Conclave: como surgiram os cardeais, que decidirão o futuro do comando da Igreja Católica
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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
O jornalista e escritor norte-americano Glenn D. Kittler (1919-1986) conta que no primeiro século da era cristã, quando aqueles primeiros seguidores de Jesus começaram a viajar espalhando essa fé, eles precisaram costurar alianças quando chegaram a Roma e, perseguidos, se organizavam na clandestinidade da capital do império.
“Por causa dos perigos da cidade, agir abertamente teria sido perigoso, até imprudente. E, assim, a comunidade cristã passou a depender cada vez mais de um grupo de homens que conheciam bem Roma, que sabiam quais romanos os ajudariam e quais não, em quem podiam confiar e em quem não podiam”, escreve ele, aqui em tradução livre, no livro The Papal Princes – The History of the Sacred College of Cardinals.
“A habilidade deles de abrir e fechar portas influentes ou ameaçadoras deu origem a um apelido: homens-dobradiças. A palavra romana para dobradiça era ‘cardo'”, pontua o jornalista.
Embora seja esta uma versão bastante propagada no seio da Igreja Católica, é uma história com contornos de lenda. Ou, para usar um conceito caro ao historiador britânico Eric Hobsbawn (1917-2012), uma “tradição inventada” — quando elementos do repertório antigo de um passado social são elaborados em outro momento e sob outros interesses para a construção de uma linguagem simbólica.
Conforme ressalta à BBC News Brasil a historiadora e antropóloga Lidice Meyer, professora na Universidade Lusófona, em Portugal, essa ideia de dobradiças veio “no sentido de que eles eram os responsáveis por sustentar e manter, teologicamente, a Igreja em Roma”.
“Consta que o termo vem do latim ‘cardo’ e, numa tradução ao pé da letra, significa ‘dobradiça’, ‘pivô’, ‘eixo’. A gente pode entender que cardeal é uma palavra que remete à ideia de centro, centro de rotação, no sentido de que cardeais são uma posição central, de articulação, dentro da Igreja e que, de fato, auxiliam o pontífice na administração da Cúria Romana”, contextualiza à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, estudioso de textos religiosos antigos associado à Hagiography Society, dos Estados Unidos. “Esta é uma definição mais geral.”
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Maerki observa que o termo “já era usado pelos cristãos” desde a época do Império Romano — extinto no século 5º. “Havia uma conotação um pouco diferente da atual. Era o termo que indicava os padres diocesanos vinculados a uma igreja geralmente ilustre, importante”, afirma. Naquela época, não era um cargo com poder decisório. Naquela época, aliás, nem mesmo a Igreja Católica era uma instituição tão cheia de regras e tão poderosa como hoje. Naquela época, o que se praticava era um cristianismo menos organizado.
“As mais antigas referências a cardeais datam entre final do século 5 e início do século 6. O título de cardeal foi originalmente dado ao sacerdote sênior das igrejas paroquiais romanas”, complementa à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do cristianismo primitivo e co-organizador do livro Cristianismos no Império Romano.
Em seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, o filólogo Antônio Geraldo da Cunha (1924-1999) explica que a palavra cardeal vem de “principal, fundamental”.
Sobre a terminologia, afinal, não há um consenso. Notável pesquisador do catolicismo, o padre americano John O’Malley (1927-2022) via como “duvidosas” as explicações correntes.
“Quando a expressão aparece nos tratados sobre as virtudes, cardeal é ‘dobradiça’ ou ‘algo que está ligado'”, comenta à BBC News Brasil, diz o teólogo Raylson Araujo, pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“No caso, as virtudes cardeais, que são a fé, a esperança e a caridade, andam entrelaçadas. E seriam os cardeais homens ligados ao papa no governo da Igreja”, explica ele.
As igrejas de Roma
Segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a posição do cardeal acabou sendo institucionalizada em um processo que ocorreu do século 5º ao 7º. Mas ainda com um peso muito diferente do atual.
“O termo cardeal foi usado [originalmente] para designar os diáconos das sete regiões de Roma. Participavam diretamente da administração da Igreja em Roma”, pontua Meyer. “Em pouco tempo, o nome cardeal passou a ser utilizado para designar certos clérigos urbanos como um sinal de honra, distinguindo-os dos cleros das áreas rurais. No século 9º várias cidades possuíam cardeais como uma classe superior do clero.”
Araujo conta que, neste primeiro momento, o título era conferido aos sacerdotes que estavam à frente das 25 paróquias de Roma. “Com o tempo, por conta das grandes basílicas, os bispos dessas também passaram a ser assim designados”, diz.
A função foi sendo então institucionalizada à medida que a própria Cúria Romana se organizou. “Até o século 10, o cardeal não tinha essa pompa, essa grandiosidade, essa imensa importância que tem hoje”, compara Maerki.
Um dos sete brasileiros que definirão, nos próximos dias, o sucessor de Francisco, o cardeal arcebispo de Manaus, Leonardo Ulrich Steiner, relativiza o peso do cargo.
“Ser cardeal não muda muita coisa não [no dia a dia]. É um título, um conselheiro mais próximo do papa. A vida continua igual. Você continua sendo um bispo”, afirma ele, em conversa com a BBC News Brasil.
O colégio eleitoral
Ao mesmo tempo em que passava a se entender que o papa, além de bispo de Roma, tinha uma autoridade sobre os demais bispos, começou-se a tratar do problema: como esse monarca teocrático absolutista seria, enfim, escolhido?
Meyer conta que nesses primeiros séculos, “os cardeais participavam da escolha dos papas mas não exclusivamente”. Havia o caso de papas que eram designados pelos antecessores ou mesmo pelo imperador do Sacro Império Romano.
“A escolha do sucessor se dava mais pela indicação do predecessor, com respaldo da própria comunidade de fieis”, completa Chevitarese.
Em 769, o Concílio de Latrão decretou que “apenas os cardeais diáconos e padres consagrados poderiam participar da eleição de um papa”, como pontua a antropóloga e historiadora. Em 1059, papa Nicolau 2º (990-1061) determinou que o colégio de cardeais era o órgão exclusivo para a eleição de um sumo pontífice.
Foi quando também passou a ser entendido esse grupo como um grupo de conselheiros da Igreja, uma espécie de órgão consultivo para os papas.
Meyer observa que os poderosos nobres da época então usaram de uma nova artimanha para poder influenciar na escolha do papa: passaram a nomear cardeais como protetores de seus domínios e, assim, construírem redes de apoio nas eleições papais.
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A regra da maioria qualificada de dois terços para a eleição do líder máximo da Igreja foi criada no século 12, pelo papa Alexandre 3º (1100-1181), por meio de uma constituição apostólica.
Conforme explica o teólogo Araujo, a motivação por trás da criação do colégio era tentar blindar a eleição do papa da influência dos imperadores. “[A instituição] nasce dentro de um momento de reformas e purificação da Igreja”, pontua. “Com o passar dos anos, o colégio cardinalício vai ganhando outra função, se tornando auxílio do papa no governo da Igreja, trabalhando diretamente na Cúria Romana, trabalhando nos dicastérios, que são como ministérios de um governo, ou atuando em suas dioceses, contribuindo com o papa quando convocados.”
“No início dos tempos modernos, os cardeais frequentemente tinham papéis importantes em assuntos seculares. Em alguns casos, eles assumiram posições poderosas no governo. Hoje, além de eleger um novo papa quando a cadeira de Pedro fica vaga, os cardeais servem como conselheiros do papa e desempenham um papel significativo na administração da Igreja em todo o mundo”, contextualiza Meyer.
“Um cardeal tem como incumbência manter o diálogo entre a Sé de Roma e a área em que ele tem autoridade e poder”, acrescenta Chevitarese. “Compete também ao cardeal, no âmbito local, manter a unidade da igreja, zelar pelo clero, a educação e o catecismo católicos.”
A terminologia passou a ser restrita dentro da Igreja, ou seja, podendo ser usada apenas especificamente para aqueles constituídos pelo papa, apenas em 1567, por determinação do papa Pio 5º (1504-1572).
Durante toda a Idade Média e até o século 19, o cardinalato era dominado pela elite.
“Muitos dos cardeais provinham de famílias da nobreza europeia, a maioria da nobreza italiana”, observa Maerki. Ele lembra que os primeiros cardeais não europeus foram nomeados apenas no pontificado de Pio 9º (1792-1878), quando ocuparam assentos no grupo o guatemalteco Juan de La Cruz Ignacio Moreno y Maisanove (1817-1884) e o norte-americano John McCloskey (1810-1885).
O primeiro cardeal brasileiro foi Joaquim Arcoverde Cavalcanti (1850-1930), que alcançou o cargo em 1905, pelas mãos do papa Pio 10º (1835-1914). Ele era arcebispo do Rio de Janeiro.
Conclave
Construir essa imensa maioria para a eleição nem sempre é tarefa política fácil. O conclave mais longo já realizado na trajetória da Igreja deixou a Sé Vacante por 1006 dias, de 1268 a 1271.
Era um período em que a sede do catolicismo estava alocada na cidade de Viterbo, na região de Roma.
A escolha da sucessão do papa Clemente 4º (1190-1268) teve tanta falta de consenso que a população perdeu a paciência. A certa altura, tomou-se a decisão de trancar os religiosos no Palácio Papal de Viterbo, com provisões reduzidas, até que enfim eles chegassem a um acordo.
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O escolhido acabou sendo, enfim, um monge cisterciense chamado Tedaldo Viscondi (1210-1276), que assumiu o nome de Gregório 10. E ele ficou conhecido por criar regras para o conclave, em parte as que seguem até hoje, justamente para prevenir acontecimentos tão surreais quanto ao longo encontro que o elegeu.
Em sua constituição apostólica, aliás, consta pela primeira vez o uso dessa palavra para definir o processo eleitoral da Igreja.
Pelas regras atuais, um conclave deve começar entre 15 a 20 dias depois da morte ou renúncia de um sumo pontífice, os cardeais ficam isolados durante o processo e somente têm direito a voto aqueles com até 80 anos — vale para isso a data da morte do papa. Essa limitação etária é recente. Foi decidida pelo papa Paulo 6º (1897-1978), em 1970.
Até o pontificado de Francisco, o colégio era uma instituição predominantemente europeia. Esta é a primeira vez em que representantes do Velho Mundo não têm mais do que 50% das cadeiras do colégio.
Para se ter uma ideia da diversidade atual, segundo levantamento realizado pelo teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor na PUC-SP, em 1903, no primeiro conclave do século 20, havia entre os eleitores representantes de 14 países, quase todos europeus. No que acontece agora em maio, serão religiosos de 46 países diferentes, de quase todos os continentes do globo.
Dentre os eleitores, pouco menos de 40% são da Europa. A América aparece na sequência com 27% dos membros do cardinalato — sete dos votantes são brasileiros. Em seguida, a Ásia, com 17%, a África, com 13%, e a Oceania, com 3%.