EUA x China: como começou rivalidade, acirrada por guerra comercial de Trump
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- Author, Alessandra Correa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
O anúncio no início de abril pelo presidente americano, Donald Trump, que seriam aplicadas tarifas de 34% sobre produtos chineses gerou uma retaliação em igual medida de Pequim.
Isso desencadeou novos golpes e contra-golpes de ambos os lados que resultaram até agora em tarifas americanas que somam 145% contra a China e de tarifas de 125% sobre produtos americanos importados pela China.
Os anúncios geraram instabilidade nas bolsas de valores e temores de recessão e impactos negativos na economia global.
Poucos dias depois, Trump anunciou uma pausa de 90 dias nas tarifas adicionais a vários outros países. A China, porém, não foi poupada.
O governo chinês descreveu as ações de Washington como “bullying econômico”. Em comunicado, o Conselho de Estado chinês disse que “se os EUA insistirem em prejudicar substancialmente os interesses da China, a China retaliará firmemente e lutará até o fim”.
As duas maiores economias do mundo têm uma relação complexa e uma rivalidade que abrange não somente competição econômica, mas também tensões geopolíticas e diferenças ideológicas.
Ao longo das décadas, essa relação foi marcada tanto por períodos de cooperação quanto de competição estratégica.
Vitória comunista
A origem dessa dinâmica remonta a 1949, com a fundação da República Popular da China por Mao Tsé-Tung, após a vitória comunista sobre as forças nacionalistas de Chiang Kai-shek na guerra civil chinesa.
“A China e os Estados Unidos foram aliados na [Segunda] Guerra [Mundial], que terminou em 1945 com a derrota do Japão imperial”, diz à BBC News Brasil a cientista política Mary Gallagher, especialista em política chinesa e professora da Universidade de Notre Dame.
“No entanto, a própria China estava muito dividida internamente entre o partido governante da época [os nacionalistas, ou Kuomintang] e os comunistas. Quase imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, houve uma guerra civil que durou até 1949, vencida pelos comunistas”, observa Gallagher.
Os EUA se recusaram a reconhecer o novo governo comunista em Pequim. Em vez disso, continuaram a apoiar o governo nacionalista, que havia perdido a guerra civil e fugido para a ilha de Taiwan.
A cientista política Ann Chih Lin, especialista em política chinesa e professora da Universidade de Michigan, observa que, se considerarmos a longa relação entre os dois países antes da guerra civil, a posição dos EUA em 1949 foi não apenas de rejeitar o comunismo, mas de manter o apoio ao governo nacionalista, com o qual já tinha uma relação.
“Se entendermos que os EUA [já] estavam orientados para o governo vigente, fica fácil entender o que aconteceu em 1949 não tanto como uma recusa em reconhecer a República Popular da China, mas sim que os EUA já tinham laços com o governo nacionalista de Chiang Kai-shek”, diz Lin à BBC News Brasil.
Segundo Lin, além disso, a rejeição dos EUA não era motivada especificamente por medo do comunismo chinês, mas direcionada principalmente à União Soviética, com o entendimento de que a China era um parceiro menor que poderia potencialmente apoiar as ambições soviéticas (no contexto da Guerra Fria).
Guerra da Coreia
A recusa dos EUA em reconhecer o governo comunista em Pequim deu início a um período de mais de 20 anos de interação limitada com a China continental, sem laços diplomáticos.
A Guerra da Coreia (1950-1953) aprofundou o antagonismo entre os dois países. Os chineses apoiaram o norte (que tinha apoio soviético), enquanto os EUA e a ONU defenderam as forças do sul.
“À medida que a Guerra Fria se intensificou, ficou cada vez mais difícil para os EUA manterem um relacionamento com a República Popular da China”, ressalta Gallagher.
“Do fim da Guerra da Coreia, em 1953, até 1979, os EUA e a República Popular da China não tiveram relações diplomáticas, não tiveram muito intercâmbio econômico, não tiveram muito intercâmbio entre povos. Por um longo período de tempo, foi um relacionamento muito ruim”, salienta Gallagher.
A década de 1950 foi marcada ainda por crises no Estreito de Taiwan. Diante de ações militares da China na região e do compromisso dos EUA em defender Taiwan, as duas nações chegaram à beira de um conflito, em plena Guerra Fria.
Em 1959, após a repressão da China a uma revolta no Tibete, que deixou milhares de mortos e levou à fuga do Dalai Lama para a Índia, os EUA condenaram os abusos de direitos humanos e apoiaram a resistência tibetana.
Cinco anos depois, em outubro de 1964, em meio a tensões entre EUA e China durante a Guerra do Vietnã, os chineses realizaram seu primeiro teste de uma bomba atômica.
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Diplomacia do pingue-pongue
No fim da década de 1960, porém, havia uma crescente divisão entre China e União Soviética, com diferenças ideológicas e sobre segurança. Em 1969, isso culminou em confrontos na fronteira.
Esse cenário ofereceu uma oportunidade de realinhamento estratégico nas relações entre Pequim e Washington, para contrabalançar a influência soviética.
O primeiro sinal de aproximação ocorreu em 1971, quando uma delegação de jogadores de tênis de mesa dos EUA foi convidada a visitar a China, país que até então estava fechado aos americanos.
O episódio ficou conhecido como “diplomacia do pingue-pongue” e abriu caminho para contatos diplomáticos de alto nível. Em julho daquele ano, o então conselheiro de Segurança Nacional americano, Henry Kissinger, fez uma viagem secreta à China.
Em 1972, o então presidente americano Richard Nixon fez sua visita histórica à China, quando se reuniu com Mao e com o primeiro-ministro chinês, Zhou Enlai. O Comunicado de Xangai, assinado durante a visita, lançou as bases para a normalização das relações entre os dois países.
O reconhecimento diplomático mútuo veio em 1979. Os EUA, sob a liderança de Jimmy Carter, passaram a reconhecer a posição de Pequim de que há um único Estado chinês, o princípio de “uma só China”.
Ao mesmo tempo, os EUA mantiveram relações não oficiais, comerciais e culturais com Taiwan e ambiguidade estratégica em relação à sua defesa.
Pouco depois, Deng Xiaoping, que liderava reformas econômicas na China, viajou aos EUA, em uma visita que simbolizou a nova era nas relações entre os dois países.
Política de engajamento
“De 1979, quando as relações foram formalmente restabelecidas, até, eu diria, 2014, os EUA adotaram uma chamada política de engajamento com a República Popular da China, para ajudar a China a se tornar uma sociedade e economia mais abertas e globalizadas. E isso correu muito bem durante muitos anos”, observa Gallagher.
Durante essas décadas, houve alguns períodos de tensão. Em 1989, a repressão violenta do governo chinês às manifestações por reformas democráticas, no que ficou conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial, levou à condenação internacional, incluindo sanções dos EUA e suspensão de vendas militares.
Em 1999, bombas lançadas por um avião americano atingiram a embaixada chinesa em Belgrado, matando três jornalistas. Apesar de os EUA terem se desculpado pelo que disseram ter sido um acidente, houve protestos ao redor da China e contra a embaixada americana em Pequim.
Em 2001, uma aeronave de reconhecimento americana colidiu com um caça chinês e fez pouso de emergência na ilha de Hainan, na disputada região do Mar do Sul da China. Os 24 membros da tripulação americana foram detidos, levando a um impasse diplomático de vários dias.
A era pós-Guerra Fria testemunhou uma mistura complexa de integração econômica e crescente competição estratégica. A política de “engajamento construtivo”, sob o presidente americano Bill Clinton, visava promover laços econômicos enquanto abordava preocupações com os direitos humanos.
A entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 impulsionou o comércio entre os dois países. Cinco anos depois, a China já era o segundo maior parceiro comercial dos EUA, atrás apenas do Canadá.
Segurança
No entanto, as tensões persistiram sobre questões como direitos humanos, desequilíbrios comerciais e Taiwan. Os crescentes gastos militares da China e sua assertividade no Mar do Sul da China também levantaram preocupações nos EUA.
Em 2007, em viagem à Ásia, o então vice-presidente americano Dick Cheney disse que o aumento do poderio militar da China “não é consistente” com o objetivo declarado de uma “ascensão pacífica”.
Segundo a China, o objetivo dos gastos era fornecer melhor treinamento e salários para seus soldados, para proteger sua segurança nacional e integridade territorial.
“Desde a retomada das relações entre a República Popular e os EUA, tanto governos republicanos quanto democratas estiveram muito interessados no sucesso econômico da China e realmente viam o sucesso econômico da China como uma contribuição para o sucesso econômico dos EUA”, diz Lin.
Segundo Lin, porém, enquanto ambos os países estavam entusiasmados em encontrar maneiras de colaborar no âmbito econômico, havia mais preocupação e uma relação mais cautelosa no que diz respeito à segurança.
“A principal preocupação dos EUA sempre foi Taiwan e a manutenção da situação separada de Taiwan. Já para a China, acho que sempre houve preocupação sobre as bases e relações militares dos EUA com outros países na Ásia e como poderiam ser usadas contra a China em caso de hostilidades”, observa Lin.
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Competição econômica
A crise financeira global deixou clara a crescente interdependência entre as duas economias. Em 2008, a China ultrapassou o Japão e se tornou o maior credor estrangeiro dos EUA, detendo cerca de US$ 600 bilhões em títulos do Tesouro. Nos anos seguintes, China e Japão se alternaram nessa posição.
Em 2010, a China se tornou a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos EUA. No ano seguinte, em meio à crescente influência da China, o governo de Barack Obama passou a buscar um aumento do engajamento diplomático, econômico e militar dos EUA na Ásia e na região do Pacífico.
“Quando o governo Obama assumiu, acho que entenderam que, à medida que a economia chinesa melhorava, à medida que a China começava a olhar para fora, por meio de políticas como a Nova Rota da Seda, a China estava assumindo um papel maior no cenário mundial”, diz Lin.
“E o governo Obama estava preocupado se esse papel no cenário mundial seria complementar ao relacionamento com os EUA ou se seria competitivo”, ressalta Lin. “A China interpretou essa virada [dos EUA] para a Ásia como algo, se não hostil, pelo menos uma demonstração de suspeita em relação à China.”
Lin destaca que, nesse período, os EUA estavam tentando criar um bloco comercial que excluiria a China. Em resposta, Pequim buscava acordos de segurança que aproximassem a Ásia da China e a tirariam da órbita dos EUA.
A mudança estratégica dos EUA incluiu a Parceria Transpacífica, acordo de livre comércio entre 12 países da região, assinado em 2015. Em 2017, o presidente Donald Trump retirou os EUA do acordo.
Gallagher cita duas razões principais para a piora do relacionamento entre os dois países.
“Uma é que o tipo de desenvolvimento e transformação econômica na China não significou uma transformação política. De certa forma, à medida que a China se tornou mais forte e rica, o Partido Comunista Chinês também se tornou mais forte e rico”, afirma.
“E, em segundo lugar, as duas economias se tornaram muito mais competitivas, em vez de complementares”, ressalta Gallagher. “A China ficou cada vez mais sofisticada em sua economia e começou a competir mais diretamente com os EUA.”
Ascensão de Xi Jinping
Em 2012, a China passou por sua principal transição de liderança em décadas, com a ascensão de Xi Jinping. No ano seguinte, o líder chinês foi recebido nos EUA por Obama, e ambos prometeram um novo modelo nas relações entre as duas potências e maior cooperação em questões bilaterais e globais.
Em 2015, os EUA deixaram clara sua oposição à militarização da cadeia de ilhas artificiais e recifes no Mar do Sul da China, território disputado pela China e vários outros países da região e importante rota do comércio marítimo global.
Durante seu primeiro mandato, a partir de 2017, Donald Trump lançou uma guerra comercial, com tarifas sobre produtos chineses e acusando Pequim de roubo de propriedade intelectual. A China retaliou com tarifas sobre produtos americanos.
Em 2018, sinalizando uma linha mais dura em relação à China, o vice Mike Pence falou em priorizar competição em vez de cooperação e usar tarifas para combater “agressão econômica”.
Pence também condenou as ações militares no Mar do Sul da China e acusou Pequim de interferir em eleições americanas. A China negou as acusações e alertou para o risco de danos nas relações bilaterais.
No ano seguinte, os EUA acusaram a China de manipular sua moeda. No mesmo ano, o apoio americano a manifestantes pró-democracia em Hong Kong provocou condenação de Pequim.
Pandemia
A pandemia de covid-19, a partir de 2020, exacerbou as tensões, com ambos os lados inicialmente trocando acusações sobre as origens do vírus, antes de mudarem o tom.
Gallagher destaca que a pandemia causou uma grande mudança na opinião pública americana em relação à China.
“Acredito que os americanos se tornaram mais negativos em relação à China nos últimos 10 ou 15 anos, devido à competição econômica. Mas a pandemia realmente focou a atenção das pessoas na dependência da cadeia de suprimentos em relação à China”, afirma Gallagher.
Ao fim do primeiro mandato de Trump, a postura mais dura dos EUA estava clara, com diferentes autoridades condenando supostas práticas comerciais injustas da China, roubo de propriedade intelectual, as ações militares no Mar do Sul da China, abusos de direitos humanos em Xinjiang e repressão à autonomia de Hong Kong.
O então diretor de Inteligência Nacional, John Ratcliffe, chegou a classificar a China como “a maior ameaça à América”.
Joe Biden, que assumiu o poder em 2021, ampliou várias das medidas do antecessor, com tarifas comerciais, sanções contra algumas autoridades chinesas e ampliação da proibição de investimento americano em empresas chinesas com vínculos militares. Também manteve a designação dos abusos contra os uigures em Xinjiang como genocídio, o que é rejeitado por Pequim.
Biden ressaltou a importância de investir mais em tecnologia e infraestrutura para competir com a China. Em meio a esforços dos EUA por uma resposta coletiva, a Otan declarou a China um desafio à segurança.
Em um encontro virtual entre Biden e Xi em 2021, o líder chinês alertou que os EUA estavam “brincando com fogo” ao apoiar Taiwan, que a China considera uma província rebelde e parte de seu território.
A partir da década de 2000, também houve um fortalecimento gradual das relações entre China e Rússia, com um alinhamento estratégico. Após a invasão da Rússia à Ucrânia, em 2022, o governo chinês se recusou a condenar o presidente russo, Vladimir Putin, pela guerra, e criticou sanções coordenadas pelos EUA.
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Crescente rivalidade
Embora tenha havido cooperação em algumas áreas, como as mudanças climáticas, a trajetória geral do relacionamento entre EUA e China continua sendo de crescente rivalidade.
Para Gallagher, o status de Taiwan e o apoio americano à ilha continuam sendo a questão mais importante nas relações bilaterais, que poderia inclusive levar a um conflito militar.
“[Taiwan] funciona como um país independente, agora é uma democracia muito vibrante. Mas a República Popular da China ainda afirma que Taiwan é parte da China e que deve ser devolvida.”
No entanto, Gallagher ressalta que a competição econômica se tornou cada vez mais importante e também está relacionada à competição militar.
“À medida que a China se tornou mais sofisticada economicamente, também permitiu que suas forças armadas se tornassem muito mais sofisticadas e competitivas em relação aos EUA.”
Lin considera de certa forma surpreendente que as dificuldades atuais nas relações bilaterais sejam principalmente econômicas, e não de segurança.
“[No governo Biden, havia] uma preocupação tanto com a China militarmente quanto com a economia chinesa, e uma tentativa real de dizer que, basicamente, as questões de segurança econômica nos Estados Unidos também são questões de segurança nacional”, salienta Lin.
“Mas essa não tem sido a linguagem do governo Trump”, observa, lembrando que o atual governo tem focado não no poderio militar da China, mas sim na ideia de que a China tratou os EUA de maneira injusta economicamente.
“Não tenho certeza se a conexão entre segurança nacional e segurança econômica impedirá os EUA de fazer um acordo com a China. Por outro lado, o ambiente de negociação entre China e EUA está bem ruim neste momento”, ressalta Lin.
Lin ressalta que, apesar de abordagens diferentes, há muitas semelhanças entre os dois países, e tanto a China quanto os EUA veem a si mesmos com um senso de excepcionalismo.
“Em muitos aspectos, é claro, são muito diferentes. Mas nesse sentido, ao se entenderem como excepcionais, acho que a China e os EUA estão absolutamente alinhados.”