Morre papa Francisco: como crítica ferrenha aos poderosos impactou muito além de seus fieis
Crédito, Getty Images
- Author, Aleem Maqbool
- Role, Editor de religião da BBC News
Durante 12 anos profundamente significativos, o papa Francisco conduziu a Igreja Católica por territórios inexplorados, de maneiras que terão reverberações por muito tempo no futuro.
O pontífice trabalhou para suavizar a imagem da Igreja Católica para muitos, afrouxou o controle do Vaticano sobre o poder e interveio em algumas das principais questões sociais do nosso tempo.
Dentro do catolicismo, ele certamente teve seus críticos; alguns tradicionalistas, em particular, ficaram muitas vezes indignados com ações que consideravam um afastamento radical do ensinamento da Igreja.
Desde o momento em que foi eleito em 2013, o papa Francisco chegou com uma informalidade e um sorriso que deixavam as pessoas à vontade.
Era simbólico de um princípio que orientava sua crença de que a Igreja deveria alcançar as pessoas em sua vida cotidiana, onde quer que elas estivessem no mundo.
“No início do meu papado, eu tinha a sensação de que ele seria breve: pensei que duraria no máximo três ou quatro anos”, disse Francisco em sua autobiografia Esperança, lançada em janeiro de 2025, um livro que nos dá uma visão das reflexões do papa sobre seu legado.
Um de seus primeiros atos como papa foi abrir mão do apartamento papal no terceiro andar do Palácio Apostólico, escolhendo em vez disso viver na mesma casa de hóspedes em que havia se hospedado como cardeal.
Alguns viram isso como um sinal de que ele estava abrindo mão dos adornos ostensivos do papado e da humildade pela qual certamente se tornaria conhecido – afinal, ele adotou o nome de um santo que defendia a causa dos pobres.
Mas o principal motivo para abandonar o apartamento papal, como ele explicou mais tarde, apontava para outra de suas características: ele gostava de estar cercado de pessoas.
Para ele, o apartamento parecia isolado e um lugar difícil para receber convidados. Na casa de hóspedes, estava cercado por membros do clero e raramente ficava sozinho por muito tempo.
Em viagens ao exterior para mais de 60 países, em suas audiências no Vaticano e durante inúmeros eventos, ficava muito claro que estar próximo das pessoas – especialmente dos jovens – era seu combustível.
Crédito, Getty Images
Questões sociais e ‘católicos imperfeitos’
Dentro do catolicismo, ele sinalizou uma mudança radical no tom em relação a algumas questões sociais.
“Todos são convidados à Igreja, inclusive pessoas divorciadas, homossexuais e transgêneros”, escreveu ele em sua autobiografia.
Dado que a Igreja não reconhece o divórcio em seu direito canônico e que papas anteriores haviam se referido à homossexualidade como um distúrbio, e não como “um fato humano”, como Francisco a descreveu, essa mudança novamente preocupou os tradicionalistas.
Mas o papa parecia querer que a Igreja explorasse e compreendesse as lutas do dia a dia das pessoas sob uma nova luz. Ele reconheceu sua própria jornada de transformação em relação a temas que via de forma diferente no passado.
Progressistas acolheram com entusiasmo a compaixão do papa pelos chamados “católicos imperfeitos”, mas também houve um reconhecimento mais amplo de que palavras de aceitação vindas de um pontífice poderiam impactar até mesmo aqueles fora da Igreja.
“A primeira vez que um grupo de pessoas transgênero veio ao Vaticano, elas saíram em lágrimas, emocionadas porque eu tinha segurado suas mãos, beijado-as… como se eu tivesse feito algo excepcional por elas! Mas elas são filhas de Deus”, escreveu em Esperança.
O papa Francisco condenou veementemente os países que consideram a homossexualidade um crime, e falou que o divórcio às vezes é “moralmente necessário”, citando casos de violência doméstica.
No entanto, há quem sugira que o papa poderia ter ido mais longe ao incentivar mudanças nos ensinamentos da Igreja.
No entanto, ele descreveu a Igreja como “feminina” e incentivou paróquias ao redor do mundo a encontrar mais papéis de liderança para mulheres em formas compatíveis com os ensinamentos católicos, que atualmente não permitem a ordenação feminina.
Em 2021, a irmã Raffaella Petrini foi nomeada secretária-geral do Estado do Vaticano e, sob Francisco, o Vaticano começou um processo de estudo contínuo sobre se as mulheres poderiam assumir o papel de diáconas, auxiliando nos serviços religiosos.
Crédito, AFP
Mesmo assim, alguns reformistas ficaram desapontados com a falta de avanços maiores na igualdade para as mulheres — especialmente considerando que a maioria dos fiéis da Igreja são mulheres.
Na parte final de seu papado, o papa lançou um processo de consulta ambicioso de três anos, com o objetivo de ouvir o maior número possível dos mais de 1 bilhão de católicos no mundo.
Foram realizadas dezenas de milhares de sessões de escuta em todo o planeta, para identificar os assuntos mais importantes para os católicos. Ficou claro que o papel das mulheres e formas de inclusão de católicos LGBT+ estavam entre os principais temas.
Embora o processo não tenha resultado em ações decisivas, ele refletiu o desejo de Francisco de que seu pontificado não fosse centrado em Roma ou no clero, mas sim na vida dos fiéis ao redor do mundo.
Um legado complexo
Durante o papado do argentino, houve um foco particular em alcançar os que estavam às margens na economia e política, com palavras e ações incentivando os padres a se aproximarem dos desfavorecidos.
A dignidade dos migrantes foi uma preocupação constante, assim como a construção de pontes com outras denominações cristãs, outras religiões e pessoas sem fé.
Em algumas ocasiões, esse alcance foi visto por tradicionalistas como inadequado, como em 2016, quando o papa visitou um centro de refugiados nos arredores de Roma e lavou e beijou os pés de muçulmanos, hindus e cristãos coptas (membros da Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria, a maior comunidade cristã no Egito e no Oriente Médio).
Crédito, Gabinete do Primeiro-Ministro Grego
Em discursos, como ao Congresso dos EUA, e em um de seus documentos mais importantes, o decreto Laudato Si, o papa Francisco falou dos danos ambientais como uma forma de os países ricos prejudicarem os pobres.
Veementemente contra a guerra, o papa frequentemente disse que o conflito era um fracasso da humanidade.
Ele chamou a guerra em Gaza de “terrorismo” e desde cedo implorou por um cessar-fogo.
Francisco se reuniu com famílias de israelenses sequestrados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, mas também falou com paixão sobre o sofrimento dos civis palestinos em Gaza, especialmente das crianças, e fazia ligações diárias para a Igreja da Sagrada Família na Cidade de Gaza.
Mas, às vezes, seu desejo de construir pontes foi visto por alguns como um obstáculo para adotar posições firmes contra injustiças.
Desde o início de seu papado, também teve que lidar com problemas internos graves.
A corrupção há muito tempo assombrava os altos escalões da Igreja. Logo no início, Francisco fechou milhares de contas não autorizadas no banco do Vaticano, e mais tarde implementou regras de transparência financeira.
“Desde o início do meu papado, senti que estava sendo chamado a assumir a responsabilidade por todo o mal cometido por certos padres”, escreveu em Esperança.
“Com vergonha e arrependimento, a Igreja deve buscar o perdão pelos danos terríveis que esses clérigos causaram com o abuso sexual de crianças, um crime que causa feridas profundas”, escreveu ele recentemente.
Crédito, Getty Images
Entre outras medidas, o papa Francisco criou regras que obrigam membros da Igreja a denunciar abusos caso tenham conhecimento, sob pena de serem removidos de seus cargos.
Embora tenha cometido erros de julgamento — por vezes apoiando publicamente clérigos que falharam em lidar com abusos —, o papa Francisco foi rápido em se desculpar por seus próprios erros e pelas falhas profundas da Igreja.
Tanto no Vaticano quanto em viagens, ele frequentemente se reunia com vítimas. Pedir desculpas pelos abusos foi o foco principal de algumas dessas viagens.
Uma parte enorme de seu legado é a forma como ele mudou a composição do alto clero da Igreja por meio da escolha de novos cardeais.
Isso fazia parte da missão de Francisco de deslocar o centro de gravidade do catolicismo da Europa — onde está em declínio — para regiões onde ele está florescendo, e refletir isso na liderança da Igreja.
A comoção mundial após sua morte é talvez um sinal de que essa mudança está em curso.