Governo Trump: a pintura da Estátua da Liberdade que foi vetada em exposição para não irritar presidente americano
Crédito, Getty Images
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- Author, Kelly Grovier
- Role, BBC Culture
Nós nos concentramos tão fixamente nos espinhos radiantes da sua coroa e no vigor da sua tocha cintilante que esquecemos por completo os grilhões da escravidão humana que a Dama da Liberdade tem sob seus pés.
Elas variam desde a deusa romana Libertas até o deus grego do sol, Hélios, passando pela multifacetada deusa egípcia Ísis — que era motivo de fascinação para o criador da escultura, o artista francês Frédéric-Auguste Bartholdi (1834-1904).
A obra parece destinada a gerar discussões. Ela é a imponente incorporação de uma verdade evidente sobre os símbolos culturais: a de que suas verdades nunca são evidentes.
A escultura de Bartholdi tem 46 metros de altura e é feita de cobre. Ela foi habilidosamente construída pelo engenheiro francês Gustave Eiffel (1832-1923) e apresentada formalmente aos Estados Unidos como um presente da França no dia 4 de julho de 1884.
Mas o motivo da atual controvérsia é uma surpreendente pintura da artista afro-americana contemporânea Amy Sherald, reimaginando a Estátua da Liberdade como uma mulher negra transgênero.
No início de julho, Sherald foi alertada que sua obra, intitulada Trans Forming Liberty (“Trans Formando a Liberdade”, em tradução livre), poderia irritar o presidente americano Donald Trump, que emitiu em janeiro uma ordem executiva, reconhecendo apenas dois sexos (masculino e feminino).
Por isso, a pintura não deveria ser incluída na exibição de suas obras na Galeria Nacional de Retratos do Instituto Smithsonian, em Washington DC, nos Estados Unidos, que é mantida com fundos do governo federal.
Até então, Sherald era mais conhecida pelo retrato oficial da ex-primeira-dama americana Michelle Obama, em 2018. E, em vez de considerar a retirada da obra, ela decidiu cancelar a exposição, pelo que chamou de “cultura da censura”.
Crédito, The Whitney Museum
A obra em questão se encontra atualmente em exibição no Museu Whitney, em Nova York. Ela faz parte da exibição itinerante de Sherald intitulada American Sublime e é uma amostra característica do instinto da artista, de deslocar seus temas e desestabilizar as expectativas.
Sherald costuma atingir este objetivo com frequência. Foi o que ocorreu no retrato de Michelle Obama e em Trans Forming Liberty.
Ela traduz a aparência das pessoas retratadas em uma escala de cinza (ou “grisalho”) incomum, incentivando o observador a olhar além da cor da pele e reavaliar seus conceitos sobre o que constitui raça.
A modelo para a obra de Sherald, Arewà Basit, é uma artista negra que se identifica como mulher trans não binária.
Ela é retratada contra um fundo rosa plano, com uma das mãos nos quadris e um vestido azul vibrante, que relembra a resplandescência sobrenatural das Madonas da Renascença. Seus cabelos têm um marcante tom de rosa.
A tocha que ela ergue na mão direita foi substituída por um buquê de humildes gérberas, um símbolo tradicional de alegria e esperança.
Esta sutil subversão relembra vagamente a mensagem pelo desarmamento do Atirador de Flores de Banksy, que também é poderoso pela sua impotência.
Sobre esse poder proposto pela sua obra, Sherald explicou para a rede de TV americana ABC que seu quadro “existe para dar espaço a alguém cuja humanidade foi politizada e desprezada”.
Este sentimento certamente vem de encontro ao espírito de hospitalidade da própria estátua, conhecida por exibir no seu pedestal um soneto de Emma Lazarus (1849-1887), invocando “os desabrigados, lançados pela tempestade, suas massas reunidas, ansiando por respirar em liberdade”.
Símbolo polarizador
Esta sincronicidade pode ser o apelo mais profundo da pintura, mas também seu maior passivo.
Desde sua inauguração, em outubro de 1886, a Estátua da Liberdade provocou críticos dos dois extremos do espectro político.
As defensoras do voto feminino afirmavam que a ilustração de uma mulher incorporando a liberdade era irônica demais para ser levada a sério, já que as mulheres não detinham o direito ao voto.
Paralelamente, os conservadores questionaram a eventual incitação aos migrantes para que se dirigissem aos Estados Unidos — as tais “massas reunidas” convocadas silenciosamente pela escultura.
Ao resgatar a Dama da Liberdade como um monumento de promessas não cumpridas, a obra de Sherald pretende fazer estremecer as bases da consciência americana.
Crédito, Getty Images
Até o momento, nem o presidente Trump, nem ninguém do seu governo condenou publicamente a pintura de Sherald ou sua representação de uma mulher negra transgênero.
Mas os organizadores da exposição, que tinha estreia prevista para 19 de setembro, tinham razões para recear repercussões iminentes sobre seu financiamento, se a obra fosse exibida.
Em março, Trump assinou uma ordem executiva intitulada “Restaurando a verdade e a sanidade da história americana”.
Seu objetivo é restringir o apoio financeiro governamental a museus e projetos que, segundo suas palavras, “degradarem os valores americanos comuns, discriminarem os americanos com base na raça ou promoverem programas ou ideologias inconsistentes com as leis e a política americana”.
Alegando que o Instituto Smithsonian estaria “sob a influência de uma ideologia discriminatória, baseada na raça”, Trump instruiu o vice-presidente J.D. Vance a executar sua ordem.
E foi apenas questão de tempo para que a releitura da Dama da Liberdade por Amy Sherald, como mulher negra transgênero, chamasse a atenção de Vance.
Após uma reunião com o vice-presidente, os organizadores da exposição começaram a repensar sobre a inclusão da pintura no evento, o que levou a pintora a abandonar o projeto.
Uma fonte anônima citada pela rede de TV americana Fox News afirmou que, durante a reunião, Vance expressou sua preocupação com a natureza woke da obra de Sherald.
Nos últimos meses, a ordem executiva assinada por Trump intensificou os confrontos sobre qual tipo de história é contada pelos símbolos nacionais americanos — ou qual seria a história autorizada a ser contada.
Revisão em museus
Um dos focos de conflito mais notáveis é o Parque Histórico Nacional da Filadélfia, no Estado americano da Pensilvânia. Lá fica o Sino da Liberdade, símbolo histórico dos Estados Unidos.
A Casa Branca ordenou que a instituição revisasse todos os seus programas até o final de julho de 2025, para garantir que suas narrativas “relembrem aos americanos o extraordinário patrimônio [da nação], o progresso consistente para transformá-la em uma União mais perfeita e ofereçam um registro inigualável do avanço da liberdade e da prosperidade”.
Uma questão específica terá recebido atenção específica, que é a inclusão, nos cartazes informativos do parque, de informações como o fato de que o primeiro presidente americano, George Washington (1732-1799), era proprietário de escravos, a brutalidade que sofriam as pessoas escravizadas e o tratamento dado aos nativos americanos.
Seja qual for a decisão sobre o tom e o conteúdo das exposições do Parque Histórico Nacional da Independência e de outros museus e instituições federais dos Estados Unidos que, agora, estão passando por revisões, é difícil controlar a ressonância do simbolismo cultural, por mais tenaz que seja o governo nas suas tentativas.
A exclusão do quadro de Sherald da visão do público, provavelmente, serviu apenas para amplificar sua exposição e impacto. Afinal, o que chama mais atenção do que algo que foi escondido?
Em relação à Estátua da Liberdade, Eiffel teve a premonição de construir a escultura sobre uma estrutura flexível com pilares de ferro fundido, que funcionam como uma rede de molas.
Esta estrutura permite que a fina cobertura da estátua se flexione e trinque sem se quebrar, garantindo a sobrevivência da obra frente às turbulências do tempo.
Será que o significado elástico da palavra “liberdade” será tão resiliente quanto a estátua que leva seu nome?
A exposição American Sublime, de Amy Sherald, está em cartaz no Museu Whitney de Nova York, nos Estados Unidos, até o dia 10 de agosto.