Depressão pós-parto e psicose: como sofrimento materno foi considerado bruxaria séculos atrás
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- Author, Cristiane Martins
- Role, De Londres para a BBC News Brasil
Prissila Collit conta que não dormia havia três noites quando foi tentada pelo diabo a matar seus filhos. Em troca, segundo ela, o diabo acabaria com sua pobreza. Collit disse ter recusado, mas acabou colocando o bebê perto do fogo. Collit não teve forças para socorrê-lo. E o bebê seria salvo, por pouco, pelo irmão.
Aquela não seria a última vez, segundo Collit, que ela encontraria o diabo lhe oferecendo melhores condições de vida na Inglaterra do século 17. Ela acabaria acusada de bruxaria.
O relato aparece em registros analisados por pesquisadores como C. L’Estrange Ewen, no livro Witch Hunting and Witch Trials (Caça às Bruxas e Julgamentos de Bruxas, em tradução livre), que reúne documentos de acusações de bruxaria julgadas na Inglaterra entre 1559 e 1736.
Casos como esse são hoje estudados por especialistas que investigam como, séculos atrás, o sofrimento materno foi interpretado como bruxaria.
A BBC News Brasil entrevistou historiadores, psiquiatras e outros pesquisadores no Brasil e no exterior para entender como questões de saúde mental ligadas à maternidade foram um dos fatores por trás da caça às bruxas na Europa e nas Américas – e quais são os reflexos disso nos dias de hoje.
“Há evidências bastante sólidas de que algumas acusadas de bruxaria sofriam de algum tipo de sofrimento mental”, disse a historiadora Marion Gibson, da Universidade de Exeter (Inglaterra). “Algumas delas, sem dúvida, falaram sobre matar seus próprios filhos. Disseram que o diabo as tentou ao suicídio. Disseram que o diabo as tentou matar seus filhos.”
Muitas das acusadas de bruxarias, sem saber como se defender, colaboraram com suas próprias condenações ao tentarem achar explicações para o sofrimento psicológico, afirma a historiadora Louise Jackson, da Universidade de Edimburgo (Escócia).
Jackson decidiu estudar acusações de bruxaria em casos como o de Collit porque eles “contêm referências ao infanticídio, um crime associado à psicose pós-parto, mas que, na Inglaterra do século 17, era visto como um trabalho do diabo”.
O suicídio, também citado em casos semelhantes, “era um grande pecado segundo a igreja e a lei canônica, e também considerado um trabalho do diabo”, acrescenta.
Nos Estados Unidos, os historiadores Natalie Hull, da Universidade Rutgers, e Peter Hoffer, da Universidade da Geórgia, também fazem um paralelo entre acusações de bruxaria e infanticídio.
Segundo eles, mulheres vítimas de opressão social por casos de gravidez fora do casamento eram condenadas por “bruxaria” com base não em provas, mas em questões morais, sociais e econômicas.
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Nesse contexto, o problema de saúde mental ligado à maternidade aparece como um dos diversos fatores por trás da caça às bruxas na Europa e nas Américas, que resultou na morte de 60 mil a 100 mil pessoas — estimativa que varia conforme os pesquisadores, com as mulheres como maioria das vítimas (75% a 85%).
Naquela época, havia uma influência crescente do puritanismo, crença ligada ao trabalho duro e ao autocontrole que considera o prazer algo errado ou desnecessário. E havia também um pânico generalizado na população, segundo pesquisadores.
A historiadora Lyndal Roper, da Universidade de Oxford (Inglaterra), acrescenta que parte das acusações de bruxaria foram inclusive feitas por outras mães com base em suas próprias angústias e desconhecimento sobre a maternidade.
Roper diz que dificuldades emocionais na gravidez e no pós-parto eram distorcidas em suspeitas, e que culpa, medo e delírios alimentaram fantasias envolvendo perigo. A figura da bruxa surgia, muitas vezes, onde havia apenas uma mulher exausta, vulnerável e incompreendida – o que, para Roper, era um reflexo de uma sociedade que não entendia o sofrimento psíquico feminino e materno.
Do século 15 ao 17, sem conhecimento médico ou psicológico, vários desses comportamentos eram interpretados como influência demoníaca ou mesmo “melancolia”. E muitas dessas associações entre acusações de bruxaria e problemas de saúde mental só seriam feitas séculos depois do ocorrido.
“Por isso, é impossível provar [essa associação], porque não há registros médicos dessas pessoas. Não se pode diagnosticar alguém do passado com uma condição específica — e, além disso, a definição dessas condições muda ao longo do tempo”, ressalva Gibson.
A exemplo de Richard Napier, médico e astrólogo inglês do século 17, que registrou padrões de sofrimento mental entre mulheres no pós-parto e puerpério, com sintomas descritos como “loucura”, “distração”, “inércia”, “insanidade”, “frenesi” e “delírio”.
Napier relatou que uma mulher identificada como “Senhora Kent” ficou doente por meses após o parto, além de ser tomada por um desespero religioso. Ela dizia que o diabo a possuía e confessa inúmeros crimes, segundo os registros.
Hoje, esses comportamentos provavelmente seriam investigados por profissionais de saúde como sinais de depressão pós-parto, psicose puerperal ou outros transtornos agravados pela gravidez ou pelo parto, segundo especialistas. (Leia mais abaixo mais detalhes sobre esses transtornos).
O que foi a caça às bruxas?
A magia era vista antigamente como um dom natural de curandeiros e líderes espirituais, diz Gibson.
Era uma força ambígua: a mesma pessoa podia abençoar ou amaldiçoar. Isso mudou na Europa medieval, e a demonologia (estudo dos demônios como crenças e mitos) transformou a visão sobre a bruxaria: deixou de ser apenas magia e passou a ser entendida como um pacto deliberado com o mal, em oposição direta à Igreja.
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O historiador George L. Burr, da Universidade Cornell (Estados Unidos), explica que o medo da bruxaria foi uma construção histórica.
A ideia de um pacto com o diabo, central na teologia da época, surgiu no fim do século 13. A partir do século 14, a Inquisição passou a tratar a bruxaria como heresia. E, no século 15, essa concepção foi incorporada aos tribunais seculares, com o uso de tortura (em alguns lugares) e confissões forçadas.
Nessa época, diz a historiadora Anne Llewellyn Barstow, da Universidade Estadual de Nova York (EUA), muitas mulheres viviam quase continuamente grávidas ou amamentando, em meio à dor física e à perda, pois quase metade dos filhos morria antes dos cinco anos.
Em meio a esse desgaste extremo, surgiam as confissões de pacto com o diabo, como a de Barbe Gilet, que, diante da tortura iminente, confessou não para escapar da dor, mas por desejar a morte, na tentativa de libertar os filhos da mãe “a serviço do diabo”, segundo relato encontrado no livro de Barstow, Witchcraze – A New History of The European Witch Hunts (Uma nova história da caça às bruxas na Europa, em tradução livre).
Para muitos especialistas, a caça às bruxas não se resume à questão religiosa, moral ou de saúde pública. Ela foi parte de uma engrenagem social, política e econômica que moldou a modernidade.
A partir do século 15, o continente europeu foi marcado por fome, doenças, instabilidade social, expulsão de pessoas do campo, proibições contra aborto, maior controle sobre a vida privada, explosão dos preços e transformações do mercado de trabalho.
Por isso, Barstow argumenta que a caça às bruxas não mirava apenas mulheres, mas também formas de vida coletiva e autônoma que floresciam na Idade Média e não se submetiam ao modelo de família patriarcal (comandada pelo homem) e ao poder de líderes religiosos católicos e protestantes.
O século 16 traria outra transformação no controle social: pela primeira vez, as mulheres passaram a ser legalmente responsabilizadas por seus atos. Pesquisadores como E. William Monter, autor do estudo Witchcraft in France and Switzerland: The Borderlands During the Reformation (Bruxaria na França e na Suíça: As Terras Fronteiriças Durante a Reforma, em tradução livre), apontam que essa responsabilização muitas vezes ocorria de forma desigual, reforçando padrões de gênero já enraizados.
Em casos de crimes sexuais, mulheres passaram a receber punições mais severas do que homens, diz Marie-Sylvie Dupont-Bouchat, da Universidade Católica de Louvain (Bélgica).
Em Luxemburgo, acusações de bruxaria frequentemente se misturavam a acusações de aborto e infanticídio. No contexto, o termo “bruxa” era associado a “prostituta”, e os processos por bruxaria alcançaram seu auge junto aos de aborto e infanticídio.
O crime de bruxaria foi a segunda causa mais comum de condenações de mulheres nos séculos 16 e 17, atrás apenas do infanticídio, afirma a historiadora Silvia Federici, da Universidade Hofstra (EUA). Mulheres pobres, idosas ou com filhos fora do casamento estavam entre as principais denunciadas.
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Para Federici, a caça às bruxas fez parte das transformações ligadas à consolidação do capitalismo, e o controle da reprodução foi visto como necessário para a formação de uma força de trabalho estável.
“A separação entre produção e reprodução, entre salário e não salário, a criação de novas hierarquias do trabalho e novas formas de patriarcado baseadas na desvalorização do trabalho feminino. Esses fenômenos devem ser necessariamente lidos em conjunto. Do contrário, a caça às bruxas pode parecer um episódio de loucura coletiva”, resume Federici.
Por isso, perdeu-se com essas mulheres também, por exemplo, muito dos saberes ligados à saúde passados ao longo de gerações.
“Parteiras e curandeiras, que detinham conhecimentos sobre contracepção e aborto, passaram a ser perseguidas. A obstetrícia foi incorporada ao campo médico masculino no século 17, deslocando o conhecimento tradicional das mulheres”, relata Federici. “A caça às bruxas destruiu um mundo inteiro de práticas femininas e redes de apoio.”
Especialistas apontam que, nos países mediterrâneos, as mulheres foram progressivamente excluídas do mercado de trabalho e das ruas, onde estariam “expostas” a perigos morais.
Na Inglaterra, a presença feminina no espaço público foi desestimulada por normas sociais que desencorajavam visitas a amigas, pais ou mesmo conversas em frente de casa. Relações entre mulheres passaram a ser vistas com desconfiança, e a amizade feminina, antes celebrada como parte da vida comunitária, foi cada vez mais condenada socialmente, apontam pesquisadores.
Federici também argumenta que essa crescente divisão entre o público e o privado dessa época tornou a maternidade uma experiência solitária, sem rede de apoio e sem reconhecimento do sofrimento ligado a esse período.
Apesar do declínio das perseguições na Europa ao final do século 17, Federici diz que a caça às bruxas não deve ser entendida como um fenômeno encerrado, mas como um mecanismo de controle social que ressurge em tempos de crise.
Casos contemporâneos demonstram que, em muitas regiões do mundo, as acusações de bruxaria ainda servem como justificativa para a punição dos que destoam da norma.
Em partes da África, Ásia e América Latina, essas acusações ainda ocorrem, geralmente em contextos informais e associados a disputas por terras, heranças ou durante crises econômicas.
“Ainda hoje, encontramos pessoas chamando umas às outras de bruxas. E, ocasionalmente, algumas são assassinadas porque seus vizinhos acreditam que há uma bruxa morando ao lado e querem se livrar dela”, afirma Gibson.
Na África do Sul, acusações de bruxaria frequentemente se cruzam com questões de saúde mental. Segundo o cientista político Adam Ashforth, da Universidade de Michigan (EUA), em algumas zonas rurais do país, muitos conflitos entre mulheres costumam resultar em acusações de bruxaria, enquanto conflitos entre homens tendem à violência física.
Na Índia, de 2010 a 2021, mais de 1.500 pessoas foram mortas após acusações de bruxaria, segundo dados do governo indiano.
Na Nigéria e em Gana, as acusações de bruxaria ainda têm consequências brutais: perseguições, exílios forçados e até mortes, quase sempre contra mulheres pobres, idosas ou socialmente marginalizadas. Muitos líderes religiosos são acusados de perpetuar medos e violências sob o pretexto da fé.
Em países da África Subsaariana, crenças espirituais associam a gravidez à vulnerabilidade e à bruxaria, levando muitas mulheres a esconderem a gestação e dificultando o acesso a cuidados médicos. Em locais como Nigéria, Maláui e Tanzânia, profissionais de saúde às vezes reforçam essas crenças, o que compromete o atendimento, segundo pesquisadores.
Mulheres idosas e grávidas são especialmente visadas: milhares foram assassinadas na Tanzânia nas últimas duas décadas. Estudos identificaram crenças espirituais como causas atribuídas a doenças mentais no período perinatal, incluindo possessão, pecado e magia.
Saúde mental na gravidez e no pós-parto
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E o que sabemos sobre como gravidez e pós-parto podem afetar a saúde mental materna?
Essa relação é documentada há séculos. Já no início do século 19, o psiquiatra francês Jean-Étienne Dominique Esquirol mencionava casos de melancolia e delírios associados ao puerpério em seus estudos sobre loucura. Em 1858, o psiquiatra francês Louis-Victor Marcé publicou um tratado sobre o tema, e se tornou o primeiro a realizar um estudo sistemático das doenças psiquiátricas associadas à gravidez e ao pós-parto.
Marcé propôs que comportamentos antes vistos como desvios morais fossem compreendidos como quadros clínicos.
A ideia contrariava interpretações que, durante séculos, associavam o sofrimento mental feminino à bruxaria ou à prática de crimes.
“Nos séculos 19 e 20, o parto e o puerpério eram entendidos como um período em que a mulher estaria mais vulnerável às influências do sexo, o que a tornaria física e moralmente instável, consequentemente, não poderia ser plenamente responsabilizada por suas ações”, diz à BBC News Brasil a antropóloga Marcelle Schimitt, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“Para os médicos, mulheres ‘perturbadas’ apresentavam sintomas como o desleixo em relação aos papéis sociais esperados, adultério e o desapego em relação aos filhos [o que hoje poderíamos relacionar à ‘falta do vínculo materno’]. E aquelas que tentassem romper com o destino de serem mães e cuidadoras do lar representavam um perigo não apenas para si mesmas, mas para toda a sociedade. O diagnóstico de ‘loucura ou insanidade puerperal’ seria então uma forma de explicar o que estaria ocorrendo a essas mulheres que não apenas rejeitavam esse destino, mas muitas vezes chegavam ao extremo de cometer o infanticídio.”
Frequentemente visto como um momento de plenitude, o nascimento de um filho pode, para muitas mulheres, representar o início de um período de sofrimento psíquico profundo, frequentemente vivido em silêncio e interpretado como falha pessoal, de acordo com especialistas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada cinco mulheres enfrentará transtornos mentais durante a gestação ou no primeiro ano após o parto.
O pós-parto é um período de transformações intensas no corpo, na mente e na vida social da mulher. É considerado o momento de maior vulnerabilidade para o surgimento de transtornos mentais ao longo da vida, segundo especialistas.
A ansiedade e depressão pós-parto afeta cerca de 1 em cada 10 mulheres em países de alta renda e uma em cada cinco em países de baixa e média renda, segundo a OMS. Sintomas incluem perda de interesse, tristeza persistente, fadiga e alterações no sono e no apetite.
Já a psicose pós-parto é o transtorno mental mais grave, afetando cerca de 0,1% das mulheres após o parto, de acordo com dados oficiais, com sintomas como alucinações, euforia e insônia. Alguns pesquisadores estimam que esse percentual chegue a cerca de 0,2%. Apesar da baixa taxa de psicose puerperal, dada a gravidade das consequências, essa morbidade é significativa do ponto de vista da saúde pública global pelo risco de infanticídio e suicídio.
No Brasil, as taxas de depressão pós-parto variam de 19% a 39%, a depender da região, revelando desigualdades culturais e socioeconômicas, aponta o estudo Diversidade transcultural e social da prevalência de depressão pós-parto e sintomas depressivos, de Uriel Halbreich, da Universidade de Buffalo (EUA).
Desigualdades sociais, aliás, têm um impacto significativo na saúde mental materna. Mulheres em situação de pobreza ou com baixa escolaridade enfrentam maior estresse financeiro e acesso precário a cuidados médicos. Mulheres negras, por sua vez, são mais afetadas pela desatenção médica e pelo racismo estrutural, apresentando taxas mais altas de mortalidade materna.
A Pesquisa Nascer no Brasil II (Fiocruz/Ministério da Saúde) revelou que, em 2022, a mortalidade materna entre mulheres pretas foi mais que o dobro da observada entre mulheres brancas. O Brasil assumiu a meta, junto às Nações Unidas, de reduzir essa taxa para 30 mortes por 100 mil nascidos vivos até 2030.
Além disso, expectativas sociais que impõem que as mães sejam sempre cuidadosas, amorosas e dedicadas, também são apontadas como fatores que dificultam o reconhecimento e a compreensão das reais necessidades psicológicas e emocionais.
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A psiquiatra e pesquisadora Carla Zambaldi, da Universidade Federal de Pernambuco, afirma à BBC News Brasil que a crença cultural arraigada de que uma mulher que tem um bebê é uma mulher feliz traz três consequências danosas às mulheres:
“Primeiro, profissionais de saúde focarem em seu exame apenas em dados físicos da mulher e do bebê. Segundo, familiares não valorizarem as queixas psíquicas das mulheres. E terceiro, a própria mulher a sentir-se culpada e envergonhada por apresentar sofrimento psíquico nesta época da vida.”
Não há uma explicação única para o surgimento desses sintomas. Alterações hormonais, como a queda abrupta nos níveis de estrogênio e progesterona após o parto, podem se combinar a fatores psicossociais como privação de sono, isolamento, reconfiguração da identidade feminina e desafios individuais.
Essa confluência de elementos torna o período pós-parto um momento especialmente crítico para o surgimento de distúrbios psiquiátricos, apontam os especialistas.
Um estudo recente publicado na revista Nature, de pesquisadores japoneses, identificou que sintomas como medo, sobrecarga, insônia e ausência de prazer conectam a depressão pós-parto às dificuldades de interação mãe–bebê, com destaque para o medo de cuidar do bebê, ansiedade e insegurança dos pais, além de sinais de automutilação e autoculpabilização no primeiro e segundo ano pós-parto.
Fatores de risco incluem histórico de transtornos psiquiátricos, ausência de rede de apoio, complicações obstétricas e vulnerabilidade social.
A resposta, segundo especialistas, precisa ser multissetorial: envolve a capacitação constante de profissionais de saúde, criação de protocolos interdisciplinares e campanhas públicas de conscientização para reduzir o estigma que ainda cerca os transtornos mentais maternos.
A psiquiatra Verônica Leite afirma à BBC News Brasil que o tratamento depende da gravidade de cada caso. Pode incluir desde psicoterapia até o uso de medicamentos como antidepressivos e antipsicóticos. Em quadros mais severos, há necessidade de hospitalização.
A psicose pós-parto, embora rara, é uma das formas mais graves, caracterizada por delírios, alucinações e desorganização do pensamento. Esses sintomas podem aumentar o risco de suicídio ou infanticídio.
‘Boa mãe’ e ‘mãe má’?
O documentário Bruxas (2024), dirigido pela britânica Elizabeth Sankey e disponível na plataforma Mubi, investiga expectativas impostas às mulheres, especialmente na maternidade, que se refletem, segundo Sankey, nos arquétipos de “bruxa-boa” e “bruxa-má”, transformando-as nos estereótipos de “boa mãe” e “mãe má”.
Ao crescer com as referências das figuras das bruxas do cinema, Sankey aprendeu cedo que ser “boa” era a única forma aceitável de existir. Foi somente ao se tornar mãe que compreendeu como essas expectativas idealizadas sobre as mães acabam silenciando e isolando as mulheres, logo quando mais precisam de acolhimento.
O filme segue a experiência pessoal de Sankey, que começou a ter pensamentos sombrios após o nascimento de seu filho. Ao buscar ajuda no sistema de saúde pública do Reino Unido, ela se deparou com barreiras institucionais e falta de sensibilidade.
Inicialmente, foi diagnosticada com baby blues — condição considerada menos grave que pode incluir crises de choro, irritabilidade, ansiedade e exaustão.
Quando o caso se agravou, ela passou dez dias sem dormir ou comer direito, até que paramédicos foram chamados à sua casa. “Bem-vinda à maternidade”, ironizou um deles.
Foi em grupos de apoio que Sankey encontrou a empatia que não achou no sistema de saúde.
Mães no período perinatal com ideação suicida frequentemente se sentem atacadas, presas entre o isolamento, a culpa e a pressão de corresponder ao ideal da “boa mãe”, segundo estudo publicado pelo BMC Psychiatry. Em casos graves, o sofrimento emocional se torna tão intenso que o suicídio surge na mente como uma saída.
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Nos últimos anos, algumas iniciativas tentam reverter esse problema.
Em 2023, os Estados Unidos aprovaram um medicamento específico para depressão pós-parto. No Reino Unido, hospitais possuem alas psiquiátricas onde mães podem ficar internadas com seus bebês para preservar o vínculo e permitir a continuidade do cuidado. No Brasil, a Rede de Atenção Psicossocial oferece atendimento para gestantes e puérperas em sofrimento mental.
O “puerpério”, segundo a definição médica, é o período que se inicia após o parto e se estende até que o corpo e o estado geral da mulher retornem às condições anteriores à gestação.
Schimitt, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ressalta que a expectativa de que a mulher retome rapidamente aquilo que era antes da gestação, como profissional, esposa e indivíduo, “ignora a irreversibilidade da maternidade”.
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Para a psicanalista Vera Iaconelli, autora do livro Manifesto antimaternalista: Psicanálise e Políticas da Reprodução, o período que vai da concepção ao pós-parto exige uma reconfiguração psíquica profunda: tornar-se mãe implica habitar um novo corpo, lidar com a ambivalência, reorganizar o desejo e o cuidado. Mas, diante da idealização, crises reais seguem invisibilizadas — desde colapsos emocionais e surtos psicóticos até gestações adolescentes não planejadas.
Schimitt diz que é necessário considerar as pressões externas em torno da ideia de “boa maternidade”, amplificadas pelas redes sociais. Um maior acesso a informações acaba alimentando cobranças e muitas mulheres são desafiadas a aprimorar exaustivamente o cuidado das crianças e, em menor grau, de si mesmas.
A antropóloga diz que esses ambientes digitais tendem a reproduzir modelos de autossuficiência e padrões idealizados e inalcançáveis de cuidado, geralmente baseados em babás, rede de apoio familiar ativa e poder aquisitivo elevado. Essa comparação intensifica o sentimento de inadequação entre mulheres e pode acentuar o sentimento de fracasso.
Iaconelli afirma à BBC News Brasil que, apesar da multiplicação de discursos sobre a maternidade, a estrutura social mantém a responsabilização das mulheres pelo cuidado.
“Várias foram as formas de coerção da mulher, de constrangê-la a esse papel de abrir mão da vida pública, da sexualidade, dos projetos pessoais, para se dedicar a reprodução dentro do modelo familiar burguês: papai, mamãe e filhos, e ser a cuidadora principal de tudo, do marido, dos filhos, dos mais velhos, dos irmãos. Elas estão sempre num lugar de cuidadora e não remunerada.”
A noção de instinto materno, cunhada no século 18, “sustenta até hoje a ideia de que o cuidado é natural para a mulher”, afirma Iaconelli. Ainda que muitas mulheres continuem lutando por reconhecimento social e uma redistribuição real do cuidado, “as mulheres seguem cuidando, mas esse trabalho não é reconhecido, nem compartilhado”.
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E Schimitt aponta que a mulher que se vê sozinha, sem apoio, tende a interpretar seu sofrimento como um fracasso pessoal. A solidão materna está associada a maiores índices de depressão pós-parto, apontam estudos recentes.
Uma das respostas comuns para casos assim são medicamentos receitados por médicos, que podem ajudar em alguns casos, a depender da avaliação dos profissionais de saúde, mas que não atuam sobre as condições estruturais que estão ligadas à raiz do próprio sofrimento materno, segundo especialistas.
Uma das consequências mais devastadoras da falta de tratamento e suporte adequados é o crime de infanticídio e o suicídio materno. A educadora Veralúcia Pinheiro, da Universidade Estadual de Goiás, aponta que esse crime é majoritariamente cometido por mulheres em situação de pobreza, isolamento e sob pressões familiares e sociais.
Para Pinheiro, o infanticídio rompe com o modelo idealizado de maternidade e evidencia os limites impostos às mulheres em contextos de vulnerabilidade.
Ou seja, a ideia de amor materno como instinto natural está bastante presente nesses processos judiciais, escreve Pinheiro, mas essa noção ofusca os fatores estruturais que envolvem o infanticídio, como a exploração do trabalho feminino, a medicalização da saúde mental e a estigmatização de comportamentos maternos que se desviam da norma.
Para parte dos pesquisadores das áreas de Criminologia e Sociologia, o enquadramento jurídico do infanticídio também funciona como mecanismo de controle de condutas maternas, vinculado a expectativas sociais sobre a maternidade.
Na Inglaterra, a Lei do Infanticídio considera a possibilidade de transtornos mentais pós-parto e prevê penas mais brandas, com possibilidade de tratamento psiquiátrico. Nos Estados Unidos, não há legislação específica, e as mães podem ser julgadas por homicídio, com aplicação de penas severas.
No Brasil, o artigo 123 do Código Penal tipifica o infanticídio como crime cometido pela mãe sob influência do estado puerperal, com pena de 2 a 6 anos.
Zambaldi explica que o neonaticídio (homicídio do bebê nas primeiras 24 horas de vida) “é um ato que é cometido especialmente por mães, após terem vivido uma gestação socialmente não aceita e que psiquicamente não foi reconhecida”.
“Esse é um estado chamado negação da gestação. A mulher não percebe ou reconhece que está grávida. Ao sentir dores do parto, tem seu bebê em casa ou em algum lugar público, sem assistência e, num estado mental dissociativo, mata o bebê seja por algum método ativo ou pelo abandono.”
O infanticídio envolve sintomas psicóticos (delírios, alucinações, desorganização) e tem muitas causas, mas as principais delas não são em decorrência de adoecimento mental, afirma Zambaldi.
“O risco de infanticídio ocorre devido à atividade delirante, que leva a mulher, geralmente, a ter crenças persecutórias ou místicas envolvendo o bebê, e o plano infanticida surge dentro dessa atividade delirante. Por isso, é tão importante o diagnóstico precoce e políticas públicas que garantam espaço de tratamento para essas mulheres.”
Leite ressalta que o infanticídio está mais frequentemente associado à psicose pós-parto, especialmente quando há delírios envolvendo o bebê.
Mulheres com transtorno bipolar não diagnosticado correm maior risco, sobretudo quando tratadas apenas com antidepressivos, o que pode desencadear quadros de mania ou psicose, apontam especialistas. Os principais fatores de risco incluem histórico de transtorno afetivo bipolar sem tratamento adequado, privação extrema de sono, isolamento social e antecedentes de abuso ou negligência.
Como procurar ajuda
Caso você seja ou conheça alguém que apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, ou caso você tenha perdido uma pessoa querida para o suicídio, confira alguns locais para pedir ajuda:
– Em casos de emergência, a recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
– Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;
– Na rede pública local, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
– Confira também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento em saúde mental gratuito em todo o Brasil.