Morte do papa Francisco: ‘Ele fez um papado de resistência à extrema direita’, diz teólogo
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- Author, Mariana Schreiber
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
O papa Francisco, falecido nesta segunda-feira (21/4), liderou a inclusão da Igreja Católica no século 21 e tornou seu papado um foco de resistência à ascensão global da direita mais conservadora, analisa o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
À frente do Vaticano por 12 anos, Francisco tornou o catolicismo mais aberto aos homossexuais, ao autorizar que casais do mesmo sexo recebam a benção de padres, e adotou posicionamentos firmes em questões globais, como o repúdio à concentração de riqueza e à exclusão de imigrantes, exemplifica.
“Com um capital político gigantesco advindo da sua força religiosa, ele soube dar os recados aos poderosos, aos pretensos tiranos. Foi uma voz muito profética de combate a essa extrema direita no mundo”, afirma Moraes.
“Acho que o maior recado de Francisco é que é possível ser um cristão praticando verdadeiramente o Evangelho no século 21. E isso significa saber escolher as lutas corretas, e, principalmente, ter uma prática coerente com a prática de Jesus Cristo, com a prática de um evangelho vivido na sua integralidade”, continuou.
Na sua visão, o papa Franscisco “foi muito sagaz” na nomeação de novos cardeais ao longo do seu papado. Foi ele que escolheu a maioria dos que vão eleger o novo papa (108 dos 135 eleitores), incluindo mais cardeais de fora da Europa e com visões de mundo mais próximas à sua.
Moraes aponta como forte na disputa o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, conhecido como o “papa Francisco asiático”. Na sua leitura, porém, a conjuntura política pode levar a escolha de um papa europeu.
“A Europa corre o risco hoje de ficar emparedada entre os interesses de superpotências: os interesses da China, os interesses de Trump [presidente Estados Unidos], os interesses de um Putin [presidente da Rússia] com amplos poderes, com um desejo autocrático gigantesco”, analisa.
“Então, a escolha de um papa europeu, com bom trânsito e com uma cabeça arejada, não me surpreenderia nem um pouco nesse momento. Porque, antes de mais nada, é uma escolha espiritual, mas é também uma escolha política, sem sombra de dúvida”, disse ainda.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
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BBC News Brasil – Qual foi o principal legado do papa Francisco? Qual a importância do seu papado?
Gerson Leite de Moraes – Depois de um papado de um homem [Bento 16] muito ligado às questões doutrinárias, às questões relativas à ordem, à disciplina, o papa Francisco aparece em cena e começa a pautar a Igreja em relação a temas extremamente importantes.
Ele toca nas questões ambientais, ele toca nas questões de concentração de riqueza. Ele fala às mulheres, fala aos divorciados, fala à comunidade LGBTQIA+, e fala com muita propriedade. Ele ataca as questões relativas às guerras.
Então, quando você faz um balanço do papado de Francisco, você percebe que ele é um papa que colocou a Igreja pra tocar em determinadas feridas que precisam ser tocadas. Mais do que ser um homem da ortodoxia, ele foi um homem da ortopraxia, da prática correta. Ou seja, se eu quiser que o evangelho ressoe de uma maneira coerente para as pessoas, eu preciso viver isso.
E é um recado claro para a Igreja. Uma igreja que enfrenta inúmeras crises. Ele mesmo pegou uma igreja com problemas de pedofilia e corrupção e, de repente, atacou essas questões.
É lógico que você não muda um transatlântico como a Igreja Católica da noite pro dia. Então, isso ainda vai depender muito do próximo papa. A gente ainda vai sentir os efeitos dessas mudanças do Francisco ou não. Se você tiver um papa mais conservador, isso poderá ser um sério problema para a vida da Igreja.
BBC News Brasil – O papa Francisco se destacou por uma postura mais simples e pelas falas que você citou. O legado dele fica mais nesse campo da imagem que projetou e das coisas que falou, ou ele também foi capaz de adotar medidas mais concretas que atualizaram e modificaram a Igreja?
Gerson Moraes – As duas coisas. Para ele, o simbolismo era importante, mas um simbolismo que pudesse ser construído na prática. Então, por exemplo, ele adotou medidas que puniam com muito mais rigor os pedófilos. Ele adotou medidas que afastavam clérigos envolvidos em corrupção.
E, nesse sentido, eu acho que ele tem uma dupla imagem na sua personalidade. Ele é um jesuíta. E, quando Inácio de Loyola organizou a Companhia de Jesus, os primeiros princípios da Companhia de Jesus eram de obedecer como um cadáver. Perinde ac cadaver é a expressão latina. Ele obedeceu como um cadáver, foi um homem da igreja, mas quando ele assumiu o papado e o Bergoglio virou Francisco, assumiu uma outra postura, que é a opção preferencial pelos pobres, pelos necessitados. Então ele é um jesuíta, mas um jesuíta franciscano.
Por exemplo, acabou aquela tradição de enterrar o papa em três caixões. Até o ano passado, o enterro de um papa teria que acontecer num caixão de cipreste, num caixão de chumbo e num caixão de olmo. E, de repente, ele vai lá e simplifica tudo isso. Então, até no momento da morte ele concilia o símbolo e a prática, assumindo uma postura humilde do começo ao fim. No fundo, ele sabia que a hora dele, a Páscoa dele, chegaria. Mesmo depois de morto, ele continua assumindo uma postura muito interessante.
BBC News Brasil – O papado do Francisco foi marcado por uma mudança na conjuntura internacional, com a ascensão de uma direita mais conservadora em muitos países. Qual foi o papel do seu papado nesse contexto?
Gerson Moraes – O papado dele é uma resistência a tudo isso. Com um poder gigantesco nas mãos, um capital político gigantesco advindo da sua força religiosa, ele soube dar os recados aos poderosos, aos pretensos tiranos.
Então, nesse sentido, ele foi uma voz muito profética de combate a essa extrema direita no mundo, que, no fundo, é um grande retrocesso. Porque é uma onda reacionária que, no final das contas, trabalha com a lógica da exclusão. Francisco era um homem que tentava incluir, um homem que tentava trazer para dentro da Igreja todos os segmentos.
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BBC News Brasil – Quais foram esses recados?
Gerson Moraes – Acho que o maior recado de Francisco é que é possível ser um cristão praticando verdadeiramente o Evangelho no século 21. Essa é a grande mensagem dele.
E isso significa saber escolher as lutas corretas, as pautas corretas e, principalmente, ter uma prática coerente com a prática de Jesus Cristo, com a prática de um evangelho vivido na sua integralidade.
BBC News Brasil – Quais pautas seriam essas? A questão ambiental, a desigualdade de renda, a pauta dos imigrantes?
Gerson Moraes – Sim, todas elas, porque todas elas trabalham com a lógica de optar pelo mais fraco.
Quando ele critica a renda concentrada, ele está dizendo “esse mundo é injusto”. Quando ele critica o tratamento que as superpotências dão aos imigrantes, ele está dizendo “isso não faz sentido, afinal de contas, quem mais sofre são as pessoas mais humildes que estão se deslocando no mundo, não porque querem, mas porque precisam sobreviver”.
E quando ele critica guerras, por exemplo, ele está dizendo claramente que quem mais sofre são crianças, são idosos, são pessoas necessitadas. Quer dizer, aqueles que não têm nada a ver com os interesses dos poderosos são aqueles que acabam padecendo sob o tacão da tirania.
BBC News Brasil – Em 2023, o Vaticano autorizou padres a abençoar relacionamentos de casais do mesmo sexo, mas manteve proibido o casamento homossexual. O papa Francisco se equilibrava entre o progressismo e as estruturas milenares da Igreja?
Gerson Moraes – Ele está mudando um transatlântico. Ou seja, são séculos, milênios de posicionamentos da Igreja Católica. E a política, mesmo a política eclesiástica, ela é a arte do possível. Então, o que foi possível, o que esteve ao alcance dele, ele implementou.
“Ah, mas não foram as mudanças que nós precisamos ou que gostaríamos”. Mas foi o que foi possível. Ou seja, você coloca mais um degrau, você abre mais um espaço. E, nessa disputa por espaço é importante que esses avanços continuem acontecendo. O difícil seria um retrocesso nesses avanços conquistados por Francisco.
Por exemplo, pouca gente fala, e eu também não quero criar polêmica com isso, mas Francisco meio que protestantizou o casamento para os homossexuais. Em que sentido? Veja só, o que é um casamento pra um evangélico, pra um protestante? É uma bênção. O casal vai lá na frente do pastor, já se casaram no civil, mas eles pedem a bênção de Deus através desse sacerdote, que é um pastor. Ora, por quê? Porque na igreja evangélica e na igreja protestante, o casamento não é um sacramento. Ele é uma benção. É um culto onde os noivos estão pedindo a benção de Deus.
O que o Francisco faz? Ele vai lá e diz: os gays podem receber uma benção. É um casamento. Mas não é um casamento no estilo católico, no estilo sacramental, mas não deixa de ser uma bênção. Então, se vale para o protestante, vale para o católico homossexual. Ou seja, é possível fazer isso, ter essa saída? Então vamos adotá-la. Então, está aí a sabedoria do Francisco.
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BBC News Brasil – Francisco nomeou a maioria dos cardeais que elegerá o novo papa (108 dos 135) e ampliou a diversidade, com mais cardeais de fora da Europa. Como isso vai impactar na escolha do novo papa?
Gerson Moraes – Então, Francisco foi muito sagaz nessa composição da Cúria, nessa composição dos cardeais que vão participar do conclave. Esses cardeais foram escolhidos por ter uma certa afinidade com o pensamento do papa. Não significa que todos eles serão fiéis no momento em que estarão votando, mesmo porque há toda uma conjuntura política que transcende essas questões.
Nós tivemos um papa latino-americano, que deu um recado para o mundo, que foi uma forma de resistência ao poder da extrema direita. E aí, diante dessa situação toda, a gente espera que a Igreja continue com essas mudanças.
Mas tem gente que aposta no seguinte: “a Igreja é como o mar, às vezes avança, às vezes recua”. Então, houve um certo recuo com o Bento 16, agora houve um avanço com o papa Francisco, pode ser que o próximo papa seja mais conservador? Pode, faz sentido, mas ninguém consegue imaginar como a Igreja vai se posicionar.
Algumas pistas podem ser elencadas. Por exemplo, eu acho muito complicado o cenário europeu neste momento. A Europa é um local amplamente secularizado, com uma força secularizante gigantesca. Então, isso mereceria um olhar especial da Igreja, como já aconteceu no passado.
Mas tem outro agravante: a Europa corre o risco hoje de ficar emparedada entre os interesses de superpotências: os interesses da China, os interesses de Trump [presidente Estados Unidos], os interesses de um Putin [presidente da Rússia] com amplos poderes, com um desejo autocrático gigantesco. Então, a escolha de um papa europeu, com bom trânsito e com uma cabeça arejada, não me surpreenderia nem um pouco nesse momento. Porque, antes de mais nada, é uma escolha espiritual, mas é também uma escolha política, sem sombra de dúvida.
BBC News Brasil – O papa Francisco foi o primeiro não europeu em mais de mil anos. A escolha de um novo papa da América do Sul ou, especificamente, do Brasil não está no radar?
Gerson Moraes – Acho pouco provável. Se acontecer, será uma grande surpresa. A América Latina foi contemplada [com a escolha do papa Francisco]. Então, agora precisamos olhar para outros lugares. Há um filipino [cardeal Luis Antonio Tagle] chamado de papa Francisco asiático, que desponta com muita força também, mas há outros que vão aparecendo.