é importante lembrar que ambos “foram papas pós-conciliares e que respeitaram o Concílio”.
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As figuras de João Paulo 2º e de Bento 16 se consolidaram de forma diversa, embora carregassem a mesma aura de conservadorismo.
“João Paulo 2º foi construído pela mísia como um papa quase monumental, heroico. Ele era um papa que esquiava, que sabia falar com as multidões”, diz Santos.
“Bento foi apresentado como introspectivo, acadêmico, um homem conservador. Quase um administrador, um teólogo sério. Um papa cerebral.”
“Bento acabou sendo mais radical do que João Paulo 2º”, pontua Moraes, explicando que o polonês, embora tenha tido “seu papel na Guerra Fria” também era “um papa muito midiático, com forte penetração junto à juventude”.
Por outro lado, o alemão que o sucedeu “era um homem da Cúria, do sistema, do coração doutrinário da Igreja” e, por isso, se apresentou como “radical no campo da doutrina”.
Para Frei Betto, os 34 anos dos dois pontificados somados “causaram muitos danos à Igreja, que se alinhou às políticas imperialistas de [Margaret] Thatcher [(1925-2013), ex-primeira ministra do Reino Unido] e [Ronald] Reagan [(1911-2004), ex-presidente dos Estados Unidos]”.
“Vimos um anticomunismo exacerbado, sobretudo de João Paulo 2º, que fez a Igreja retroceder. Não conseguiram condenar a Teologia da Libertação, mas a censuraram.”
Para o religioso, isso explica a perda de espaço da Igreja Católica frente ao avanço das denominações evangélicas, porque a instituição teria perdido o contato com o povo.
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A nova onda progressista liderada por Francisco
Com a surpreendente renúncia de Bento 16, em 2013, teve início o papado de Francisco, que foi visto como ponto de inflexão de uma nova onda progressista da Igreja Católica.
O antecessor de Leão 14 implementou uma ampla reforma na Cúria Romana e ajustou a rota da Igreja com discursos de acolhimento às minorias e documentos caros ao debate da crise climática.
Como interpretou o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, Francisco consolidou o Concílio Vaticano 2º.
“Francisco expressou toda a sua opção pelos pobres, a sua aprovação à Teologia da Libertação. E imprimiu à Igreja avanços nesses 12 anos de pontificado”, avalia Frei Betto.
Para Santos, a renúncia de Bento 16 — a primeira em 600 anos — rompeu com que se esperava de um papa. “Ao instaurar o inesperado, se permite que algo novo surja”, diz Santos.
“João Paulo 2º e Bento 16 foram retratados como representantes de uma Igreja da norma. Francisco apareceu desde o primeiro momento como alguém que ouve, que se curva, que abraça.”
Santos pontua que Francisco costumava usar a primeira pessoa do plural em seus discursos.
“Diferentemente de papas anteriores, que usavam o chamado ‘nós majestático’. Ele usava o ‘nós englobante’, incluindo-se entre os fiéis”, explica o pesquisador.
Para Santos, Francisco “reinventou discursivamente o modo de habitar” o papel de líder dos 1,4 bilhão de católicos.
“Foi um papa que se deslocou da autoridade, colocando-se no mesmo patamar. Não falava aos fiéis. Falava com os fiéis, junto aos fiéis. Isso foi muito poderoso, porque retirou da figura do papa a figura sacralizada, colocando-o como um sujeito sensível que compartilha da nossa condição humana.”
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Em sua análise, o argentino simbolizou a mudança não apenas pelo que falou, mas pela maneira como “se deu a ver”, com uma “corporalidade que escapava do majestático, gestos mais simples, roupas mais simples”.
“Que homem você conhece que usa sapato Prada vermelho?”, diz, em alusão ao calçado utilizado por Bento 16.
“Agora, a gente conhece um monte de gente que usa o sapato preto do Francisco, a calça de tergal que muitas vezes apareceu, e isso devolve esse simbólico: o do papel temático do papa como um pouco de humanidade.”
O que esperar de Leão 14?
Ribeiro Neto afirma que essa aparente mudança de rota ocorre de tempos em tempos porque “uma proposta eclesial continua a produzir papas enquanto ela está respondendo às necessidades e aos desafios do momento presente”.
“Quando ela perde essa capacidade de responder às necessidades do momento presente, quando não consegue responder aos desafios que a Igreja está enfrentando, então naturalmente os cardeais vão em busca de uma proposta eclesial alternativa”, contextualiza.
Para o sociólogo, a “exaustão” de uma proposta faz brotar o êxito de um novo caminho.
“João Paulo 2º veio para mudar a rota de uma Igreja que estava exaurida, incapaz de caminhar. Bento 16 continuou nessa linha porque era o caminho que continuava dando as respostas que a Igreja considerava satisfatórias”, prossegue.
A ruptura, interpreta o sociólogo, veio com a renúncia do alemão, que “deixou claro a exaustão daquela linha eclesial que ele representava”.
“Surgiu a necessidade de um papa que trouxesse uma nova proposta eclesial. Entrou Francisco. É uma proposta que ainda está começando a se consolidar”, avalia.
“O novo papa será alguém em continuidade com Francisco. Sem dúvida, existe uma grande demanda dos setores conservadores, da sociedade no mundo. E essa demanda está sendo muito forte e o próximo papa terá que responder a ela.”
Para o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará, a alternância de vieses na cúpula do catolicismo pode ser vista de outra forma.
Ele defende que a Igreja é comandada ora por um defensor do legado de Pedro, ora por um defensor do legado de Paulo.
Ambos os personagens históricos remetem aos primórdios do cristianismo e, embora pouco se saiba sobre suas reais biografias, é consenso entre historiadores que eles existiram e foram fundamentais ao início do movimento que depois se tornaria a Igreja Católica.
Pedro teria sido um dos doze seguidores de Jesus, os chamados apóstolos. Segundo o relato bíblico, era um homem simples, pescador, que teria sido eleito pelo próprio Jesus como aquele que deveria liderar o grupo — por isso, a tradição o considera o primeiro papa.
Ele teria viajado por diversas regiões disseminando os ensinamentos daquele protocristianismo e, acredita-se, chegado até Roma.
Paulo, por sua vez, era um soldado romano que, convertido à fé cristã depois da morte de Jesus, acabaria se tornando um grande intelectual daquele período, autor de muitas das cartas do Novo Testamento.
Muito da doutrina da Igreja se baseia nos fundamentos de sua obra. Diversos especialistas acreditam que o cristianismo só se tornou uma religião por causa do trabalho de Paulo.
“João 23 era o papa bom, o avô da humanidade. Todo mundo se apaixonou por ele, um homem de costumes simples. Era Pedro”, analisa Lira.
Na sequência, segundo sua visão, Paulo 6º “veio numa linha de organização mais teórica e, como o próprio nome que assumiu, era Paulo”.
“João Paulo 2º foi novamente Pedro, o homem que foi a todos os lugares, ao encontro de todos. Depois, Bento 16, novamente Paulo, o intelectual. E Francisco, uma coisa fantástica, mais uma vez Pedro”, analisa Lira.
“De forma que vejo a Igreja como um organismo que continua sendo comandada por Pedro, [considerado] o primeiro papa, e por Paulo, a pessoa que a estruturou”, completa ele.
“Vamos ver as características do novo papa, mas acho que vem um Paulo por aí.”
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Mas nem toda interpretação segue o discurso da alternância. Há intelectuais católicos que interpretam a sucessão papal como uma continuidade, entendendo que a milenar instituição avança — muitas vezes lentamente, tal e qual um gigante com pés de barro — justamente porque um sumo pontífice parte do magistério construído por seus antecessores.
“Eu vejo continuidade, não vejo ruptura. Só que é uma continuidade a partir de estilos diferentes, prioridades talvez diferentes, personalidades diferentes”, diz Domingues
Cada pontificado vive um “processo de maturação” em relação aos avanços que o precederam.
“Por exemplo, João Paulo 2º fortaleceu muito os leigos, incentivou-os a participar na Igreja”, cita, para enfatizar que o papa polonês também implementou mudanças previstas pelo Concílio Vaticano 2º.
“Nessa linha, não dá para a gente dizer que ele foi conservador ou ultraconservador”, prossegue.
“E Francisco foi de fato progressista? Em relação ao quê? Porque em relação aos progressistas, ele é conservador. Em relação aos conservadores, ele talvez seja progressista. Então depende de como a gente está comparando”, diz.
“A gente tende a ficar no ‘conservador’, no ‘progressista’, mas isso é muito redutivo. A realidade é muito mais complexa.”