‘Diplomacia da cerveja’: o país europeu que quer ensinar o mundo a beber ‘do jeito certo’
Crédito, Alamy
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- Author, David Farley
- Role, BBC Travel
A bebedeira começou às 10h39 da manhã. Vinte cervejeiros tinham acabado de entrar no bar, dentro de uma cervejaria na República Tcheca, um dos grandes produtores de cerveja do mundo.
Levantei minha caneca de cerveja tipo pilsen com três dedos de espuma no topo e brindei com Liam Taheny, um produtor de cerveja artesanal do sul da Austrália.
Quando perguntei o que mais o impressionava na cultura cervejeira tcheca, ele não hesitou. “O conhecimento de cerveja, e tudo relacionado a ela, é simplesmente impressionante aqui.”
“Você diz isso por que conversou com cervejeiros tchecos?”, perguntei.
“Estou falando de pessoas comuns. Elas falam sobre cerveja de um jeito que só um mestre cervejeiro ou um nerd de cerveja falaria lá na Austrália.”
Taheny, mestre cervejeiro da Brightstar Brewing, foi um dos 20 cervejeiros da Austrália, do Canadá e dos Estados Unidos recentemente convidados pelo Ministério da Agricultura da República Tcheca para passar cinco dias imersos na cultura de cerveja do país.
Mas não foi só uma farra regada a cerveja. O itinerário incluiu encontros em grandes e pequenas cervejarias, com produtores de lúpulo, bartenders e donos de bares — tudo parte de um experimento do governo tcheco chamado de “diplomacia da cerveja”.
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A República Tcheca – e especificamente a região da Boêmia — é famosa há muito tempo pelo seu pivo (cerveja, em tcheco). Afinal, seus moradores vêm fabricando essa bebida desde pelo menos o ano de 993 d.C.
Os tchecos consomem mais cerveja per capita do que qualquer outro país do mundo (quase o dobro do segundo colocado, a vizinha Áustria).
Em muitos lugares do país, a cerveja é mais barata que uma garrafa de água mineral. Não é à toa que o país se vende como o principal destino cervejeiro do mundo.
Ainda assim, entre os verdadeiros aficionados por cerveja, a lager tcheca sempre foi relativamente subestimada, ofuscada pelas ales belgas, pelas cervejas bávaras, da Alemanha, e pela febre mundial das IPAs.
Isso pode ser atribuído ao passado tumultuado da região: foram 41 anos atrás da “Cortina Ferro”, que separava Europa sob influência soviética. Isso tornava as cervejas tchecas difíceis de se encontrar no exterior.
E, nas décadas desde o fim do comunismo, em 1989, as cervejarias tchecas tiveram que se privatizar e modernizar, atualizando a tecnologia de produção.
Mas as coisas estão mudando, e as lagers — especialmente as lagers ao estilo tcheco — estão finalmente ganhando reconhecimento.
Desde 2019, uma rede de diplomatas e cervejarias tem trabalhado nos bastidores para aumentar a visibilidade da cerveja tcheca e inspirar cervejeiros estrangeiros a produzirem lagers autênticas no estilo tcheco: refrescantes, encorpadas, com notas amargas, muitas vezes com um leve sabor amanteigado no final e servidas com uma generosa camada de espuma.
O Ministério da Agricultura não tem estatísticas, mas, desde que o governo começou a receber cervejeiros de todo o mundo, as lagers tchecas de produtores artesanais têm surgido em toda a América do Norte — os cervejeiros australianos só foram incluídos recentemente nos encontros anuais sobre cerveja.
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É uma estratégia que lembra o Programa Global Thai, da Tailândia, uma forma de soft power comestível lançado em 2002 para promover restaurantes e a culinária tailandesa no exterior.
Esse esforço levou a um boom de restaurantes tailandeses ao redor do mundo e ajudou a colocar a Tailândia no mapa da gastronomia global.
Quando o programa começou, havia 5,5 mil restaurantes tailandeses fora da Tailândia; em outubro de 2023, já eram quase 17,5 mil, de acordo com algumas estimativas. A revista The Economist cunhou rapidamente o termo “gastrodiplomacia”.
Agora, a República Tcheca está seguindo os passos da Tailândia com sua missão de seis anos de “diplomacia da cerveja”. Afinal, seguindo a lógica por trás disso, diferente da culinária tailandesa, a comida tcheca não faz exatamente sucesso com os estrangeiros. Mas uma coisa que os tchecos sabem fazer bem é cerveja.
Eu pude ver o programa em ação quando fui convidado a me juntar aos cervejeiros por algumas noites.
Em uma das noites, nos esprememos dentro de uma pequena cervejaria artesanal chamada Pioneer Beer, na cidade de Žatec, no norte da Boêmia, lar do cobiçado lúpulo Saaz, que é um ingrediente essencial nas lagers ao estilo tcheco desde que a Pilsner Urquell criou a primeira golden lager em 1842.
Os cervejeiros se reuniram em volta do mestre cervejeiro Michal Havrda e começaram a bombardeá-lo de perguntas, usando termos como “decocção” e “floculação”.
Alguns dias depois, eles tiveram uma conversa animada com Vaclav Berka, mestre cervejeiro aposentado da Pilsner Urquell, na cidade de Plzeň, e com Adam Brož, atual mestre cervejeiro da Budvar, em České Buděvice, duas das maiores cervejarias do país.
Eles também passaram um tempo na Lukr, uma empresa inovadora de Plzeň que fabrica torneiras de abertura lateral, que regulam melhor o fluxo de cerveja, permitindo que o copo seja servido com a clássica e cremosa camada de espuma, tão característica da cerveja tcheca.
“Se você servir do jeito certo, com uma boa camada de espuma, ela vai adicionar uma doçura e cremosidade à sua bebida que vai permanecer no seu paladar até o último gole”, explicou Ondřej Rozsypal, mestre de chope da Lukr e eleito o bartender do ano em 2022.
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Quando a Lukr começou a vender as torneiras especiais para lager tcheca em 2015, a empresa vendeu uma dúzia para a América do Norte. Hoje, a companhia vende até 2 mil por ano para bares e tap rooms em todos os cantos dos Estados Unidos e do Canadá — e os esforços da diplomacia da cerveja são uma das razões para o aumento na popularidade.
Poucos dias antes, no famoso pub Lokál, em Praga, conhecemos Lucie Janečková, gerente do Instituto Pivo, onde ela dá cursos sobre métodos corretos de servir cerveja e faz tours focados na bebida pela cidade.
“Me dá uma tristeza enorme ver um bartender destruindo uma cerveja ao servi-la do jeito errado”, disse.
“A cultura cervejeira tcheca é sobre respeitar o processo de servir a cerveja, e estamos tentando ensinar isso para cervejeiros estrangeiros, porque fazemos isso há mais tempo do que qualquer outro lugar no mundo.”
Como mostrou a demonstração na Lukr, os tchecos reverenciam o processo de produção de cerveja — e essa nova iniciativa é o exemplo mais recente de como um país apaixonado por cerveja está ensinando ao mundo a beber do jeito certo.
“Você precisa ser realmente muito bom em produzir cerveja para conseguir fazer uma lager no estilo tcheco de verdade. E é exatamente isso que eles fazem aqui”, disse Meghan Michels, cervejeira da Holy Mountain Brewing Company, de Seattle, nos Estados Unidos.
“Eles fazem isso há séculos. Você precisa vir aqui e provar a original para ter uma ideia de como a lager tcheca deve ser.”
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Ryan Moncrieff, proprietário e mestre cervejeiro da Rafter R Brewing Company, em Maple Creek, no Canadá, concordou: “Nós temos cerveja tcheca no Canadá e não tem o mesmo gosto. Nunca está muito fresca”, disse.
“Do ponto de vista de um cervejeiro, a única forma de saber o gosto verdadeiro da cerveja tcheca é ir até a fonte. Assim, se um tcheco for à minha cervejaria e falar ‘isso tem gosto de casa’, eu vou saber que acertei em cheio.”
A verdade é que, assim como vários produtos para consumo, a cerveja tcheca não viaja bem. Embora os cervejeiros tentem fazer o melhor para replicar a autêntica cerveja tcheca, essa dura realidade desmascara a grande crença da globalização: de que no mundo desenvolvido a gente pode ter o que quiser, quando quiser.
Portanto, para experimentar a cerveja tcheca como ela realmente foi feita, você tem que ir para a República Tcheca.
E é isso que o programa do governo tcheco pretende fazer: inspirar uma curiosidade mais profunda nos amantes de cerveja sobre como é provar a cerveja tcheca na própria República Tcheca.