Energia renovável: o ‘roubo de vento’ que ameaça parques eólicos
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- Author, Sophie Hardach
- Role, BBC Future
Mas um fenômeno preocupante vem atraindo cada vez mais a atenção: em certas condições, os parques eólicos podem “roubar” o vento uns dos outros.
“Os parques eólicos produzem energia e esta energia é extraída do ar. A extração de energia do ar causa redução da velocidade do vento”, afirma o cientista e pesquisador Peter Baas, da companhia holandesa Whiffle, especializada em energia renovável e meteorologia.
Ele explica que o vento sopra com menos velocidade atrás de cada turbina – e do parque eólico como um todo – em comparação com o lado da frente. “Este é o chamado efeito esteira”, afirma Baas.
Resumidamente, à medida que as turbinas giratórias retiram energia do vento, eles criam um “rastro”, reduzindo a velocidade do vento atrás do parque eólico.
Sob certas condições meteorológicas, este rastro pode chegar a se estender por mais de 100 km, para parques eólicos offshore muito grandes e densos. Mas é mais comum que se estenda por dezenas de quilômetros, segundo os pesquisadores.
Se o parque eólico for construído contra o vento em relação a outro parque, ele pode reduzir a energia emitida pelo produtor que estiver a favor do vento em até 10% ou mais, segundo as pesquisas.
Mas o advogado norueguês Eirik Finserås, especializado em energia eólica offshore, destaca que “a expressão ‘roubo de vento’ é um tanto enganosa, pois você não pode roubar algo que não pode ter dono – e ninguém é dono do vento”.
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Ainda assim, ele indica que este fenômeno pode ter uma série de consequências negativas para os construtores de parques eólicos e, potencialmente, até causar problemas entre fronteiras.
De fato, existem diversas disputas em andamento entre construtores de parques eólicos sobre o suposto roubo de vento. Elas geram preocupação em países que dependem do aumento da produção de energia eólica offshore para atingir seus objetivos climáticos de emissões zero.
Embora o problema do roubo de vento, em princípio, seja conhecido há muito tempo, ele vem ganhando cada vez mais relevância, devido à escala e à velocidade da expansão offshore, bem como ao tamanho e à densidade dos parques eólicos offshore, segundo especialistas.
Aumento dos parques e do tamanho das pás
No mar do Norte, que vem testemunhando o boom da energia eólica offshore na Europa, o impacto do efeito esteira sobre a produção de energia provavelmente irá aumentar nas próximas décadas, com o mar ficando cada vez mais repleto de parques eólicos.
É o que indicam as simulações elaboradas por Baas, em conjunto com pesquisadores da Universidade de Tecnologia de Delfos, na Holanda, e do Instituto Meteorológico Real Holandês.
Quanto maior e mais denso o parque eólico, mais forte é o efeito esteira, segundo ele.
Um novo projeto de pesquisa no Reino Unido, publicado na primavera deste ano no país, pretende fornecer um quadro mais claro do efeito esteira. A intenção é ajudar os governos e construtores a melhorar seu planejamento e evitar disputas.
O projeto irá modelar as esteiras e seu impacto sobre a produção dos parques eólicos em 2030, quando haverá milhares de outras turbinas nas águas do Reino Unido, além das já existentes hoje, segundo o líder do projeto, Pablo Ouro, pesquisador na área de engenharia civil da Universidade de Manchester, no Reino Unido.
“Temos observado os efeitos esteira há anos e já sabíamos que eles acontecem”, explica Ouro.
“O problema é que, para atingir as emissões zero, precisamos construir uma certa capacidade eólica offshore. Por isso, para 2030, precisaremos ter o triplo da capacidade que temos agora – ou seja, em menos de cinco anos, precisaremos instalar milhares de turbinas.”
“[Algumas destas] turbinas estarão em operação em locais muito próximos de onde já estamos operando, de forma que tudo está ficando cada vez mais concorrido”, segundo Ouro. “Por isso, estes efeitos esteira, agora, começam a ter mais impacto.”
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O governo britânico prometeu que, até 2030, o Reino Unido irá gerar energia de fontes renováveis, como vento, em quantidade suficiente para cobrir suas necessidades elétricas.
Atualmente, existem no Reino Unido diversas disputas sobre possíveis efeitos esteira entre construtores de parques eólicos offshore, segundo Ouro. Na sua visão, estas disputas são parcialmente causadas pelas incertezas sobre o impacto preciso das esteiras.
Além disso, como os parques eólicos offshore são construídos em conjuntos, pode ser difícil determinar como todos eles podem afetar a produção de energia uns dos outros, explica Ouro.
“Quando você tem dois parques eólicos, é muito simples determinar o quanto o parque eólico A interage com o parque eólico B e vice-versa. E se você tiver seis parques eólicos, como eles interagem entre si?”
“É isso que não sabemos – mas certamente irá acontecer”, à medida que forem construídos cada vez mais parques eólicos, afirma Ouro.
As turbinas mais novas possuem pás de mais de 100 metros – o comprimento de um campo de futebol. E, entre as maiores turbinas offshore, uma única delas pode abastecer cerca de 18 mil a 20 mil residências europeias de tamanho médio.
Mas este aumento das dimensões das turbinas pode amplificar o efeito esteira, pois um diâmetro de rotor maior pode criar uma esteira mais longa, segundo Ouro. Ele destaca que mais pesquisas são necessárias para entender estes impactos.
Estamos ocupando os melhores lugares?
Seu estudo analisa como a esteira de um parque eólico planejado na Noruega poderá prejudicar outro parque, localizado a favor do vento, na Dinamarca.
Finserås alerta que o problema da gestão dos efeitos de esteira, se não for abordado, poderá resultar em conflitos legais e políticos, dificultando os investimentos em energia eólica.
“O mar do Norte e particularmente o mar Báltico, pelo menos na Europa, provavelmente serão um centro de construção de parques eólicos offshore em escala massiva”, afirma o advogado.
“Por isso, a questão dos efeitos esteira, muito provavelmente, irá permear a transição energética no mar do Norte e em outros lugares.”
Do ponto de vista de investimentos, até efeitos esteira relativamente pequenos podem causar problemas para os construtores offshore, segundo Finserås.
“Existem imensos custos para a construção de parques eólicos offshore”, explica ele, devido à enorme escala desses conjuntos e à complexidade do trabalho, incluindo a construção de navios específicos.
Para justificar o investimento e ainda ter lucro, “é muito importante que o construtor seja capaz de projetar o parque eólico para que ele produza uma certa quantidade de eletricidade por 25 ou 30 anos“, que é a vida útil típica de um parque eólico, segundo ele.
Mesmo uma redução relativamente pequena da produção de energia pode prejudicar este cálculo de investimentos e fazer com que o parque eólico não seja financeiramente viável, afirma Finserås.
O advogado alerta que, se os operadores ou países tentarem evitar estes efeitos esteira garantindo os melhores pontos para si próprios, eles poderão criar um novo risco.
Neste caso, os efeitos esteira poderão ocasionar “o fenômeno [conhecido como] ‘corrida para a água‘, com os Estados acelerando o desenvolvimento para colher os benefícios dos melhores recursos eólicos ainda disponíveis’.”
Esta aceleração do desenvolvimento pode aumentar o risco de ignorar outros aspectos importantes do planejamento eólico offshore, como a proteção do ambiente marinho, segundo ele.
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Pablo Ouro também destaca um risco cada vez maior de problemas entre fronteiras.
“Todos os conflitos existentes até hoje [no Reino Unido] são entre parques eólicos britânicos”, segundo ele. “E se, amanhã, surgir uma disputa entre um parque eólico britânico e um holandês, belga ou francês?”
Para Ouro, “quanto antes anteciparmos esta situação e estabelecermos as bases, definindo ‘OK, é assim que iremos lidar com isso’, melhor. Irá reduzir as incertezas e é muito melhor para o setor.”
Eirik Finserås recomenda que os países europeus abordem o problema do roubo de vento em cooperação e consultando uns aos outros, durante o planejamento dos parques eólicos. E que é preciso também criar regulamentações claras que ajudem a gerenciar o vento como recurso compartilhado.
Ele sugere, essencialmente, que o vento possa ser tratado como outros recursos marinhos compartilhados, para os quais já existem regulamentações. É o caso dos depósitos de petróleo que cruzam as fronteiras dos Estados ou dos peixes.
Finserås destaca que “não é um caso em que [os Estados] não tenham regulamentado questões similares antes”.
Para enfrentar estas questões delicadas, é útil que os países europeus envolvidos, de forma geral, mantenham boas relações políticas entre si, destaca o advogado.
“Precisamos descarbonizar setores energéticos com muita rapidez”, explica ele. “Esta é a ambição da União Europeia quando o assunto são as políticas eólicas offshore.”
“Por isso, não há dúvida de que tudo isso está acontecendo com muita rapidez. Mas não deveríamos deixar de encontrar boas soluções apenas porque tudo está ocorrendo rapidamente.”
Ele relembra que brigar sobre o vento não é do interesse de ninguém. “Existe um incentivo de cooperação para encontrar soluções equitativas entre os Estados, mesmo que [a expansão da energia eólica] esteja avançando a toda velocidade.”
Não é apenas a Europa que está correndo para entender melhor os efeitos das esteiras. A China, por exemplo, vem expandindo rapidamente seus parques eólicos offshore e os pesquisadores do país já destacaram o impacto cada vez maior do efeito esteira sobre os parques eólicos chineses.
Desde o anúncio do projeto, em março, Ouro recebeu uma enxurrada de e-mails de pessoas demonstrando seu interesse. Para ele, isso demonstra a urgência desta questão.
“Precisamos compreender isso, precisamos progredir mais com os modelos, para que todos tenham confiança, pois precisamos desta quantidade de vento offshore para atingir a emissão zero. Temos que concretizar isso”, conclui o pesquisador.