Lula após tarifas dos EUA: ‘Trump não é xerife do mundo’ e ‘deve estar mal informado’
Crédito, Ricardo Stuckert / Presidência da República
Entre as justificativas para a medida, o presidente americano mencionou o processo judicial que investiga o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
Numa carta endereçada a Lula compartilhada nas redes sociais, Trump escreveu, em letras garrafais, que o julgamento contra seu aliado político deveria ser interrompido imediatamente.
E esse, inclusive, foi um dos primeiros pontos abordados por Lula na entrevista ao Jornal Nacional (JN).
Ele disse que “não pode admitir” a “ingerência de um país na soberania de outro”.
“E mais grave: a intromissão de um presidente de um país no Poder Judiciário do meu país. É inaceitável que o presidente Trump mande uma carta pelo site dele e comece dizendo que é preciso acabar com a caça às bruxas. Isso é inadmissível”, declarou Lula.
O presidente brasileiro reforçou que “quem cometeu um erro vai ser punido” e chegou a insinuar que algo similar poderia acontecer com Trump, caso a invasão do Capitólio, em Washington, nos EUA, logo após ele perder a eleição para Joe Biden, tivesse acontecido no Brasil.
“O que o presidente Trump tem que saber é que se aqui no Brasil ele tivesse feito o que ele fez nos Estados Unidos com as eleições, ele também estaria sendo processado, estaria sendo julgado. E, se fosse culpado, ele seria preso”, disse Lula.
“É assim que funciona a lei para todo mundo. Ou seja, nós precisamos aprender a respeitar. Você nunca viu me meter em uma decisão de Justiça americana. Nunca viu. E o que eu espero é reciprocidade, que ele também não se meta nos problemas brasileiros.”
Para Lula, Trump “não pode pensar que foi eleito para ser xerife do mundo”.
“Ele foi eleito para ser presidente dos Estados Unidos. Ele pode fazer o que ele quiser dentro dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, quem manda somos nós, brasileiros”, destacou ele, no Jornal da Record.
O presidente brasileiro ainda insinuou que “se Trump conhecesse um pouquinho” o Brasil, “ele teria mais respeito”.
Ao ser questionado pela jornalista Delis Ortiz, da Globo, se a recente visita dele à ex-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, poderia ser interpretada como uma intervenção na soberania de outro país, Lula defendeu que trata-se de uma situação distinta.
“Eu fui visitar a presidenta Cristina com autorização da Justiça argentina. Eu só fui lá porque a Justiça argentina decidiu que eu fosse visitar, atendendo um pedido da própria Cristina. Eu fui fazer uma visita humanitária.”
“Eu nunca me preocupei com que o Trump recebesse o Bolsonaro ou qualquer pessoa. É direito de cada presidente fazer o que quiser. O que não é direito é um presidente querer dar palpite na decisão de Justiça de um país. Aqui no Brasil, a nossa Justiça tem autonomia. O Poder Judiciário é um poder autônomo, como é o Legislativo. Aqui a gente obedece regras”, complementou o presidente brasileiro.
Crédito, Ricardo Stuckert / Presidência da República
A carta da reciprocidade
Perguntado sobre como pretende responder às taxas anunciadas por Trump, Lula pregou calma.
“Eu não tomo decisão com 39 ºC de febre. O Brasil utilizará a Lei da Reciprocidade quando necessário e o Brasil vai tentar, junto com a OMC [Organização Mundial do Comércio] e outros países, fazer com que a OMC tome uma posição para saber quem é que está certo ou que está errado”, disse ele.
“A partir daí, se não houver solução, nós vamos entrar com a reciprocidade já a partir de 1º de agosto, quando ele [Trump] começa a taxar o Brasil.”
Segundo Lula, “o Brasil é um país que não quer brigar com ninguém”.
“Nós queremos negociar e o que nós queremos é que sejam respeitadas as decisões brasileiras.”
Para o presidente brasileiro, se Trump continuar a “brincar” com taxação, isso se tornará algo “infinito”.
“Se ele vai cobrar 50 de nós, nós vamos cobrar 50 deles”, ameaçou ele no Jornal da Record.
“Nós vamos chegar a milhões e milhões de milhões de por cento de taxa. O que o Brasil não aceita é intromissão nas coisas do Brasil.”
No JN, Lula também pontuou que o argumento de que a relação comercial de Brasil e EUA é prejudicial para os americanos não corresponde à realidade.
“O presidente Trump deve estar muito mal informado […] Não existe explicação a não ser uma falta de informação e depois uma tentativa de atrapalhar uma relação muito virtuosa que o Brasil tem com os Estados Unidos há 200 anos.”
“Ele tem o direito de tomar decisão em defesa do país dele, mas com base na verdade. Se alguém orientou ele com uma mentira de que os Estados Unidos é deficitário com o país, mentiu”, apontou Lula.
Ao Jornal da Record, o presidente detalhou os números da relação comercial entre os dois países.
“Ele alega que os Estados Unidos têm déficit com o Brasil, mas isso não é verdade. Em 2023, exportamos US$ 40 bilhões e importamos US$ 47 bilhões dos EUA. Tivemos um déficit de US$ 7 bilhões. E, se somarmos os últimos 15 anos, o Brasil acumulou um déficit de US$ 410 bilhões com os americanos.”
“Será que ninguém do Tesouro explicou isso para ele antes de ele escrever aquela carta absurda?”, questionou ele.
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Brics influenciou na decisão de Trump?
O Brics é o bloco inicialmente formado pelas economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que foi ampliado a partir de 2024, com a entrada de seis países — Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã.
O grupo, que acaba de realizar uma cúpula no Rio de Janeiro, foi alvo de muitas críticas recentes de Trump.
O presidente americano chegou a ameaçar as nações que negociassem com os Brics com uma sobretaxa de 10%.
Questionado se o tom crítico adotado contra os EUA durante a cúpula do Rio de Janeiro pode ter influenciado a decisão de Trump sobre o Brasil, Lula mais uma vez descartou essa possibilidade.
“Primeiro, o Brics é um fórum que representa hoje metade da população mundial e quase 30% do PIB mundial. E dentro do Brics há países que participam do G20 [o fórum das 20 maiores economias do planeta]”, disse o presidente ao JN.
“Nós cansamos de ser subordinados ao norte. Nós queremos ter independência nas nossas políticas, queremos fazer comércio mais livre. E as coisas estão acontecendo de forma maravilhosa”, avaliou Lula.
Ele ainda declarou que há discussões sobre uma moeda própria para o Brics, ou ao menos a possibilidade de fazer transações sem a necessidade de usar o dólar americano.
“Nós não temos a máquina de rodar dólar, só os Estados Unidos que têm. Nós não precisamos disso para fazer comércio exterior”, defendeu ele.
“Achar que os Brics é a razão para o Trump ficar nervoso? O Brasil nunca ficou nervoso com a participação do G7, o Brasil nunca ficou nervoso com as coisas que os Estados Unidos fazem. Cada país tem a soberania de fazer aquilo que quer”, disse Lula.
“Então eu penso que o presidente Trump precisa se cercar de pessoas que o informem corretamente sobre como é virtuosa a relação Brasil-Estados Unidos”, complementou ele.
Crédito, Reuters
Próximos passos de Lula
Por fim, Lula prometeu se reunir com todos os empresários que têm exportações para os EUA, especialmente aqueles com maior volume, como representantes dos setores do agro, do aço e da aviação.
Segundo o presidente, a ideia é entender “qual é a situação deles”.
“Nós vamos tentar fazer todo o processo de negociação que for possível fazer. O Brasil gosta de negociar, o Brasil não gosta de contencioso.”
Depois que se esgotarem as negociações, Lula indica que o Brasil vai mesmo aplicar a Lei da Reciprocidade, aprovada recentemente por unanimidade pelo Congresso Nacional.
“E espero que os empresários estejam aliados ao governo brasileiro”, sugeriu Lula.
“Porque se existe algum empresário que acha que o governo brasileiro tem que ceder e fazer tudo que o presidente do outro país quer, sinceramente, esse cidadão não tem nenhum orgulho de ser brasileiro.”
“Essa é a hora de a gente mostrar que o Brasil quer ser respeitado no mundo, que o Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país do mundo e que, portanto, a gente não aceita desaforos contra o Brasil”, conclui ele no JN.