Janete Clair, 100 anos: por que autora de telenovelas ganhou apelido de ‘Nossa Senhora das Oito’
Crédito, Acervo Pessoal
- Author, André Bernardo
- Role, Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Numa manhã de 1975, Dias Gomes recebe um telefonema do amigo Nelson Werneck Sodré. Conversa vai, conversa vem, o historiador pergunta ao dramaturgo o que ele anda fazendo da vida.
“Uma pequena sacanagem”, responde Dias. “Estou adaptando O Berço do Herói para a TV”. “Mas a censura vai deixar passar?”, indaga Sodré. “Não tem mais o cabo”, explica Dias. “Assim passa. Esses militares são uns burros”.
O cabo a que Dias Gomes se refere é Jorge, o protagonista de O Berço do Herói (1965): um cabo da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que desertou na Itália e, por engano, é considerado herói de guerra. A peça foi censurada pelo regime militar.
Dez anos depois, o autor tentou adaptá-la para a TV. Em vez de O Berço do Herói, cria um novo título: Roque Santeiro. De nada adiantou.
Como o telefone da casa de Nelson Werneck Sodré estava grampeado, os militares descobriram a artimanha de Dias Gomes para burlar a censura. E proibiram a exibição de Roque Santeiro, bem no dia de sua estreia, 27 de agosto de 1975, com 51 capítulos escritos e 36 gravados.
Sem ter o que fazer, a Globo exibiu um compacto de 76 capítulos de Selva de Pedra (1972), novela escrita por Janete Clair, a mulher de Dias.
Com a reprise de Selva de Pedra, a emissora ganhou tempo para pensar soluções.
Propôs três sinopses à censura: uma original, E os Homens Criaram Asas, do próprio Dias Gomes; e duas adaptações, O Resto É Silêncio, de Érico Veríssimo, e Os Cangaceiros, de José Lins do Rego. Nenhuma delas foi aprovada.
Foi quando Janete Clair se ofereceu para escrever, em tempo recorde, uma nova sinopse: “A novela das oito não vai sair daqui de casa!”, decretou.
E assim nasceu Pecado Capital. Para ninguém ficar desempregado, a autora aproveitou o elenco original de Roque Santeiro.
Escalados para interpretar Roque, Porcina e Sinhozinho Malta, Francisco Cuoco, Betty Faria e Lima Duarte assumiram os papéis de Carlão, Lucinha e Salviano Lisboa.
“Duas semanas. Esse foi o tempo que minha mãe teve para escrever a sinopse de Pecado Capital”, recorda o baterista, compositor e roteirista Alfredo Dias Gomes.
“Há três anos, comecei a escrever o roteiro de um curta chamado Quando Minha Mãe Saía de Férias. No início, tinha 50 minutos de duração e seria produzido com atores. Mas, para viabilizar o projeto, encurtei para 13 e usei inteligência artificial. Virou A Escritora.“
Apenas 10 anos depois de sua proibição, a novela Roque Santeiro pôde, finalmente, ser liberada.
Do elenco original, apenas Lima Duarte permaneceu na trama como Sinhozinho Malta. José Wilker interpretou Roque no lugar de Francisco Cuoco e Betty Faria cedeu o papel de Porcina para Regina Duarte.
Talento incansável
Alfredo Dias Gomes é também o curador da mostra Janete Clair, 100 anos: a Usineira de Sonhos, título emprestado de uma crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade para o Jornal do Brasil, apenas três dias depois do fim da novela O Astro, no dia 8 de julho de 1978.
“Agora que O Astro acabou, vamos cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando”, poetizou o mineiro.
A exposição estreia dia 28 no Museu da Imagem e do Som, na Lapa (RJ), e reúne, entre outras “relíquias”, sinopses, capítulos e troféus.
De bônus, a réplica de uma máquina de escrever, idêntica às duas em que a autora datilografou 31 radionovelas, 21 telenovelas e nove teleteatros – adaptações de clássicos da literatura universal com uma hora de duração.
Dessas 21 telenovelas, sete foram escritas, sem direito a férias ou a colaboradores, entre 1967 e 1972. Mal terminava uma e já começava outra.
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Quando não estava escrevendo novelas, a autora gostava de criar sinopses para outros autores, como Jogo da Vida (1981), de Silvio de Abreu; supervisionar o trabalho de jovens promissores, como Gilberto Braga em Corrida do Ouro (1974); e se aventurar por outros formatos, como a fotonovela A Mulher Perfeita (1972), publicada na extinta revista Cartaz.
Entre as novelas Pai Herói (1979) e Coração Alado (1980), Janete Clair arranjou tempo para escrever os dez capítulos de Nenê Bonet para a revista Manchete.
Em 1980, o folhetim foi transformado em romance e relançado, 45 anos depois, pela Editora Instante.
A novela Pecado Capital é mais realista e menos romântica que as anteriores. Em entrevista à revista Amiga de 28 de maio de 1980, Janete Clair definiu seu estilo como “realismo fantasioso”.
Logo no primeiro capítulo, Carlão (Francisco Cuoco) se depara com uma mala abarrotada de dinheiro no banco de trás de seu táxi. Ao longo de 167 capítulos, ele se pergunta: fico com a grana ou devolvo para a polícia?
“A novela era tão boa que muita gente acredita que tenha sido escrita por Dias”, observa o jornalista Artur Xexéo na biografia A Usineira de Sonhos. “Uma injustiça com Janete”.
Dias e Janete se conheceram na Rádio Difusora, em 1945. Se casaram em 1950 e tiveram quatro filhos: Guilherme, Denise, Alfredo e Marcos. O caçula morreu em 1968, aos três anos, de um problema congênito no coração.
Impacto social
A carreira de Janete Clair pode ser dividida em antes e depois de Véu de Noiva (1969). É o que explica Cristina Mungioli, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
Pela primeira vez, trocou os diálogos rebuscados e os cenários lúgubres de produções de época como Paixão Proibida (1967), Acorrentados (1969) e Rosa Rebelde (1969) por um linguajar coloquial e paisagens ensolaradas de tramas modernas como O Astro (1977), Pai Herói (1979) e Coração Alado (1980).
Antes de Véu de Noiva, suas novelas eram ambientadas em outros países como Haiti (Passos dos Ventos), Jamaica (Acorrentados) e Espanha (Rosa Rebelde).
Um bom exemplo da modernidade de Véu de Noiva é a profissão do protagonista: em vez de toureiro como o Juan Galhardo (Tarcísio Meira) de Sangue e Areia, Marcelo (Cláudio Marzo) é piloto de automobilismo.
“Véu de Noiva foi o Beto Rockfeller da TV Globo”, afirma Mungioli, citando a novela escrita por Bráulio Pedroso e exibida pela extinta Tupi em 1968.
“As duas marcaram época porque abrasileiraram temas e personagens”.
São incontáveis as novelas de Janete que, a exemplo de Pecado Capital, que discutiu temas como ética, corrupção e honestidade em pleno horário nobre, tiveram impacto na sociedade brasileira.
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O escritor Mauro Alencar, autor de A Hollywood Brasileira: Panorama da Telenovela no Brasil, cita quatro exemplos.
Em Irmãos Coragem (1970), o autoritarismo político do coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho) e o relacionamento interracial de Braz Canoeiro (Milton Gonçalves) e Cema (Suzana Faini).
E em Duas Vidas (1976), a emancipação feminina de Leda (Betty Faria) e a inserção de Claudia (Susana Vieira) no mercado de trabalho.
“Praticamente todas as suas produções foram exibidas em plena ditadura militar”, ressalta Alencar.
O pesquisador Nilson Xavier, editor do site Teledramaturgia e autor de Almanaque da Telenovela Brasileira, aponta mais dois: a consciência ecológica em Fogo Sobre Terra (1974) e a violência doméstica em Coração Alado (1980).
Na primeira novela, Pedro Azulão (Juca de Oliveira) mobiliza os moradores de uma cidadezinha do interior do Brasil a lutar contra a construção de uma hidrelétrica. Por imposição da censura, a autora precisou jogar fora 12 capítulos.
Em Antes Que Me Esqueçam, o diretor Daniel Filho cogita a hipótese de o regime militar interpretar a trama como uma crítica à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, iniciada em 1975 e concluída em 1982.
Na segunda, Alberto (Walmor Chagas) é absolvido depois de assassinar a própria esposa. No julgamento, ele alegou “legítima defesa da honra”. O caso foi livremente inspirado no assassinato de Ângela Diniz e na absolvição de Doca Street.
Na mira da censura
A exemplo de Dias Gomes, Janete Clair também teve problemas com a censura. Muitas de suas novelas sofreram mutilações. Desde cenas isoladas até capítulos inteiros.
O caso mais inusitado, para dizer o mínimo, talvez tenha acontecido em Duas Vidas (1976). Na trama, Sônia (Isabel Ribeiro) se apaixona por Maurício (Stepan Nercessian). Mas, a censura reprovou o relacionamento.
Motivo? Uma mulher na casa dos 40 não podia se relacionar com um homem mais novo.
Indignada, Janete Clair redigiu uma carta, no dia 11 de janeiro de 1977, para Rogério Nunes, então diretor da Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP), órgão ligado à Polícia Federal, solicitando explicações.
“Não posso entender que conceitos morais ou de qualquer natureza possam determinar a proibição de um romance de amor entre um jovem e uma mulher madura, ambos solteiros”, argumentou. Nunca obteve resposta.
Na mesma novela, os moradores do Catete, bairro da Zona Sul do Rio, protestavam contra a construção do Metrô. Por causa dela, teriam que desocupar suas casas.
Até a cena em que o dono de uma casa de móveis reclama da poeira causada pela obra do Metrô foi proibida de ir ao ar.
Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Thiago de Sales Silva aponta Irmãos Coragem (1970), O Homem que Deve Morrer (1971) e Selva de Pedra (1972) como as tramas mais censuradas da autora.
“Temas com forte potencial político ou risco de mobilização social, como os conflitos entre garimpeiros e latifundiários de Irmãos Coragem, eram alvos de cortes sistemáticos porque suscitavam resistência à ordem estabelecida”, explica o historiador.
“No caso de O Homem que Deve Morrer, a analogia entre Ciro Valdez (Tarcísio Meira) e Jesus Cristo também foi vetada por ser considerada ofensiva à Igreja Católica”.
Das três novelas estudadas pelo autor, a mais problemática, porém, foi Selva de Pedra. Pela sinopse original, Cristiano (Francisco Cuoco) se casaria com Fernanda (Dina Sfat) depois de saber que Simone (Regina Duarte), sua primeira mulher, teria morrido em um acidente de carro.
Acontece que Simone não morreu e Cristiano nunca tomou conhecimento disso. Se ele casasse com Fernanda, estaria cometendo bigamia. Por essa razão, os censores proibiram o casamento.
Em apenas 48 horas, Janete Clair teve que rasgar 22 capítulos e escrever sete novos. Na nova versão, Cristiano deixa Fernanda esperando no altar.
No capítulo 152, exibido no dia 4 de outubro de 1972, a autora realizou uma proeza inédita: 100% dos aparelhos de televisão ligados no Rio de Janeiro estavam sintonizados em sua novela.
De cada 100 domicílios pesquisados pelo Ibope, 77 estavam de olho em Selva de Pedra – os 23 restantes estavam com o aparelho desligado.
Por que tanto alvoroço? Naquele capítulo, Rosana Reis (Regina Duarte) admite que é, na verdade, Simone Marques, sua suposta irmã gêmea.
“Até o ex-presidente Juscelino Kubitschek confidenciou na época que se emocionou no capítulo em que a falsa identidade de Simone Marques foi desmascarada”, relata o jornalista Mauro Ferreira no livro Nossa Senhora das Oito – Janete Clair e a Evolução da Telenovela no Brasil.
Na cena do crime
JK não foi o único presidente da República a se render ao talento de Janete. Ernesto Geisel também não perdia um capítulo de O Astro.
Durante uma recepção em Brasília para a assinatura da lei que regulamentava a profissão de ator, em 1978, o general abordou Daniel Filho na fila de cumprimentos.
“Quem matou Salomão Hayalla?”, disparou à queima-roupa, referindo-se ao personagem de Dionísio Azevedo, assassinado no capítulo 42.
“Lamento, presidente, mas isso é segredo de Estado!”, esquivou-se o diretor. “E disso, eu sei, vocês entendem”.
O mistério só foi elucidado no capítulo 183, exibido no dia 5 de julho de 1978. Salomão Hayalla foi assassinado por Felipe Cerqueira (Edwin Luisi).
Autor do artigo A Narrativa Policial em Janete Clair, o redator e roteirista Rafael Luís Crema, da Universidade Anhembi Morumbi, explica que, antes de Janete, autores como Glória Magadan em O Sheik de Agadir (1966) e Bráulio Pedroso em O Rebu (1974) já tinham lançado mão do recurso do “Quem Matou?”.
Ao lado de Gilberto Braga em Vale Tudo (1988), Janete Clair é responsável por um dos assassinatos mais memoráveis da TV brasileira.
“Ela pretendia revelar o nome do assassino poucos capítulos depois do crime”, observa Crema. “Mas, o mistério causou um alvoroço tão grande que ela resolveu estendê-lo por cinco meses”.
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Faroeste caboclo
Selva de Pedra não foi a primeira novela de Janete Clair a parar o Brasil. Na noite de 22 de junho de 1970, Irmãos Coragem deu mais audiência que a goleada de 4 a 1 do Brasil contra a Itália, na final da Copa do Mundo, exibida na véspera. É o que garante Daniel Filho em sua autobiografia, Antes Que Me Esqueçam.
Irmãos Coragem conquistou a audiência do público masculino ao mesclar elementos do faroeste italiano com os bastidores do futebol brasileiro. Um dos personagens da trama, Duda (Claudio Marzo), é craque do Flamengo.
Janete Clair pode não ter sido a primeira a fazer referência ao esporte em suas telenovelas. Na extinta Excelsior, Pelé chegou a protagonizar Os Estranhos (1966), escrita por Ivani Ribeiro.
“Foi a primeira vez que o futebol ocupou espaço relevante numa telenovela”, afirma Victor Andrade Melo, autor do estudo Quando As Paixões se Encontram: o Futebol em Irmãos Coragem e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Para criar o personagem Duda, Janete Clair chegou a contar com a assessoria do ex-treinador da Seleção Brasileira, João Saldanha.”
“Pecado Capital me deu muitas alegrias. Mas não acho que tenha sido a minha melhor novela”, declarou a autora à revista Amiga, em 1976.
“Jamais me esquecerei de Irmãos Coragem. Todos diziam que eu estava dando um passo à frente. Foi a minha melhor novela”, avalia.
Pioneiras no gênero
Janete Clair não modernizou a telenovela brasileira apenas na frente das câmeras. Modernizou também por trás delas. Nos primórdios do gênero no Brasil, só havia três autoras: a cubana Gloria Magadan e as brasileiras Janete Clair e Ivani Ribeiro.
Foi Magadan, inclusive, quem convidou Janete para trabalhar na Globo, em 1967.
“Eu tenho um abacaxi para você!”, foi o inusitado convite que ela fez a Janete.
O tal “abacaxi” era a novela Anastácia, a Mulher Sem Destino (1967), escrita pelo ator Emiliano Queiroz. Para descascá-lo, Janete improvisou um terremoto na trama, matou uma centena de personagens (só sobraram quatro!) e, ainda, promoveu uma passagem de tempo de 20 anos.
Janete Clair era o nome artístico de Jenete Stocco Emmer. O Clair, a propósito, foi sugestão de Otávio Gabus Mendes, diretor da Rádio Difusora, onde ela começou como atriz e locutora. A música Clair de Lune (1905), do compositor francês Claude Debussy, era uma de suas favoritas.
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A conquista do espaço
Hoje em dia, as três novelas da Globo, a principal produtora de teledramaturgia do país, são escritas por mulheres: Alessandra Poggi é autora de Garota do Momento, Claudia Souto, de Volta por Cima, e Manuela Dias, de Vale Tudo. Na segunda-feira (28/4), estreia Dona de Mim, de Rosane Svartman.
“É atribuída a Janete a frase: ‘Cada capítulo tem que ser um espetáculo’. Sempre penso nisso quando escrevo”, teria dito a autora das telenovelas Totalmente Demais (2015), Bom Sucesso (2019) e Vai na Fé (2023) e do livro A Telenovela e o Futuro da Televisão Brasileira.
Das novelas escritas por Janete, Svartman destaca Pecado Capital e Pai Herói.
“A questão moral da mala do dinheiro é ótima. Curto também a discussão sobre paternidade. Os dois temas permanecem atuais”.
Tão atuais que cinco novelas da autora já ganharam releituras: Selva de Pedra (1986), Irmãos Coragem (1995), Pecado Capital (1998), Vende-se Um Véu de Noiva (2009) e O Astro (2011). A nova versão de O Astro, adaptada por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, ganhou o Emmy em 2012.
“Foi minha avó que ensinou o brasileiro a amar telenovela”, afirma sua neta, a autora Renata Dias Gomes, colaboradora, entre outras produções, da novela Império, vencedora do Emmy em 2015. “Foi a primeira a pensar cada capítulo como um espetáculo com início, meio e fim. E, claro, com um super gancho no final para fisgar a atenção do telespectador até o dia seguinte”.
Em 1980, prestes a viajar para o México em férias com o marido Dias Gomes, Janete Clair foi diagnosticada com câncer no intestino. Mesmo assim, escreveu mais duas novelas: Coração Alado (1980) e Sétimo Sentido (1982).
Em 1983, estreou Eu Prometo, que contou com a colaboração da autora Glória Perez. Em seus últimos dias, chegou a escrever alguns capítulos, à mão, do quarto da Casa de Saúde São José, em Botafogo.
Morreu no dia 16 de novembro de 1983, aos 58 anos.