Imigração: a reviravolta no caso de Raquel Cantarelli, brasileira que briga por filhas com pai irlandês
Crédito, Arquivo pessoal
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- Author, Laís Alegretti
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
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Atenção: a reportagem a seguir contém relatos de violência.
Em uma manhã de junho de 2023, a nutricionista Raquel Cantarelli viu suas filhas de 4 e 6 anos serem levadas de sua casa no Rio de Janeiro, “com a roupa do corpo”, por uma equipe com policiais armados.
“Fui surpreendida na minha casa com a Polícia Federal armada com fuzis. Entraram, pegaram minhas filhas e levaram embora”, lembra a brasileira, em relato à BBC News Brasil. “Desde então, não tenho nenhum acesso a elas.”
A operação de busca e apreensão das filhas de Cantarelli, conduzida de forma que ela classifica como “traumática, cruel e desumana”, ocorreu após uma decisão da justiça brasileira de retorno das duas crianças à Irlanda – onde elas nasceram e a mãe viveu até 2019.
Naquele ano, Cantarelli deixou a Irlanda com as filhas. Teve ajuda de autoridades consulares brasileiras, mas não tinha a autorização do pai das crianças, um homem irlandês que ela acusa de violência doméstica e sexual contra ela e a filha mais velha. A defesa dele nega as acusações (leia mais abaixo).
“O genitor entrou com processo me acusando de sequestro internacional”, diz Cantarelli.
Esse processo – sobre a chamada subtração internacional de crianças, prática ilegal em que uma criança é transferida de país sem consentimento de um dos responsáveis – deu início à longa disputa judicial sobre o retorno ou não das crianças à Irlanda.
Foi na segunda instância que a justiça brasileira determinou o retorno das meninas à Irlanda. Isso contrariou a decisão da primeira instância, que havia determinado que elas permanecessem com a mãe no Brasil devido aos “indícios quanto ao risco à integridade física e psíquica das crianças caso fosse determinado seu retorno”.
Mas, na mais recente reviravolta, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu a palavra final e determinou que as crianças devem, na verdade, ser devolvidas ao Brasil. O caso foi transitado em julgado em junho de 2025 – ou seja, é uma decisão definitiva e não cabe mais recurso na justiça brasileira.
Apesar da conclusão do processo e da vitória de Cantarelli, o retorno das crianças, hoje com 6 e 8 anos, depende agora das autoridades irlandesas, como reconhecem todos os envolvidos no caso, ouvidos pela reportagem (leia mais abaixo).
Questionada sobre as críticas de Cantarelli sobre a operação de 2023, a Polícia Federal no Rio de Janeiro disse que os policiais federais “não participaram da abordagem direta, limitando-se a acompanhar a ação para garantir a segurança de todas as partes envolvidas — entre eles, a oficial de justiça, os representantes do Conselho Tutelar, um assistente social, uma psicóloga, a genitora e as crianças”.
A PF disse que reconhece “a sensibilidade da situação” e que a ação foi conduzida com “respeito, cordialidade e cautela”.
A Defensoria Pública da União (DPU), que representa Cantarelli no processo, também denunciou, em maio de 2024, a República Federativa do Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por violar os direitos de Cantarelli e suas filhas.
A DPU diz que “a forma como as crianças foram devolvidas, envolvendo escolta armada da Polícia Federal, configurou por si só uma violação dos direitos humanos”. Não há previsão de quando essa denúncia será julgada.
O caso de Raquel Cantarelli vem ganhando destaque no Brasil nos últimos anos e especialistas ouvidos pela reportagem dizem que ele tem sido fundamental para que o país discuta a subtração internacional e as regras para casos que envolvem violência doméstica.
São chamadas de mães de Haia as mulheres brasileiras que contam ter fugido com seus filhos para outros países para escapar de violência doméstica — e que terminaram acusadas de subtração internacional de crianças.
Cantarelli passou a dividir aspectos do caso dela no Instagram, onde tem mais de 420 mil seguidoras (quase todas mulheres, ela diz). À BBC News Brasil, contou que vem sendo procurada por partidos políticos e avalia uma eventual candidatura nas eleições de 2026.
Como o caso chegou até aqui?
Cantarelli foi para a Irlanda em 2014, no fim da faculdade, para fazer trabalho voluntário, após ter perdido o pai – que, ainda jovem, teve infarto num quarto de hotel.
“Ele era da marinha mercante, sempre viajou, e sempre falou sobre a importância de viajar, expandir seu horizonte. Foi o que me motivou a viajar, a entender que a vida passa muito rápido, e que é importante a gente deixar algum legado.”
Lá, ela conheceu o homem que seria o pai das filhas.
Inicialmente, moravam em cidades diferentes, mas, depois de alguns meses, descobriram a gravidez. Aos 26 anos, casou-se com ele.
Foram morar juntos, numa cidade do interior do país. Ali, ela diz, “as coisas mudaram bastante” e ela passou a depender dele e se sentir isolada.
“Fiquei numa situação de dependência muito grande, para tudo. Eu tava numa cidade nova que eu não conhecia as pessoas, não tinha dinheiro, não tinha trabalho, tava grávida e dependia dele.”
Ela diz que, numa determinada situação, foi impedida de visitar uma amiga em outra cidade da Irlanda. A amiga, no entanto, enviou uma passagem de trem para ela ir até a cidade.
“Ele [o então marido] chegou em disparada, nem a cumprimentou, entrou na casa dela, na propriedade dela, pegou minha mala, colocou dentro do carro e foi me arrastando”, diz.
“Minha amiga ficou muito triste e falou: “Você não pode fazer isso com ela, tá sendo muito bom para ela estar aqui”. E ele falou assim: “She’s my wife [Ela é minha esposa], e eu é que sei o que é bom para ela”.
Em outra situação, ela diz que foi forçada a ter relações sexuais com o então marido.
“Saí do banheiro, deitei, e ele já tava dormindo, roncando. Fui [deitar] devagarzinho, mas quando deitei na cama, ele acordou. E veio para cima de mim, querendo ter relação. Eu, como sempre, negando, dizendo que não, dizendo que não, que não queria. E aí foi quando ele me segurou bem à força”, diz. “Foi a primeira vez que – hoje eu tenho a consciência de que – fui abusada.”
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Cantarelli diz que também aconteceram situações de abuso sexual contra a filha mais velha deles, cujos primeiros sinais ela diz que tinha dificuldade de classificar.
“Aconteceu há 10 anos. Eu era mais jovem, não se falava tanto sobre abuso sexual, violência doméstica. Não fazia parte do meu universo”, diz.
Ela conta que sentia barreiras para fazer uma denúncia, ainda que já tenha chegado à Irlanda falando inglês muito bem e tivesse apoio na família no Brasil – o que, apontam especialistas, não é realidade de parte das mulheres que vivem situações semelhantes no exterior.
“Eu era simplesmente uma brasileira, imigrante, sozinha no meio do nada, querendo fazer uma denúncia contra um homem que tem família, tem trabalho, tem filha. Quem acreditaria em mim? ‘Não é possível que aquele pai tão maravilhoso, que frequenta a missa todo domingo, é uma pessoa que tá fazendo isso’.”
Em uma ligação para a mãe depois de um episódio que hoje classifica como a gota d’água, Cantarelli diz que foi interrompida pelo então marido, que ela diz que pensava que o telefonema fosse com a polícia ou o hospital.
“Ele pegou o telefone da minha mão, desligou, e apontou o dedo na minha cara com muita raiva, [disse] que o que aconteceu aqui eu não poderia falar com absolutamente ninguém. ‘Do you understand? Do you understand what I am saying?‘ [Você entende? Você entende o que eu estou dizendo?]”, diz.
Cantarelli afirma que contou a assistentes sociais no hospital, quando teve a segunda filha, o que se passava. E diz que elas informaram que fariam contato com o genitor enquanto Cantarelli tivesse no Brasil – para onde ela foi com as crianças, com autorização dele, para apresentar a segunda filha à família.
Já no Rio de Janeiro, Cantarelli diz que chegou a falar para ele que não voltaria do Brasil, diante das violências ocorridas, e que ele seria procurado pelas assistentes sociais.
“Ele me ligou de vídeo, completamente transtornado, de frente para uma delegacia, dizendo que ele estaria comprando a minha passagem de volta e que eu teria que voltar ou ele me denuncia por sequestro”, afirmou.
Raquel diz que voltou com a expectativa de resolver a questão na justiça irlandesa, já que no Brasil havia sido informada que não poderia denunciar o que ocorreu em solo irlandês.
A denúncia no hospital, no entanto, foi arquivada, segundo ela. “As assistentes sociais entraram em contato com ele, fizeram perguntas, ele negou, e fecharam o caso por falta de prova”.
Ao retornar à Irlanda, Raquel diz que encontrou o então marido cercado por pessoas da família, com “câmeras por toda parte”.
Ela relata que foi até a casa em que viviam e dormiu em um pano no chão no quarto das crianças, porque não queria deixar as filhas sozinhas na casa. E afirma que os passaportes dela e das filhas “sumiram”.
Segundo Raquel, ele também havia retirado o Wi-Fi de casa e cancelado o plano de celular conjunto que ela acessava. Mas ela diz que conseguiu pedir a uma vizinha acesso à internet.
“Mandei mensagem para a Embaixada do Brasil pedindo ajuda e eles foram me resgatar da situação de cárcere. Fui à delegacia com representante do consulado e fiz boletim de ocorrência.”
Ela seguiu para a casa de uma amiga. “Nesse mesmo dia, sexta-feira à noite, eu recebi via WhatsApp uma mensagem do genitor das minhas filhas com uma intimação para eu comparecer na corte na segunda-feira, por volta das 8 horas da manhã.”
Na audiência, “ele estava com um time de advogados e os irmãos, e todo mundo entrou na audiência, mas não foi permitido que o representante da embaixada entrasse comigo. Precisei entrar sozinha, sem advogado, sem embaixada, sem ninguém.”
“Eu sempre era tratada [em audiência] como this woman [esta mulher] ou this Brazilian mother [esta mãe brasileira] e ele era sempre o Sr. [Sobrenome].”
A decisão foi de que as crianças deveriam retornar imediatamente para residência em que viviam com o genitor, ainda que Cantarelli tivesse uma medida protetiva contra ele.
“A juíza disse: não estou dizendo que a senhora precisa voltar, estou dizendo que as crianças devem retornar. Se a senhora não quiser voltar, a senhora não precisa”, relata Cantarelli, lembrando que ainda amamentava a filha mais nova, então com 7 meses.
As três voltaram para a casa do genitor.
“O que já era ruim ficou muito pior, as ameaças, palavras, os xingamentos. Nesse momento, ele não precisava mais nos trancar dentro de casa, mas ele tinha uma decisão favorável a ele. Então, as situações foram se intensificando.”
Cantarelli diz que a geladeira da casa não resfriava alimentos, que não havia comida suficiente pra ela e as filhas – “a vizinha começou a dar comida para a gente por cima do muro”.
“A casa não tinha nada, eu não tinha absorvente, tinha que usar a fralda das minhas filhas como absorvente.”
Ela diz que, em um bilhete com um salmo bíblico, ele escreveu no fim: “PS. The last instruction before you leave the earth” [“A última instrução antes de você deixar a terra]”.
“Comecei a ter medo de morrer, de verdade, porque eu tinha medo dele me forçar a tomar qualquer coisa e falar que eu realmente me matei. Eu tava ali sozinha.”
Raquel diz que, com auxílio de autoridades consulares brasileiras e advogados privados, ela buscou viabilizar os passaportes das filhas, além do dela, para voltar ao Brasil.
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Com muitas viagens frustradas por diferentes motivos no meio do trajeto, ela viajou em 2019 com as crianças até conseguir chegar ao Brasil – passou por Inglaterra, França, Holanda, Bélgica e Portugal, em busca de conseguir emitir os passaportes das filhas e ter autorização das autoridades para viajar ao Brasil.
Depois de cerca de um mês, chegou ao Rio de Janeiro. “Fui notificada na casa da minha mãe dizendo que eu tava sendo acusada de sequestro internacional e que iriam abrir um procedimento jurídico.”
“A minha vinda para o Brasil foi justamente pela falta de amparo e de assistência das autoridades irlandesas”, diz Cantarelli. “Tenho certeza absoluta que se eu fosse uma mulher irlandesa denunciando um pai brasileiro imigrante, no primeiro momento que eu chegasse lá na polícia, esse homem nunca mais chegaria perto das crianças.”
A BBC News Brasil perguntou se o governo irlandês gostaria de comentar as acusações de Cantarelli relativas a xenofobia e falta de suporte das autoridades, incluindo a polícia e o judiciário, mas o Departamento de Justiça disse que não comentaria o caso.
A reportagem também procurou a Embaixada do Brasil em Dublin e o Itamaraty para perguntar sobre o auxílio prestado à brasileira.
A assessoria de imprensa confirmou que “o Ministério das Relações Exteriores, por meio da Embaixada do Brasil em Dublin, presta assistência consular à nacional brasileira”.
Disse, no entanto, que “não divulga informações pessoais de cidadãos que requisitam serviços consulares e tampouco fornece detalhes sobre a assistência prestada a brasileiros”.
O que diz o pai
Os advogados que defendem o ex-marido de Raquel no processo de subtração internacional dizem que “as acusações da genitora foram todas comprovadamente falsas, e visaram exclusivamente possibilitar sair com as filhas clandestinamente da Irlanda”.
Dizem, ainda, que a decisão da segunda instância determinou a devolução das crianças “exatamente porque não houve e não há qualquer prova contra o pai das menores”.
“Em sua defesa, o genitor apresentou certidão de antecedentes criminais, declaração do empregador, declaração da ex-mulher irlandesa, declaração da filha mais velha, hoje com 19 anos e vive com o pai, e diversas outras pessoas.”
“O genitor sofreu ainda uma minuciosa e ampla (computadores e telefones apreendidos) investigação pelo Ministério Público Irlandês e também da Agência de Proteção à Criança, sendo todos os casos arquivados por falta de provas”, diz a resposta enviada à BBC News Brasil.
Sobre o sumiço dos passaportes, os advogados dizem que, “com o processo de separação e de guarda em curso, no qual se discutia a guarda das menores, houve decisão da justiça irlandesa que determinou o acautelamento dos passaportes das menores”.
“Raquel, obviamente, estava livre para viajar sozinha, se quisesse, mas, naquele momento, não poderia retirar as filhas da Irlanda sem autorização expressa do genitor ou da Justiça, autorização esta que ela sequer requereu. Optou por fugir.”
A respeito da falta de contato da mãe com as filhas, a defesa dele não nega, e diz que o pai também ficou sem contato quando estavam no Brasil.
“A genitora alega que não consegue ver as filhas desde que estas retornaram para a residência habitual na Irlanda. Curioso que esta foi exatamente a situação por ela impingida ao genitor, quando da saída da Irlanda com as duas crianças (impediu as filhas de ver o pai durante mais de 2 anos), conforme amplamente comprovado no processo judicial.”
Por último, a defesa disse: “Caso seja necessário, o pai terá como provar a excelente vida que as crianças têm na Europa, cercadas de parentes e da irmã mais velha, além de inúmeros primos. Estão completamente saudáveis e adaptadas a vida europeia, à língua inglesa, com muita qualidade e segurança e, acima de tudo, felizes.”
As filhas de Raquel Cantarelli retornarão ao Brasil?
Apesar da decisão final na justiça brasileira, o retorno das crianças dependerá das autoridades da Irlanda, como reconhece o defensor público federal Holden Macedo, que defendeu Cantarelli no processo.
“O Brasil adotou toda a boa vontade do mundo para devolução das crianças [em 2023] e o que se espera agora é que a Irlanda, ciente da decisão da justiça brasileira, na cooperação jurídica internacional, faça a devolução voluntária das crianças”, disse.
“Isso vai acontecer com certeza absoluta? Infelizmente não, porque temos duas ordens jurídicas, duas soberanias em jogo, e o que a gente espera da Irlanda é que haja reciprocidade.”
Macedo, da Defensoria Pública da União (DPU), afirma que “tudo leva a crer” que o pai das crianças “vai tentar ao máximo não devolver as crianças para o Brasil”. “Isso é o que a gente espera pela lógica de tudo que aconteceu no processo.”
A BBC News Brasil perguntou aos advogados do irlandês se ele pretende devolver as crianças à mãe, no Brasil, após a decisão recente.
“Não temos como responder essa pergunta”, disse a equipe de advogados do pai.
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A defesa acrescentou que há “decisão prévia da justiça irlandesa conferindo a guarda definitiva para o genitor, fixando a residência das menores na Irlanda” – um processo em que Cantarelli disse que não teve “assegurada efetiva participação e defesa”.
A reportagem também entrou em contato com o governo irlandês para responder às alegações de Cantarelli sobre a falta de assistência no país e para saber se está trabalhando na devolução das crianças à mãe, no Brasil.
O Departamento de Relações Exteriores da Irlanda respondeu que o Departamento de Justiça seria o mais indicado para responder à reportagem.
O Departamento de Justiça, Assuntos Internos e Migração respondeu inicialmente à BBC News Brasil que estava trabalhando em uma resposta para a reportagem, mas quatro dias depois respondeu que “não seria apropriado o Departamento comentar casos individuais.”
Convenção de Haia e os casos de subtração internacional de crianças
O deslocamento ilegal de uma criança para um país diferente do qual ela residia habitualmente, sem consentimento do outro genitor, é chamado de subtração internacional. E é tratado na Convenção de Haia de 1980 e na Convenção Interamericana de 1989.
Os tratados internacionais preveem que as nações devem colaborar para que uma criança subtraída possa voltar de forma imediata e segura ao país onde costumava viver.
Um dos casos mais conhecidos no Brasil nas décadas passadas foi o de Sean Goldman, nascido nos EUA em 2000, de mãe brasileira e pai americano. Após a morte da mãe, o pai biológico pediu — e conseguiu — o retorno dele aos EUA.
A intenção é proteger crianças e adolescentes até 16 anos que passam por situações de ruptura familiar e que são deslocadas de forma repentina para outro país.
Há, no entanto, exceções para essa regra geral de retorno da criança ao país de residência habitual.
Não há obrigação de devolver a criança ao país de origem quando “existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”, prevê o tratado internacional.
Além disso, organizações civis e autoridades brasileiras que atuam no tema vêm defendendo que casos de violência doméstica contra a mãe ou pai também passem a configurar como exceção.
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No Brasil, a previsão é que o tema seja votado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), onde uma ação pede que em casos de “suspeita ou evidência de violência doméstica em país estrangeiro”, a criança não seja repatriada ao “lar do agressor” no país onde vivia antes de ser levada a território brasileiro.
O tema também é discutido no Congresso. Tramita no Senado um projeto de lei que desobriga autoridades brasileiras de atender outro país que requeira o retorno de criança que esteja no Brasil, mas que lá resida, caso haja indícios de violência.
A discussão sobre o tema no Legislativo e no Judiciário brasileiro foi impulsionada pela atenção que o caso Cantarelli levantou, aponta a advogada e mediadora Janaína Albuquerque, coordenadora jurídica da ONG Revibra Europa, que oferece assistência gratuita para migrantes vítimas de violência doméstica.
“O caso da Raquel foi muito impactante para que esse tema voltasse à tona e para que o Brasil começasse a prestar atenção na situação das mães que passam por essas situações”, disse Albuquerque à BBC News Brasil.
“Sem o caso da Raquel, a gente provavelmente não veria essa pulsão sobre o assunto que a gente tem visto ultimamente, com a movimentação do projeto de lei e das ações no Supremo”, afirmou a especialista, que não é parte envolvida nos processos de Cantarelli na justiça.
Apesar de destacar a importância da existência da Convenção de Haia para que os países colaborem nesses casos complexos, a ONG Revibra critica que o tratado não traz previsões para o que pode ocorrer após o retorno da criança ao país de origem – por exemplo, com uma reversão na decisão da justiça, como no caso de Cantarelli.
“O procedimento de retorno da convenção se encerra com o retorno, o que significa que os Estados criam ali obrigações e responsabilidades até o momento em que a criança é repatriada. Depois, não existe nenhuma diretriz ou nenhuma orientação específica sobre o que deve acontecer caso haja uma reversão.”
O que disse o governo brasileiro
Na falta de clareza sobre os próximos passos, a BBC News Brasil também procurou as autoridades brasileiras envolvidas com o tema para perguntar o que acontece agora.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil disse que não comentaria o caso específico, e informou que casos com reversão de decisões de retorno de crianças “são raros” e que a “Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) detectou apenas dois casos nos últimos anos”.
A Acaf, vinculada ao Ministério da Justiça, é o órgão que recebe pedidos de outros países para devolver crianças que estão no Brasil — e que se comunica com autoridades de outros países para pedir o retorno de crianças ao Brasil.
Se não há acordo, a Acaf encaminha o caso à Advocacia-Geral da União (AGU), responsável por ajuizar a ação de subtração internacional na Justiça Federal.
A AGU é vista, nesses casos, como a defesa do genitor deixado em outro país. O órgão defende, no entanto, que seu papel é atuar em nome da União, para exercer as determinações do tratado internacional, e não atuar para o genitor abandonado.
Procurada pela reportagem para comentar o caso específico, a AGU explicou que a decisão da justiça brasileira seria comunicada à Autoridade Central irlandesa, “à qual será formalmente remetido o pedido de cooperação jurídica para o retorno das crianças ao Brasil”.
“Espera-se que o pedido seja recebido e tramitado com a celeridade que a Convenção da Haia de 1980 impõe aos casos de subtração internacional, porém esta questão depende da atuação das autoridades do Estado irlandês”, informou a AGU.
A AGU afirmou, ainda, que o caso “demonstra a existência de duas questões que exigem atenção no Brasil quanto à aplicação da Convenção da Haia de 1980”.
“Em primeiro lugar, as diferentes decisões judiciais proferidas ao longo do processo, inclusive em sentidos opostos, evidenciam a necessidade de que sejam fixados parâmetros mais claros e uniformes para a atuação dos juízes brasileiros nos casos em que há alegação de violência doméstica no âmbito da Convenção. Em segundo lugar, a demora no processamento e julgamento dos recursos apresentados por todas as partes no processo revela a necessidade de que sejam criados mecanismos para garantir maior celeridade às ações que tratam de subtração internacional de crianças.”
O órgão acrescentou que tem promovido iniciativas para tratar esses problemas, com atuação no STF, promoção de fórum internacional sobre violência doméstica e a Convenção de Haia, além de atuação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para tornar mais céleres as tramitações de casos de subtração internacional.
O Itamaraty não comentou o caso de Cantarelli.
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A BBC News Brasil contou outros casos de subtração internacional de crianças, com diferentes desfechos, nesta reportagem. Também abordamos como a saída repentina do ambiente em que a criança está acostumada a viver pode gerar um “estresse tóxico” para ela.
Sem comentar um caso específico de subtração internacional, o psiquiatra da infância e adolescência Guilherme Polanczyk, professor da Universidade de São Paulo (USP), destacou que é uma situação diferente do que ocorre em uma mudança de país numa situação ideal, preparada pela família — que, explica o psiquiatra, “gera um estresse, mas pode ser um estresse positivo, que vai fazer com que essa criança desenvolva uma nova língua”, por exemplo.
“Mas algo sem essa preparação, traumático e abrupto, vai gerar um estresse tóxico que, provavelmente, a partir daí, haverá ansiedade, sintomas emocionais, irritabilidade e outros sinais de que o equilíbrio emocional da criança foi atingido.”
Ao mesmo tempo, Polanczyk pondera que “se essa criança saiu de um ambiente nocivo e vai para um ambiente que a protege, isso pode ser positivo para o desenvolvimento dela a médio prazo”.
Do ponto de vista do desenvolvimento infantil, ele diz que “faz todo sentido” que uma situação comprovada de violência contra a mãe — ainda que não diretamente contra a criança — seja considerada uma exceção para o retorno da criança para aquele ambiente. Isso porque, segundo ele, esse tipo de situação gera um “efeito gigante” para a criança, com riscos de problemas de saúde mental e de desenvolvimento.
E quais devem ser os cuidados com as crianças e adolescentes subtraídos de um país?
Os desafios mudam não só com as características de cada situação, mas também com a idade dessas crianças e adolescentes.
De forma geral, a recomendação do psiquiatra é que o assunto não seja empurrado para baixo do tapete depois de uma mudança de país. Não falar sobre o tema, diz Polanczyk, pode “gerar cicatrizes emocionais”.
“É preciso falar o que aconteceu, integrar aquela vida anterior naquele outro país, naquele outro contexto, com a vida atual”, diz. “É importante trabalhar o que vinha acontecendo naquele outro ambiente, por que isso aconteceu, quais são os sentimentos que a criança tem”.
Ajuda no exterior
O documento, feito com o Ministério da Justiça e a ONG Revibra Europa, menciona os “riscos de natureza legal da decisão de se mudar de volta para o Brasil com menores, sem o consentimento do pai ou responsável pela criança”.
A cartilha alerta, por exemplo, para o fato de a retirada das crianças ser considerada crime em alguns países, o que pode levar a um pedido de prisão do genitor acusado de subtrair a criança.
Também orienta que a mãe vítima de violência doméstica reúna o maior número de provas do abuso sofrido e sugere que sejam reportados, “na medida do possível”, às autoridades locais, antes da decisão de deixar o país.
Entre as provas que podem ser consideradas, segundo a cartilha, estão laudos médicos, relatos para organizações estatais de apoio a vítimas de violência doméstica, notificações e denúncias para a polícia.
A sugestão é que as denúncias sejam preferencialmente feitas na companhia de uma pessoa de confiança, com conhecimento da língua e cultura locais.
Em situação de emergência, a recomendação é chamar a polícia ou ambulância.
Para quem está no Brasil e quer denunciar violência contra a mulher, o governo disponibiliza o Ligue 180, que funciona 24 horas por dia, incluindo sábado, domingos e feriados.
Em caso de emergência, a vítima ou alguém que esteja presenciando alguma situação de violência pode pedir ajuda por meio do telefone 190.