Daniel Waldenström: ‘Se queremos igualdade, deveríamos nos concentrar em impulsionar quem está embaixo, e não em desestabilizar os que estão em cima’
Crédito, Cortesia Karl Gabor / IFN
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- Author, Ángel Bermúdez
- Role, BBC News Mundo
O Global Wealth Report (“Relatório da Riqueza Global”, em tradução literal), recém-publicado pelo banco suíço UBS, indica que a maioria dessas pessoas pertence ao que a empresa chama de Emilli’s (everyday millionaires ou “milionários do dia a dia”).
Suas fortunas ficam entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões (cerca de R$ 5,4 milhões a R$ 27,2 milhões).
O número de integrantes desse seleto grupo quadruplicou desde o ano 2000. Atualmente, são cerca de 52 milhões de pessoas em todo o mundo, e sua riqueza total soma cerca de US$ 107 trilhões (cerca de R$ 583 trilhões).
Outros US$ 119 trilhões (cerca de R$ 648 trilhões), ainda segundo o levantamento, pertence a pessoas com fortunas superiores a US$ 5 milhões (cerca de R$ 27,2 milhões).
Esse aumento do número de milionários surge em uma época em que as fortunas das pessoas mais ricas do mundo atingiram níveis nunca antes observados, o que aumenta a distância que separa os mais ricos dos mais pobres do planeta.
Essas diferenças palpáveis — e os dados sobre renda e riqueza que elas demonstram — estabeleceram a noção de que vivemos em um momento de desigualdade crescente.
Nesse contexto, o economista Daniel Waldenström, pesquisador do Instituto de Pesquisas sobre Economia Industrial de Estocolmo, na Suécia, acaba de publicar seu livro Richer and More Equal: A New History of Wealth in the West (“Ricos e mais iguais: uma nova história da riqueza no Ocidente”, em tradução livre).
Baseado no seu livro, Waldenström também publicou um artigo na revista Foreign Affairs. Ele afirma que o interesse demonstrado pelas chamativas fortunas dos fundadores das grandes empresas de tecnologia não permite observar a grande transformação ocorrida nas sociedades ocidentais.
Nelas, a riqueza dos lares em geral aumentou até níveis antes inimagináveis, enquanto os indicadores de bem-estar, como a estimativa de vida e as possibilidades de consumo, melhoraram de forma generalizada.
Waldenström defende que as sociedades ocidentais “não são, nem remotamente, tão desiguais quanto muitos acreditam”.
A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) conversou com Daniel Waldenström. Confira abaixo a entrevista.
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BBC News Mundo: Muitos especialistas falam do aumento da desigualdade como uma característica da época em que vivemos. Alguns chegam a afirmar que as desigualdades globais contemporâneas se aproximam dos níveis máximos observados no início do século 20.
Mas o sr. acaba de publicar um artigo sobre o que chama de “mito da desigualdade”. Por quê?
Waldenström: Se analisarmos a história, é claro que a maior parte dos indicadores de desigualdade econômica — seja a distribuição total da renda disponível das residências, o grau de mobilidade social, a proporção de residências pobres com baixa renda que têm acesso a boa educação, as diferenças de estimativa de vida e, na verdade, também as medidas de distribuição e desigualdade da riqueza — demonstram claramente que o século 21 é um período muito mais igualitário para o mundo ocidental do que as épocas históricas anteriores, especialmente o início e meados do século 20.
O mito é que alguns grupos detêm uma interpretação diferente destes resultados e uma narrativa diferente, que considero injusta com os Estados de bem-estar que construímos, financiados pela receita fiscal que quadruplicou ao longo do século 20.
Atualmente, obtemos 30% a 45% do PIB em receita fiscal anual, contra 5% ou 10%, 100 anos atrás.
Por isso, este mito defende que a desigualdade é muito maior do que antes, que vivemos em sociedades historicamente desiguais. Não acredito que isso seja verdade, se analisarmos a maioria das medidas padrão de desigualdade econômica.
BBC: Ninguém parece discutir que, agora, vivemos melhor do que 100 anos atrás, mas isso não significa que a diferença entre os mais ricos e os mais pobres não esteja aumentando. Ou significa?
Waldenström: Vamos ser claros. Existem muitos abismos: entre o indivíduo mais rico e o mais pobre, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos e assim por diante.
Mas temos uma economia em crescimento que funciona como uma escada rolante.
Isso significa que os que estão na escada rolante se beneficiarão do crescimento econômico, mas que também existem grupos que não irão avançar. São os que vivem em países extremamente pobres, governados por ditadores ou que enfrentam guerras, que não têm nada e cujas sociedades estão desestruturadas. Por isso, eles não estão nessa escada rolante.
Por isso, a diferença aumenta com o progresso econômico. Isso é verdade.
A boa notícia é que o grupo que não está na escada rolante está se reduzindo rapidamente.
Globalmente falando, os índices de pobreza estão diminuindo. Nos últimos 20 anos, os índices de pobreza empregados pelo Banco Mundial e por outros organismos foram reduzidos pela metade.
Por isso, existem diferenças que podem estar aumentando, mas acredito que não sejam totalmente representativas.
Por outro lado, o fato de termos crescimento e pessoas que conseguem enriquecer porque têm muito sucesso global nos fornecendo produtos e serviços também não é necessariamente um problema.
Produtos como os smartphones ajudaram bilhões de pessoas a ter acesso a informações todos os dias e fazer uso delas quase sem custo. E, como este, há muitos outros exemplos, de forma que os benefícios estão chegando às pessoas, mesmo havendo esses super ricos com tanto sucesso.
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BBC: Segundo os dados mencionados, desde 1980 o percentil mais rico dos Estados Unidos aumentou sua participação na riqueza de pouco mais de 20% para 35% a 40% atualmente.
Suponho que este aumento não poderia ter ocorrido sem reduzir a participação do restante da sociedade. Não seria este um indício de aumento da desigualdade?
Waldenström: É verdade. Este é um sinal de aumento da desigualdade nessa dimensão.
Falo disso no artigo e também no meu livro, pois o caso dos Estados Unidos é levemente diferente do restante do Ocidente.
Na Europa ocidental, no Canadá e na Austrália, a proporção da riqueza dos mais ricos praticamente não aumentou na última década.
Mas, nos Estados Unidos, esse aumento foi evidente. E, enquanto a proporção dos 1% mais ricos aumentou nos Estados Unidos, é claro que a proporção restante matematicamente diminuiu.
Este aspecto da desigualdade aumentou. Mas é importante interpretar estes dados.
Se analisarmos a lista das maiores empresas do mundo em 1980, a metade delas estava instalada nos Estados Unidos. A outra metade ficava em países como o Japão, a Alemanha ou a França.
Atualmente, esta lista inclui quase exclusivamente empresas americanas. Isso significa que seus empreendedores de sucesso se saíram melhor na produção de bens e serviços desejados pelas pessoas e foram os mais bem sucedidos em nível mundial.
Isso também explica por que sua riqueza aumentou com mais rapidez do que no restante do mundo ocidental. E, o que é mais importante, a riqueza da classe média também aumentou nos Estados Unidos durante o mesmo período. Por isso, as próprias residências de classe média se enriqueceram.
O fato de que os melhores empreendedores, líderes e donos de empresas superaram todos os demais explica este aumento da sua participação na riqueza dos Estados Unidos.
BBC: Uma pesquisa do Instituto de Políticas Econômicas destacou que, nos Estados Unidos, a relação entre o pagamento recebido pelos diretores-executivos em comparação com os trabalhadores era de 21 para 1 em 1965; 45 para 1 em 1989; e 203 para 1, em 2020. Como se explica isso?
Waldenström: É verdade. Acredito que isso reflita o aumento do tamanho do mercado e está claramente vinculado à globalização.
Esses diretores-executivos lideram as maiores empresas com ações na bolsa e que operam, hoje, em mercados muito maiores que nos anos 1990, 70 ou 60.
Isso significa que, para os donos de empresas, contratar a pessoa errada poderia custar milhões ou bilhões de dólares. Por isso, eles estão dispostos a pagar muito para conseguir a pessoa adequada, o que aumentou o salário oferecido para estes cargos.
E é preciso observar que os donos de empresas estão dispostos a usar seu próprio dinheiro para pagar esses diretores-executivos. Não se trata de dinheiro dos contribuintes.
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BBC: Para respaldar seu argumento de que a desigualdade não é tão grave quanto muitos acreditam, o sr. disse que deveríamos considerar outros indicadores além da renda bruta (antes dos impostos).
O sr. poderia explicar quais são esses indicadores?
Waldenström: A renda antes dos impostos é a medida mais rudimentar da produtividade.
Nós desconhecemos o nosso valor de mercado. Não existe um fundamento científico para defini-lo. Não sei quanto eu valho, mas a melhor estimativa é quanto outra pessoa me paga.
A receita antes dos impostos não deveria ser muito utilizada para responder grandes perguntas. Eu mesmo a usei para falar da desigualdade, mas acredito que tenha sido exagerado.
Considero ser melhor usar a renda após os impostos ou a renda após os impostos e subsídios [o dinheiro que fica com as pessoas depois de pagar os impostos e receber os auxílios governamentais] para determinar a distribuição do bem-estar entre os cidadãos.
Ou seja, como vivemos e qual é a nossa qualidade de vida. Isso é o que importa.
Poderíamos também incluir aqui a redistribuição de subsídios não monetários. Não só os subsídios para moradia, os subsídios por filho ou a ajuda econômica, mas também os subsídios oferecidos como assistência médica gratuita ou mais barata, assistência aos idosos e educação.
Estes serviços são financiados pelos impostos e oferecidos gratuitamente em muitos países. Esta é, atualmente, a transferência de renda mais importante da economia e é fundamental para as famílias mais pobres.
Por isso, ela comprime muito a distribuição de renda. Os índices [que marcam as diferenças econômicas na sociedade] diminuem muito, de forma que acredito que esta seja uma medida muito melhor.
A grande diferença na época atual, em relação a qualquer período anterior, com algumas ressalvas, é que temos a redistribuição dos recursos [pelo pagamento de impostos] nos países ricos, mas também, em maior medida, nos países de renda média.
Por isso, temos impostos mais altos, mais transferências de renda e subsídios. A receita antes dos impostos ignora totalmente este crescimento [dos serviços prestados] pelo governo. Ela desconsidera um aspecto fundamental do bem-estar dos indivíduos ou dos cidadãos nessas economias.
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BBC: O sr. disse que, se alguém tiver bilhões, isso não deveria ser um problema para o cidadão comum, desde que ele viva bem.
Mas, em alguns casos, esse bilionário investe em áreas que concorrem com o cidadão comum, como aparentemente ocorre em muitos países com a compra de moradias, o que aumenta os preços até níveis que muitos trabalhadores não podem pagar…
Waldenström: Existem muitas nuances e perspectivas sobre as consequências da propriedade da riqueza e suas diferenças.
Sim, se você for rico, pode fazer mais coisas e comprar mais, incluindo uma casa maior etc.
Acredito que é muito importante garantir que nossos sistemas fiscais e bancários sejam bons para que os trabalhadores, mesmo que não sejam ricos, possam conseguir educação e bons empregos, para poderem ir ao banco e pedir um empréstimo para comprar uma casa ou apartamento.
Mas eles também poderiam ser apenas inquilinos. Eles podem alugar a casa comprada por uma pessoa rica.
Ou seja, existem diferentes variantes sobre como isso irá se desenvolver. E aqui não fica claro o que está bem e o que está mal, porque se trata de um contínuo. Existe uma variedade de comportamentos.
Quando os ricos depositam seu dinheiro nos bancos ou fundos de investimento, eles ajudam a financiar aqueles que desejam obter empréstimos ou possibilitar os investimentos necessários para os empreendedores.
Se eles comprarem carros ou serviços, por exemplo, isso gerará renda, empregos etc., o que também é positivo. Talvez os preços dos restaurantes aumentem e, potencialmente, surgirão mais pessoas querendo abrir restaurantes deste tipo — o que, por sua vez, pode reduzir os preços.
Não acredito que haja nada correto ou incorreto neste ponto. É como um jogo espontâneo, mas é importante facilitar o acesso para que as pessoas que não são ricas possam comprar uma casa e, o mais importante, recebam boa educação.
Precisamos ter um mercado de trabalho e um sistema de crédito que funcionem.
BBC: No seu artigo, o sr. afirma que um mau diagnóstico traz soluções ruins.
Qual diagnóstico e qual solução correta o sr. indicaria para o que muitas pessoas percebem como uma desigualdade cada vez maior?
Waldenström: A razão pela qual se ouve falar do aumento da desigualdade é que existem grupos que gostam de falar disso, frequentemente por motivos ideológicos.
São pessoas de centro-esquerda. Para eles, a desigualdade é sempre alta demais. Mas foram eles que compreenderam a importância da desigualdade.
O problema com outros grupos da sociedade, especialmente de centro-direita, é que eles nunca falam na desigualdade e não sabem nada a respeito.
Consequentemente, só ouvimos uma narrativa que, na minha opinião, não é totalmente errada, mas, em grande parte, está desinformada. E acredito que isso seja injusto para os Estados de bem-estar que construímos, talvez mais na Europa que nos Estados Unidos.
Mas também ouvimos estas discussões na Europa. Acredito que isso é muito injusto para nossas sociedades, que cobram altos impostos.
Acredito que uma avaliação mais adequada deve observar realmente onde está o problema. E o problema não é que algumas pessoas tenham muita sorte ou sucesso no seu trabalho, dirigindo empresas com altos salários ou empreendendo. Este não é o problema.
Na verdade, esta renda e os lucros estão sujeitos a impostos e são fundamentais para financiar nossos sistemas de bem-estar.
E, em troca, vamos nos concentrar naqueles que não têm acesso suficiente a essas coisas.
Defendo firmemente um sistema educacional igualitário, que ofereça educação de qualidade a custo muito baixo ou gratuita.
Não gosto da ideia de ter escolas particulares, onde se possa pagar muito para que os filhos recebam educação de melhor qualidade. Isso vinculará os pais ricos à qualidade de educação dos seus filhos e este modelo social não me agrada.
Ele é contrário à mobilidade social e à igualdade de oportunidades, que considero fundamental.
Por isso, se quisermos igualdade, deveríamos nos concentrar em como impulsionar quem está embaixo, e não em desestabilizar os que estão em cima.