O que é sionismo — e como seu ‘criador’, Theodor Herzl, imaginou (e negociou) o Estado de Israel
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- Author, Vinícius Mendes
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
Quando as primeiras 300 cópias de O Estado Judeu (Der Judenstaat) começaram a ser distribuídas pelas ruas de Viena, capital do então Império Austro-Húngaro, em 1896, nem a editora nem o seu autor, o advogado, dramaturgo e jornalista Theodor Herzl, acreditavam que ele seria lido por muita gente.
A obra expressava a visão — já existente havia anos — de que a criação de um Estado nacional judaico seria a solução para o crescente antissemitismo na Europa. Ele defendia a ideia em contraposição à defesa da assimilação dos judeus nos países em que se encontravam, como a Rússia, Polônia, Alemanha ou França, por exemplo.
Herzl chegou a ver, no fim da sua vida, o livro dar origem ao movimento sionista moderno, tal como queria. Mas não chegou a testemunhar seu principal objetivo alcançado — a criação de um Estado de Israel. Isso representou o que os judeus chamam de retorno e os palestinos, de tragédia (nakba).
Hoje, mais de um ano e meio após o início da guerra em Gaza, as discussões sobre a origem e o caráter do sionismo continuam gerando debates e disputas políticas em vários países.
O confronto em Gaza foi iniciado após o ataque do grupo palestino Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 que deixou mais de 1.200 mortos, a maioria civis, além de 251 levadas para o território palestino como reféns. A dura resposta israelense, com uma ampla campanha militar contra o Hamas, deixou mais de 50 mil palestinos mortos até agora — também civis em sua maioria —, segundo o Ministério da Saúde controlado pelo grupo palestino.
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As leituras sobre Herzl
A guerra, porém, trouxe à tona novamente as várias possibilidades de entender o papel de Herzl, morto em 1904, na História.
Para eles, o jornalista estabeleceu as bases do retorno à Terra Prometida de acordo com o relato bíblico. Não foi à toa que, quando Israel foi fundado, em 1948, foi Herzl quem recebeu uma menção inequívoca na Declaração de Independência, além de ser reconhecido, naquela ocasião, como “pai espiritual” do Estado judeu.
Para Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), essa é a faceta mais relevante do livro — assim como a mais atual no contexto da guerra com o Hamas. “A imaginação de Herzl sempre foi de um Estado puramente judeu, consequência da sua inspiração no nacionalismo alemão da sua época, que era profundamente culturalista”, diz ele.
“A existência de um Estado pluriétnico, como o Brasil, os EUA, a África do Sul, é impensável desde o dia um do sionismo. E é isso que virou a nakba [tragédia, em árabe], a expulsão dos palestinos do território e, agora, esse conflito”, completa Huberman.
Outros grupos o veem, ao contrário, como idealizador de um sionismo tolerante que foi abandonado no meio do caminho. Para estes, Herzl inclusive estipulou as bases da solução dos dois Estados, como proposto pelo plano de partição aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, antes da fundação de Israel, e rejeitado pelos palestinos à época. É a leitura do historiador Michel Gherman, que leciona no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Ele [Herzl] é um ótimo exemplo de uma ‘arquitetura de memória’. Foi arquitetado para ser o fundador de Israel com base em uma ideia de organização, de neutralidade, como alguém que se identifica com todas as correntes. Os antissionistas usam a imagem dele hoje para depreciar o sionismo”, analisa.
Já para árabes e palestinos, Herzl é um dos principais responsáveis pela nakba, como eles chamam a criação de Israel com a consequente expulsão e fuga de cerca de 700 mil pessoas da região à época.
“Ele tinha o mesmo discurso colonizador que os países da Europa Ocidental da época. Não foi à toa que vislumbrou um Estado de Israel a partir da imagem dos Estados europeus”, explica Gilbert Achcar, libanês, professor na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, na sigla em inglês) da Universidade de Londres, no Reino Unido.
“A ideia de construir um Estado para os judeus em uma terra habitada por outras pessoas significava encontrar um jeito de lidar com elas”, diz ele.
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‘A questão judaica’
Muitos historiadores, como o alemão Alex Bein e o britânico Simon Sebag Montefiore (ambos judeus), por exemplo, reforçam que o objetivo de Theodor Herzl com seu livro não parecia ser, de fato, um sucesso editorial, mas fazê-lo chegar em mãos poderosas da Europa. Não foi à toa que ele escreveu uma frase mais apelativa na capa do manuscrito original, impresso e publicado em fevereiro de 1896 em Viena e em Leipzig, hoje cidade alemã: “proposta de uma solução moderna para a questão judaica”.
“‘Questão judaica’ era a síntese da pergunta: o que fazer com os judeus?”, explica Gherman, que também é pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel.
Em meados de 1870, cerca de 4 milhões de pessoas de origem judaica viviam pela Europa — no Império Austro-Húngaro, na Inglaterra, na França e na Alemanha, mas também na Rússia, onde viviam sob a sombra de pogroms, como ficaram conhecidos os episódios de violência civil contra judeus. Era uma presença que suscitava reações, sobretudo, de caráter racial.
Para Derek Penslar, do Departamento de História da prestigiada Universidade de Harvard, nos EUA, Herzl estava menos preocupado com o Estado em si que seria criado, mas com a forma como ele funcionaria.
“Ele se importava com o mecanismo que os judeus usariam para ir em direção a um futuro Estado, e como essa estrutura estatal seria erguida”, afirmou à BBC News Brasil.
Para Gherman, não havia tantas alternativas à “questão judaica”: de um lado, correntes liberais defendiam a inserção deles nas sociedades europeias, tornando-os cidadãos. De outro, movimentos de esquerda reforçavam um caráter operário para atraí-los aos nascentes projetos revolucionários.
Em paralelo, grupos cresciam significativamente em vários países do continente vociferando que os judeus precisavam ser, antes de tudo, excluídos.
Foi o início, ao menos no discurso, do Holocausto, que assassinou 6 milhões de judeus na Europa entre as décadas de 1930 e 1940 em meio à Segunda Guerra Mundial. Herzl não chegou a vê-lo, embora tivesse se assustado muito com seus movimentos iniciais, ainda no século anterior, na França.
Mas o sionismo nunca foi um movimento único.
Basta lembrar que, em 1975, alguns anos depois da Guerra dos Seis Dias, a ONU tentou coordenar uma aceitação internacional contra qualquer forma de antissemitismo, mas a reunião acabou do avesso, com uma resolução apoiada pela União Soviética e por países árabes e aprovada por 72 países, com 35 votos contra e 32 abstenções, afirmando que o sionismo, como movimento e como ideia, equivalia ao racismo e à discriminação racial — tal como praticado, à época, pela África do Sul do apartheid.
Na mesma época, a direita chegou ao poder pela primeira vez em Israel. A decisão da ONU só seria revogada em 1991.
Hoje, O Estado Judeu de Herzl é muitas coisas, com significados diferentes para pessoas diferentes. Versões originais de 1896 são vendidas em leilões por até o equivalente a R$ 75 mil. Suas cópias são lidas em centros judaicos, escolas, sinagogas e mesmo em movimentos juvenis como a obra que pavimentou a volta dos judeus à “Terra Prometida” e, em centros árabes, como a ruína definitiva dos palestinos.
Hoje, mais do que nunca, especialistas se debruçam sobre o texto para comparar a ideia original do seu autor com o que Israel se tornou.
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Um jornalista em Paris
Até ser convidado pelo prestigiado jornal vienense Neue Frëie Presse para ser correspondente em Paris, em 1892, a “questão judaica” não era totalmente central na vida de Theodor Herzl.
Porém, naquele final do século 19, o antissemitismo na capital francesa era muito mais intenso do que em Viena. Pequenos jornais publicavam textos abertamente antissemitas — um deles, o La Libre Parole, fora fundado apenas com esse objetivo —, enquanto reuniões em cafés da cidade se tornavam, pouco a pouco, um movimento político consistente.
Em 1893, em meio a relatos esparsos de violência contra judeus nas ruas, Herzl admitia uma preocupação mais profunda. “A questão judaica não é nem nacionalista, nem religiosa. É uma questão social”, escreveu no Neue Frëie Presse.
“A ‘questão judaica’ envolvia uma segunda pergunta: o que os judeus pensam sobre si mesmos?”, diz Michel Gherman, da UFRJ.
Não havia muitas respostas no horizonte e, nos anos que antecederam O Estado Judeu, Herzl transitou por três delas: em um primeiro momento, defendeu uma assimilação à cultura europeia pela conversão ao cristianismo. Depois, passou meses advogando por um movimento sintético do judaísmo como religião até que, já com o livro em mente, mergulhou na ideia — não tão nova — de que a solução da questão judaica era, sim, de caráter nacional.
Esse é um aspecto definitivo para entender os efeitos contemporâneos do livro, na visão de Bruno Huberman.
“Herzl era um austro-húngaro com forte influência alemã. Se ele fosse francês ou estadunidense, o sionismo hoje seria outra coisa. Ao partir da ideia de que o antissemitismo era irresolvível, que não havia solução, ele, então, fundamentou um nacionalismo que não apenas estabeleceu uma nação étnica e cultural judaica como o tornou uma ferramenta de negociação política com os imperialistas europeus”, diz ele, que é autor do livro Colonização neoliberal de Jerusalém (PUC-SP, 2023).
Muitos estudiosos concordam que O Estado Judeu é uma consequência imediata do “caso Dreyfus”, cujo palco principal foram as ruas parisienses.
É o nome que a história carregou da prisão perpétua à qual o soldado francês de origem judaica Alfred Dreyfus foi condenado em 1894, aos 35 anos, acusado de revelar segredos militares franceses para o governo da Alemanha.
Até o veredito sair, seus julgamentos foram se tornando cada vez mais populares e viscerais na mesma intensidade, enquanto a imprensa reforçava que o réu era, antes de tudo, judeu.
Quando outro oficial descobriu que o verdadeiro informante era um major do exército, a cúpula militar do país se viu pressionada pela multidão enfurecida e não hesitou: absolveu o culpado original e, no mesmo movimento, forjou provas para manter Dreyfus preso na Guiana.
A França ficaria socialmente fraturada pelo caso pelo menos até 1906, quando ele foi inocentado.
“Ali Herzl ficou convencido de que não existia nenhuma chance de assimilação e que a solução da questão judaica era um Estado mesmo”, concorda Gherman.
O próprio jornalista admitiu, em uma carta de 1899, que ver Dreyfus enfurecer a população de Paris mesmo depois de provar sua inocência tinha sido algo horroroso. “Era mais do que um erro judicial: era o desejo da vasta maioria de franceses de condenar um judeu. Justo onde? Na França! Na republicana, moderna e civilizada França!”.
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Fundador do sionismo?
No fim do século 19, o sionismo não era exatamente uma novidade.
Em 1836, um rabino ortodoxo prussiano já havia sugerido à própria família Rotschild que comprasse a Palestina do então governador-geral egípcio que a havia invadido anos antes, Muhammad Ali.
Foi o rabino, aliás, quem batizou sua ideia usando o nome bíblico de Jerusalém (e da cidade celestial dos cristãos): Sião e, daí, “sionismo”.
O foco na Palestina se justificava como o lugar onde o povo judeu se originou, segundo a Torá, ou o Velho Testamento, e que ocupou por séculos.
De acordo com o relato bíblico, foi para lá que Abraão (considerado ‘pai’ das três grandes religiões monoteístas, judaísmo, cristianismo e islamismo) rumou após um chamado de Deus para que levasse seu povo ao que seria sua “terra prometida”.
Antes de Herzl, Moses Hess, que influenciou o comunismo de Karl Marx, escreveu Roma e Jerusalém em 1862, também em Leipzig, na Alemanha, argumentando que o crescente nacionalismo europeu desembocaria inevitavelmente no antissemitismo, e que a única forma de evitá-lo era criando uma sociedade judaica na Palestina.
Duas décadas depois, segundo o historiador Simon Sebag Montefiore, cerca de 25 mil judeus, quase todos russos, começaram a chegar ao território palestino, inaugurando o movimento de aliyah (“retorno”) dos judeus.
Mas, então, por que Herzl entrou para a história como fundador do sionismo?
Para Penslar, de Harvard, a resposta está na capacidade de mobilização que ele tinha, além das ferramentas ao alcance das suas mãos.
“O livro não vendeu muito, mas ele passou a falar sobre suas ideias em incontáveis discursos e em artigos na imprensa”, diz o professor. “Na verdade, não foi O Estado Judeu em si que fundou o sionismo, mas sim a sua criação da Organização Sionista e os vários congressos que ele passou a convocar a partir de então”, continua.
Michel Gherman, por sua vez, lembra que mesmo a estrutura sionista erguida após o livro não dava indícios de que teria sucesso no futuro próximo.
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O primeiro grande encontro organizado por Herzl, em agosto de 1897 na Basiléia, na Suíça, foi um “fracasso”. “Estavam ali só algumas centenas de pessoas e uns poucos delegados da Europa Ocidental, a maioria da Oriental, que nunca tinham se visto”, diz o professor da UFRJ.
“Ainda assim, Herzl saiu dele dizendo que havia, enfim, criado o Estado judeu da Palestina e, numa outra frase genial e trágica daquele momento, que ‘ninguém entenderia o que havia acontecido ali em cinco anos, mas com certeza entenderiam em 50′”.
Historiadores como Sebag Montefiore e Alex Bein colocam o papel determinante de Theodor Herzl no que ele fez com o livro em mãos depois da publicação.
Eles contam que o jornalista conseguiu bater nos portões dos grandes palácios da Europa e ser recebido pelos seus donos: famílias afortunadas, rabinos poderosos e, principalmente, governantes — como Bismarck, na Alemanha, ou primeiros-ministros britânicos.
“Ele tentou mesmo angariar apoio dessas duas potências, especialmente, para seu projeto de um protetorado judeu na Palestina”, concorda Derek Penslar.
“Mas era uma perspectiva específica de Estado”, rebate Gherman. “Ele queria vender aos impérios a ideia de que era possível resolver o problema tirando os judeus da Europa. Dentro da comunidade judaica, ele dizia que dava para fazer isso levando os judeus para a Palestina”.
Para Montefiore, era tudo uma estratégia política, pensada sobretudo depois que Herzl viu a multidão enfurecida diante de Dreyfus nas ruas de Paris.
“Ele acreditava em um sionismo não construído de baixo para cima, por colonizadores, mas concedido por imperadores e financiado por plutocratas”, diz. “Decidiu, então, que o seu Estado judeu deveria ter o alemão como idioma — e por isso se voltou ao próprio modelo de monarca moderno: o kaiser alemão”, completa.
Esse kaiser era, à época, Guilherme 2º, o último imperador que, décadas depois, colocaria a Alemanha na Primeira Guerra Mundial.
À época, a Europa repercutia as notícias de que ele planejava visitar os governantes do Oriente Médio em uma longa viagem pela região, incluindo o sultão do Império Otomano e uma estadia em Jerusalém.
Para Herzl, porém, Guilherme 2º servia como imagem do seu Estado ideal — e deixou isso bem registrado. “Nesta grande, forte, moral, esplendidamente governada, rigidamente organizada Alemanha…”, escreveu em um artigo de 1897, por exemplo. “Por meio do sionismo, será mais uma vez possível aos judeus amar esta Alemanha”.
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Uganda, Argentina, Chipre… Palestina
Enquanto judeus russos compravam lotes em áreas esparsas da Palestina, nas décadas finais do século 19, a alternativa da nação judaica que se desenhava na Europa também mirava outras partes do mundo para erguer o Estado de Israel.
Quando Herzl escreveu O Estado Judeu, duas dessas regiões alternativas estavam sobre a mesa: a do próprio território palestino, já repetida em diversos contextos naqueles tempos, ou a Argentina – para onde judeus iam atraídos pelo projeto da Associação de Colonização Judaica (JCA, na sigla em inglês). Essa associação, criada no final do século 19, tinha como objetivo facilitar a migração em massa de judeus da Rússia e de outros países europeus para colônias agrícolas estabelecidas nos Estados Unidos, Canadá, Brasil, Argentina e na própria Palestina.
Em 1889, um navio de bandeira alemã atracou no porto de Buenos Aires, capital argentina, com centenas de famílias judias fugindo do contexto violento europeu. Duas décadas depois, assentados em diferentes cidades ao redor do país, a população judaica já somava cerca de 100 mil pessoas. Hoje, ela é de 250 mil, segundo dados oficiais.
Mas, além destas opções, ainda havia uma outra: construir um Estado judeu na atual Uganda, na África Oriental. A ideia era do governo britânico, que anos depois chegou a oferecer formalmente grande parte do território colonizado, ao longo de uma linha férrea onde hoje se estende parte do Quênia, para os sionistas.
Herzl aceitou temporariamente a oferta como forma de resgatar judeus sobreviventes de um pogrom na atual Moldávia, em 1903. Pogroms eram manifestações violentas espontâneas ou premeditadas contra judeus e outros grupos étnicos e religiosos, sobretudo na Europa Oriental.
“A Uganda havia sido resultado, principalmente, das conversas que ele estabeleceu na Europa nesses anos pós-O Estado Judeu“, explica Gherman.
“Ele estava indeciso”, revela Derek Penslar, que leciona História Judaica em Harvard. “No livro, Herzl dá mais atenção à Palestina do que à opção argentina e, quando se envolveu de fato na política sionista, percebeu que existia uma preferência gigantesca pelo território palestino entre os judeus”, continua.
Gherman vai na mesma direção. “Ele notou que não daria para renunciar à Palestina, muito embora não estivesse convencido dela. Quando sugeriu outras opções aos judeus da Europa oriental, por exemplo, foi muito mal-recebido, porque naqueles círculos não havia outra perspectiva que não a Palestina”.
Na perspectiva árabe, essa convicção rígida dos judeus sobre o retorno à Palestina é lida como fundamento do colonialismo que teria estado na origem de Israel — e que se revelaria desde que o país foi efetivamente criado até a invasão a Gaza em 2023.
“Quando o sionismo definiu a Palestina como lugar da independência judaica e da construção do seu Estado, estava claro que só poderiam avançar — isto é, fazer da Palestina um Estado judeu — tirando os palestinos de lá”, explica o historiador Ilan Pappé, da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Pappé usa como exemplo os assentamentos na Cisjordânia, mas também no Egito e na Síria depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel ampliou seu território e assumiu o controle de Jerusalém — antes repartido com a Jordânia. Para os árabes, foi a al-naksa (“revés”). Nesse sentido, o sionismo seria sempre uma força expansionista de si mesma.
“O livro foi mais um movimento político nesse sentido”, prossegue Gilbert Achcar, da SOAS, em Londres. “A preferência sempre foi pelo território palestino. Os judeus não aceitavam outro lugar, apesar das tentativas que foram feitas”.
Para Bruno Huberman, tão importante quanto a ênfase na Palestina foi a concordância, entre todos os polos, sobre a gênese do Estado de Israel.
“Os burgueses queriam um Estado capitalista. Os religiosos queriam um Estado religioso, inspirado até nos países muçulmanos. Os socialistas, por sua vez, queriam um Estado para os trabalhadores judeus. O que todos eles concordavam é que deveria ser um Estado de pureza étnica calcada nesse nacionalismo cultural”, diz ele.
“O território da Palestina era, dessa forma, a raiz comum, cultural, étnica, de todos os judeus do mundo. Foi a explicação histórica que Herzl estabeleceu”, prossegue.
Mas essa solidez da opção palestina, aliás, não aconteceu sem o peso das forças geopolíticas da época.
O papel soviético é particularmente significativo, já que é um consenso que a criação de Israel não teria sido possível sem Moscou — que, até anos antes da votação na ONU, em 14 de maio de 1948, que criou o Estado de Israel, era ferrenhamente contra a ideia.
Nos últimos anos, pulularam descobertas de documentos soviéticos não só manifestando apoio aos planos dos futuros israelenses, mas fornecendo até suporte militar e político aos sionistas.
Mais do que isso, a URSS se colocou como alternativa à administração britânica da Palestina, no fim da Segunda Guerra, por se julgar “livre tanto da influência judaica quanto da árabe”.
Nos anos 1970, porém, foram os mesmos soviéticos que encabeçaram a resolução da ONU que comparou o sionismo ao racismo, reagindo à pressão por uma condenação formal ao antissemitismo.
Perto da sua morte, em 1904, enquanto os pogroms se tornavam rotina em diferentes regiões europeias, Herzl chegou a sugerir uma quarta opção às autoridades britânicas: o Chipre.
O plano, porém, não avançou, e a Palestina desejada nos congressos sionistas foi permanecendo sozinha no horizonte.
“Herzl, na verdade, sabia pouco sobre o território palestino”, conta Penslar. Ainda assim, era o suficiente para entrar na negociação mais relevante desde que havia publicado o livro: durante seu giro pelo Oriente Médio com o kaiser Guilherme 2º, nas vésperas do fim do século.
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Atrás de Guilherme 2º
Em 1898, depois de muitas tentativas, Herzl conseguiu uma audiência privada com o imperador alemão em Istambul, antes da visita que ele faria ao sultão otomano, Abdul-Hamid, que já governava a Palestina.
Foi um momento nevrálgico da vida dele, da história do seu livro e do sionismo inteiro — tanto quanto dos israelenses e dos palestinos de agora.
Herzl ouviu do kaiser o que tinha esperado todos aqueles anos: que a Alemanha apoiava sua causa, e respondeu a ele com um único pedido: a chance de se encontrar com Abdul-Hamid em Jerusalém para negociar a Palestina.
Não deu certo, mas o próprio Guilherme 2º levou o projeto sionista ao sultão, que o negou com rispidez. “Quando meu império for dividido, talvez consigam a Palestina de graça”, respondeu, de acordo com Montefiore.
A estrutura sionista que Herzl havia montado, porém, crescera para além dele — e do seu livro —, de forma que o próprio jornalista ficou escanteado nos congressos seguintes (quase todos realizados na Basiléia, até Londres receber a quarta edição, em 1900).
Em 1904, quando ele morreu, na Áustria, já não se tratava apenas de encontros pequenos, mas de uma verdadeira organização político-econômica que envolvia desde autoridades nacionais a sistemas bancários.
Não à toa, o movimento organizara a cobrança de uma taxa de filiação e os bancos já tinham fundos abertos para financiar o projeto estatal. A criatura era, ali, muito maior do que o criador.
“É curioso que Herzl tenha sido uma figura pouco importante durante a vida e muito relevante depois da morte. Há uma grande diferença entre o tempo em que ele escreveu o livro e o que fizeram com ele depois”, reflete Michel Gherman.
Derek Penslar corrobora, observando como a figura dele hoje permite usos sociais e políticos distintos.
“Herzl simboliza, na verdade, o que os sionistas acham que o sionismo e que Israel deveriam ser”, observa. “É por isso que ele não tem identidade fixa, mas está em todo lugar”, completa.
O professor lembra, por exemplo, das mudanças no espectro da política interna israelense, todas marcadas pelo pano de fundo de diferentes sionismos — e, assim, de diferentes Herzls. Até o fim da década de 1970, o país fora governado por partidos de esquerda, como o extinto Mapai, de tradição socialista.
O primeiro líder de direita a comandar Israel, Menachem Begin, chegou ao poder em 1977 anos depois de fundar o também primeiro partido direitista em Israel, o Likud — mesma agremiação de Netanyahu.
Muitos especialistas apontam que parte dessa transformação se deu por causa das políticas migratórias daquele período, que atraíam principalmente judeus russos, mais conservadores, além da crise econômica herdada dos anos 1960 e dos efeitos da Guerra Árabe-Israelense de 1973, quando Egito e Síria atacaram Israel conjuntamente.
“A crise da segurança externa, que foi muito forte, recaiu sobre a então primeira-ministra [Golda Meir], do Partido Trabalhista. Ela foi colocada como principal responsável, já que seu governo não emitiu alertas anteriores”, diz Gherman.
“Mas também pela reação demorada [após os ataques], que enfraqueceu o partido e fortaleceu o Likud”, completa o pesquisador.
“Para a esquerda israelense, Herzl representa hoje a democracia liberal, a abertura ao mundo, o limite da religião na vida pública e a tolerância com os palestinos. Mas, para a direita, ele simboliza o orgulho judeu, a determinação, a força e um nacionalismo sem remorsos”, diz Penslar.
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Do ‘Estado Judeu’ aos diários de Herzl
Michel Gherman gosta de observar O Estado Judeu pelo que ele não se tornou. No caso, no país que Herzl teria imaginado no livro.
“Ele não pensava em uma língua nacional, assim como seu Estado não manteria um exército. O projeto era de uma monarquia constitucional, sem representação democrática, mas que conseguisse ouvir os desejos das pessoas. Acho que, na cabeça dele, Israel seria como o modelo suíço: com culturas independentes representadas em cantões”, conclui.
Derek Penslar, por sua vez, se apega mais ao que Herzl escreveu em Velha Nova Terra, um romance publicado em 1902, quando o antissemitismo estava institucionalizado em parte da Europa e a Palestina parecia, para os judeus, o único lugar possível onde erguer seu Estado.
“É interessante porque ele não fala de um Estado, mas de uma ‘nova sociedade’. Não há menção a soberania, exército ou fronteiras rígidas. Ele descreve, ao contrário, uma sociedade próspera, pacífica, construída a partir de propriedades comunais e guiada por técnicos, mas, acima de tudo, democrática: com direitos iguais para judeus e não-judeus, como os árabes”.
São perspectivas relativamente antagônicas à de Bruno Huberman, da PUC-SP, para quem o projeto nacional de Israel sempre foi alicerçado na expulsão dos palestinos que estavam no território antes da criação do Estado.
Para além dos livros, ele se vale dos diários do jornalista que foram publicados mundo afora ao longo do século 20. Neles, ao contrário de uma visão pacífica, Herzl chama os habitantes da Palestina de “pobres” que deveriam ser “expropriados e removidos com discrição”.
Em outro trecho, se mostra preocupado em encontrar um jeito de estimular os palestinos a “cruzarem as fronteiras em busca de emprego nos países de trânsito, enquanto lhe negamos emprego em nosso próprio país”.
“A existência daquelas pessoas sempre foi um problema para sionistas — como Herzl. Desde o primeiro dia. Ele escreveu muito sobre como lidar com isso, e sempre pela sua perspectiva nacionalista cultural”, analisa.
Com Velha Nova Terra em mãos, Gherman lembra que Herzl não o escreveu, mas o sonhou — e então o colocou no papel.
O sonho se passava em Haifa, cidade portuária hoje israelense perto da fronteira com o Líbano, que chama atenção por conseguir fazer o que Jerusalém não pôde: manter árabes e judeus juntos. “De alguma forma, ele morreu deixando claro que dava para ambos viverem em paz”, diz o professor da UFRJ.
“Não chegou lá, mas se ele tivesse vivido até 1945, não tenho dúvida nenhuma de que ele seria um defensor dos dois Estados”, finaliza.