Israel submete população de Gaza ‘à fome forçada‘, diz alto funcionário da ONU à BBC
Crédito, Getty Images
- Author, Fergal Keane
- Role, Correspondente especial da BBC News
O subsecretário-geral de ajuda humanitária da Organização das Nações Unidas (ONU), Tom Fletcher, afirmou que as pessoas em Gaza estão sendo submetidas à fome forçada por Israel.
Em entrevista à BBC, ele disse acreditar que isso levou a uma mudança na resposta internacional a Gaza.
Questionado se sua avaliação de fome forçada equivalia a um crime de guerra, ele respondeu: “Sim. É classificado como um crime de guerra. Obviamente, estas são questões para os tribunais julgarem e, em última análise, para a história julgar.”
Fletcher também lamentou ter dito recentemente que 14 mil bebês poderiam morrer em 48 horas em Gaza se não fosse permitida a entrada de ajuda humanitária — uma afirmação que a ONU posteriormente retirou —, e reconheceu a necessidade de ser “preciso” com a linguagem.
Israel começou a permitir a entrada de ajuda humanitária limitada em Gaza na semana passada, depois que um bloqueio de quase três meses interrompeu a entrega de suprimentos como alimentos, medicamentos, combustível e abrigo.
Também retomou sua ofensiva militar duas semanas depois de impor o bloqueio, encerrando um cessar-fogo de dois meses com o Hamas.
Israel disse que as medidas tinham o objetivo de pressionar o grupo armado a libertar os 58 reféns ainda mantidos em Gaza, dos quais acredita-se que pelo menos 20 estejam vivos.
Desde a flexibilização do bloqueio, cenas de caos foram testemunhadas nos centros de distribuição de ajuda humanitária administrados pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF) — um grupo apoiado pelos EUA e por Israel.
A ONU, que se recusa a cooperar com a GHF, informou que 47 pessoas ficaram feridas no início desta semana depois que uma multidão se aglomerou em um dos centros.
“Estamos vendo alimentos sendo deixados nas fronteiras, e não sendo autorizados a entrar, quando há uma população do outro lado da fronteira que está passando fome, e estamos ouvindo os ministros israelenses dizerem que isso é para pressionar a população de Gaza”, afirmou Fletcher.
Ele disse que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, deveria repudiar “completamente” uma declaração feita pelo ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que havia dito que as pessoas em Gaza estariam “totalmente desesperadas ao entender que não há esperança e nada a esperar em Gaza”, e buscariam realocação para começar “uma vida nova em outros lugares”.
“Esperamos que governos ao redor do mundo defendam o direito humanitário internacional, a comunidade internacional é muito, muito clara quanto a isso”, acrescentou Fletcher.
Ele pediu a Netanyahu que garanta que “esta linguagem e, em última análise, esta política… de desalojamento forçado, não seja implementada”.
Crédito, Getty Images
Israel tem enfrentado cada vez mais críticas internacionais sobre sua conduta na guerra.
Na terça-feira (27/5), a chefe de política externa da União Europeia, Kaja Kallas, afirmou: “Os ataques israelenses em Gaza vão além do que é necessário para combater o Hamas”.
A declaração dela foi feita após uma intervenção do chanceler alemão Friedrich Merz, que declarou “não entender mais” os objetivos de Israel.
Em 14 de maio, Fletcher instou o Conselho de Segurança da ONU a agir para impedir o genocídio em Gaza.
Quando perguntado por que havia feito essa declaração, ele se referiu aos relatos de colegas que estavam em Gaza.
“O que eles estão relatando é desalojamento forçado. Estão relatando fome, tortura e mortes em grande escala”, afirmou.
Fletcher disse que nos casos de Ruanda, Srebrenica e Sri Lanka, “o mundo nos disse depois que não agimos a tempo, que não emitimos um alerta”.
“E este é o meu apelo ao Conselho de Segurança [da ONU] e ao mundo neste momento: ‘Vocês vão agir para impedir o genocídio?”
Fletcher foi alvo de fortes críticas de Israel depois de afirmar que 14 mil bebês em Gaza morreriam em 48 horas se não fosse permitida a entrada de ajuda humanitária no território.
O Ministério das Relações Exteriores de Israel acusou Fletcher de ignorar as atrocidades cometidas pelo Hamas e de fazer eco à sua propaganda. “Não é trabalho humanitário, é calúnia”, disse o ministério, na ocasião.
Fletcher afirmou: “No momento em que fiz esses comentários, estávamos tentando desesperadamente conseguir a entrada da ajuda humanitária”.
“Disseram que não conseguiríamos, e sabíamos que provavelmente teríamos alguns dias, uma janela para conseguir o máximo de ajuda possível, e isso estava sendo negado, e estávamos desesperados para conseguir. Então, sim, precisamos ser totalmente precisos com nossa linguagem, e já esclarecemos isso.”
Questionado sobre sua afirmação — repudiada por Israel — de que milhares de caminhões estavam esperando na fronteira para entrar em Gaza, Fletcher repetiu que precisava ser especialmente “cuidadoso e muito preciso”.
Ele concordou que havia o risco de ser visto como alguém que estava exagerando a situação, mas acrescentou: “Não vou parar de falar sobre a necessidade de salvar essas vidas em Gaza, de salvar o maior número possível de sobreviventes. Esse é o meu trabalho, e tenho que fazer isso melhor, e vou fazer”.
Ele disse que a mediação e a negociação são o caminho para resolver a crise em Gaza, e repetiu seu apelo para que o Hamas liberte os reféns israelenses mantidos pelo grupo militante.
Crédito, Reuters
“Todos nós queremos ver esses reféns libertados e de volta às suas famílias”, ele afirmou.
“Não sei mais qual é o objetivo desta guerra. Acho que claramente foi além da libertação dos reféns. Fala-se muito em acabar com o Hamas.”
“E, claramente, como muitas pessoas disseram, não pode haver um papel para o Hamas na nova equação, na nova governança de Gaza e dos territórios palestinos.”
Fletcher rejeitou as alegações israelenses de que o Hamas estava roubando grandes quantidades de ajuda alimentar.
“Não quero que nenhuma parte desta ajuda chegue ao Hamas. Isso é importante para nós porque estes são nossos princípios: neutralidade, imparcialidade e independência. É do nosso interesse impedir que essa ajuda chegue ao Hamas, e garantir que ela chegue aos civis.”
“Como humanitário, meu interesse é apenas fazer chegar o máximo de ajuda possível, o mais rápido possível, e salvar o máximo de vidas que nos for permitido no tempo que temos.”
Fletcher também está lidando com crises na Ucrânia, Sudão e Síria, entre outras, e disse que o mundo está enfrentando um momento “profundamente perigoso”.
“O Conselho de Segurança está polarizado, dividido”, ele afirmou.
“Isso significa que é muito mais difícil acabar com os conflitos; os conflitos com os quais estamos lidando são mais ferozes, há mais impunidade, e estão durando mais tempo.”
“Está ficando cada vez mais difícil acabar com as guerras, e nós, profissionais humanitários… enfrentamos as consequências.”
Israel lançou uma campanha militar em Gaza em resposta ao ataque pela fronteira do Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e outras 251 foram feitas reféns.
Pelo menos 54.249 pessoas foram mortas em Gaza desde então, incluindo 3.986 desde que Israel retomou sua ofensiva, de acordo com o Ministério da Saúde do território administrado pelo Hamas.
Com reportagem adicional de Olivia Lace-Evans e Maarten Lernout.