Envelhecimento: a corredora recordista mundial aos 77 anos que é estudada pela ciência
Crédito, Gentileza Universidade de Loughborough
- Author, Margarita Rodríguez
- Role, BBC News Mundo
Ela havia disputado a maratona de Boston, nos Estados Unidos, dias antes de conversar com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. E, agora, ela tem mais três provas à sua frente.
Mas, além destes eventos, a atleta de elite de 77 anos de idade tem outro “grande objetivo”.
Rice já quebrou recordes mundiais na categoria feminina entre 75 e 79 anos, em distâncias que variam dos 1,5 mil metros até a maratona. Ela chegou a superar os homens vencedores em algumas corridas na mesma categoria de idade.
Seu desempenho esportivo chamou a atenção de uma equipe de pesquisadores, que pediu a ela que participasse de um estudo científico.
“O incrível nos seus dados é que seu VO2 máximo, provavelmente, é mais alto do que o de mulheres de 25 anos”, segundo o pesquisador Michele Zanini, da Faculdade de Esportes, Exercícios e Ciências da Saúde da Universidade de Loughborough, no Reino Unido.
O VO2 máximo é a maior quantidade de oxigênio que pode ser absorvida, usada e transportada pelo corpo ao realizar uma atividade física. Ele é considerado indicador do rendimento aeróbico.
Zanini é um dos autores do estudo. Ele conta que Rice passou por uma série de testes, seis dias depois de participar da maratona de Londres, em 2024.
“Ela havia acabado de bater o recorde mundial na sua categoria”, explica o pesquisador. “Por isso, foi um momento muito bom para que entendêssemos como seu corpo se desenvolve.”
Os pesquisadores se concentraram nos “fatores fisiológicos determinantes do rendimento excepcional” da atleta. Mas Rice garante que não se sente diferente dos demais corredores.
Correndo há mais de 40 anos
Rice nasceu na Coreia do Sul e emigrou para os Estados Unidos. Ela tem dois filhos, um com 52 e outro com 50 anos de idade.
A atleta começou a correr quando tinha 35 anos, para perder alguns quilos que havia ganhado nas férias.
Crédito, Arquivo Pessoal
“Comecei a trotar em volta da quadra, até que, sem perceber, estava correndo distâncias cada vez mais longas.” Primeiro, foram 3,4 km, depois 8 km.
Rice decidiu entrar em um clube de corredores da sua comunidade. Junto com eles, ela treinou e se inscreveu na sua primeira corrida: a maratona de Cleveland, nos Estados Unidos, em 1983.
“Corri em 3 horas e 45 minutos”, relembra ela. “Ali, fiquei sabendo que poderia fazê-lo e, por isso, comecei a treinar um pouco mais forte.”
Depois, veio a maratona de Columbus, no Estado americano de Ohio. Rice completou a prova em 3 horas e 16 minutos, garantindo sua classificação para a maratona de Boston.
“Ali, me apaixonei. Desde então, não parei de correr maratonas”, ela conta.
Seus triunfos se traduziram em cada vez mais corridas, dentro e fora dos Estados Unidos.
“Não se tratava mais de correr em uma prova”, segundo ela, “mas também da emoção de viajar para outro país.”
O primeiro recorde mundial
Rice já correu mais de 130 maratonas. Ela conta que estabeleceu seu primeiro recorde mundial com 70 anos de idade, na maratona de Chicago, em 2018.
“O recorde anterior tinha cinco anos”, relembra ela, “e bater aquela marca foi muito importante para mim.”
“Em 2019, fui a Berlim [na Alemanha] e quebrei meu próprio recorde em três minutos: 3 horas e 24 minutos. Tenho certeza de que alguém logo irá batê-lo.”
Crédito, Gentileza Universidade de Loughborough
Rice estabeleceu este recorde na categoria de 70 a 74 anos de idade.
Em 2023, na maratona de Chicago, nos Estados Unidos, ela conseguiu um novo recorde na categoria de 75 a 79 anos. “E, no ano passado, bati o recorde da maratona de Londres”, ela conta.
Agora, Rice tem em vista a maratona de Sydney, na Austrália, que irá ocorrer em agosto. “Estou trabalhando para tentar quebrar meu próprio recorde.”
Toda semana, ela corre cerca de 80 km, em um regime de treinamento de seis dias por semana.
“Estou sempre pronta porque corro ao longo de todo o ano”, ensina Rice.
Quando a ciência bate à porta
O campeão da maratona de Boston de 1968, Amby Burfoot, é reconhecido como especialista nesta questão. Sua vasta experiência como corredor da maratona é complementada pela sua carreira como escritor e jornalista.
Crédito, Paul J. Connell/The Boston Globe via Getty Images
“Observamos as atuações de Jeannie e ela correu mais rápido que qualquer outra mulher de 75 anos [de que se tenha registro]”, declarou ele à BBC.
Burfoot entrou em contato com o professor de Nutrição e Ciências do Desenvolvimento Bas Van Hooren, da Universidade de Maastricht, na Holanda.
“Ele me recomendou que analisasse Jeannie, porque sabe que fiz estudos com homens atletas da categoria máster”, contou Van Hooren à BBC News Mundo.
“Ele me disse que ela também está quebrando recordes mundiais nesta divisão e me pareceu muito interessante, já que não havíamos realizado estudos com mulheres.”
Quando soube que Rice viajaria para Londres, o pesquisador ligou para seu colega Michele Zanini e eles fizeram contato com a atleta.
“Fiquei muito lisonjeada quando eles me pediram para participar”, relembra Rice. Ela tinha 76 anos na época do estudo.
“Explicamos o que pretendíamos fazer e o que poderíamos oferecer, em termos de ideias para treinar melhor, que é o que você normalmente obtém depois de passar por um teste fisiológico”, relembra Zanini.
Mas este estudo vai muito além de Rice. Seu rendimento também esclarece como podemos envelhecer de forma saudável.
No laboratório
Os pesquisadores pediram à atleta que corresse em uma máquina, “como faz habitualmente” durante seus treinamentos.
Zanini destaca que eles se concentraram principalmente em medir sua capacidade aeróbica e calcular seu rendimento.
Crédito, Gentileza Universidade de Loughborough
“Tudo é feito em função de três parâmetros observados na absorção máxima de oxigênio, ou seja, na quantidade máxima de oxigênio que uma pessoa pode utilizar”, explica Zanini.
“Isso nos permite avaliar a economia do exercício e a economia da corrida, ou seja, como esse oxigênio se traduz em velocidade e nos limites fisiológicos.” Em outras palavras, quanto oxigênio Rice consome para maximizar seu exercício.
Os pesquisadores também estudaram parâmetros relacionados à técnica de corrida e à arquitetura muscular da atleta. Eles mediram sua gordura corporal e recolheram amostras de sangue, para determinar seus níveis de lactato.
A sessão durou cerca de três horas. Rice recorda que foi “realmente interessante”.
Os resultados
O estudo “revela o VO2 máximo mais alto já registrado entre mulheres com mais de 75 anos e o uso excepcional [do oxigênio], em relação aos limites metabólicos e à velocidade da maratona, comparável ao de corredoras de longa distância de classe mundial mais jovens”.
Crédito, Gentileza Universidade de Loughborough
Zanini explica que o VO2 máximo registrado por Rice no laboratório ficou muito próximo do nível excelente de condicionamento físico de uma mulher jovem, fixado, por exemplo, pelas diretrizes do Colégio Americano de Medicina Esportiva.
A atleta também demonstrou frequência cardíaca máxima de 180 batidas por minuto, “muito acima do esperado para sua idade”.
“Quando os resultados foram publicados, eles me disseram que minha condição física é quase tão jovem quanto a de uma mulher de 25 anos”, conta Rice.
“Realmente não me sinto assim”, ela diz, rindo. “Mas imagino que eles se refiram à minha forma de correr.”
“Não sou diferente de ninguém. Corro com gente mais jovem e não vejo nenhuma diferença, exceto porque sou muito dedicada.”
“Correr é uma parte importante da minha vida. Como ocorre com outros corredores, eu me sinto muito motivada. Eu me proponho um objetivo e é importante ter determinação para atingi-lo.”
“Quero continuar correndo da mesma forma ou melhor”, afirma Rice, “mas, à medida que você envelhece, fica difícil ficar mais veloz.”
“Sei que, se treinar bem, poderei ser um pouquinho mais rápida, mas não muito.”
Estilo de vida
Para Rice, a questão é “simplesmente” se manter saudável.
“Eu me levanto, tomo uma xícara de café e, às 5h30, 6h da manhã, já estou na porta, pronta para sair para correr, todas as manhãs. Faço isso sem parar há 42 anos.”
Crédito, BBC News Mundo
“Eu me deito muito cedo”, ela conta. “Não preciso dormir muito, sete horas são suficientes para mim.”
“Como muitas verduras, frutas e muito peixe. Adoro arroz. Sei que deveria comer um pouco mais de carne vermelha para conseguir proteínas, vou tentar fazer pelo menos uma vez por semana. Mas não é algo que me enlouqueça.”
Rice conta que não sente necessidade de frituras e nunca foi fã de doces. “Muita gente gosta de bolos e biscoitos, mas, para mim, nunca tiveram muita importância.”
Mas ela já teve um hábito menos saudável, hoje abandonado.
“Quando eu era mais jovem e estava criando meus filhos, costumava tomar uma bola de sorvete todas as noites”, relembra Rice. “Agora, tento me manter afastada porque sempre gostei de sorvete.”
Ela também toma muita água. “Fico hidratada o tempo todo.”
‘Incrível’
Rice conta que nunca pensou que poderia superar os homens corredores da sua categoria.
“Eu nem mesmo revisava seus resultados”, relembra ela. “Mas, quando corri a maratona de Berlim e bati meu próprio recorde, meu filho me mandou mensagem: ‘Mamãe, você sabe que venceu os homens da sua divisão?'”
Crédito, Erica Denhoff/Icon Sportswire via Getty Images
Em março, Rice correu a maratona de Tóquio, no Japão, e venceu na sua categoria.
“Quando voltei para casa, observei a divisão masculina e percebi que os venci por 1 ou 2 minutos. Pergunto aos meus amigos, brincando: ‘O que está acontecendo com os homens?'”, ela conta, rindo.
Para Burfoot, é “realmente extraordinário” que, em alguns eventos, Rice tenha conseguido melhor desempenho que os homens.
“Acompanho o atletismo com muita atenção e nunca vi outro caso em uma corrida grande, importante, como a maratona de Boston ou a maratona de Londres, em que a primeira mulher em uma categoria de idade tenha superado todos os corredores homens [da mesma categoria].”
“Jeannie fez isso, pelo menos, cinco vezes. É absolutamente incrível.”
Consistência
O professor Van Hooren destaca a constância de treinamento de Rice ao longo dos anos, sem sofrer grandes lesões, nem se submeter a regimes diários de alta intensidade.
“Provavelmente, esta seja uma das razões que fizeram com que ela conseguisse treinar por tanto tempo”, explica ele. “Se você, literalmente, fizer décadas de treinamento, seu corpo irá se adaptar e você poderá conseguir rendimentos muito altos em idade avançada.”
Crédito, Gentileza Universidade de Loughborough
O pesquisador reconhece que é muito difícil distinguir o que é genética e o que é treinamento. Mas este e outros estudos demonstram que fazer exercícios de forma consistente, à medida que envelhecemos, pode atenuar a redução do VO2 máximo.
Michele Zanini explica que, se este parâmetro for baixo demais, você não conseguirá subir escadas e, se seus níveis de força forem muito reduzidos, você não poderá manter o equilíbrio.
“O treinamento pode ajudar a conservar estas funções fisiológicas que são muito importantes para nossa independência”, afirma o pesquisador.
Além de manter alimentação equilibrada e estilo de vida saudável, “acredito que a mensagem fundamental é que, se você quiser ficar saudável em idade avançada, a constância é fundamental”, destaca Bas Van Hooren.
Para os autores, o estudo confirma que nunca é tarde demais para começar a fazer exercícios.
“Não acredito que Jeannie pensasse, com 35 anos, que iria quebrar recordes mundiais com mais de 70 anos de idade”, explica Zanini.
‘Não se renda’
Jeannie Rice nunca teve um treinador. Para ela, sua paixão pelas corridas permitiu que ela fizesse parte de um grupo de amigos.
“Nós nos motivamos e nos ajudamos uns aos outros”, ela conta.
Rice não gosta de correr ouvindo música. “Desfruto da beleza da natureza, penso no que vou fazer, planejo.”
Ela raramente leva seu telefone celular. “É meu momento de paz.”
“Antes, ter 50, 60, 70 anos era ser velho. Mas, à medida que comemos melhor e fazemos exercícios, nossas vidas se estendem. Por isso, você precisa continuar se movendo.”
“Não precisa ser correr. Pode ser nadar, andar de bicicleta. Faça o que você gosta e proponha-se um objetivo. É para você. Ninguém pode fazer por você.”
“Não se renda. A idade é só um número”, conclui a atleta.