Como o Brasil oscilou no Mapa da Fome no século 21
Crédito, Mauro PIMENTEL / AFP
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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
A notícia de que o Brasil saiu do famigerado Mapa da Fome pela segunda vez neste século foi — e precisa ser — vista como algo positivo.
Mas, além dos números, é preciso compreender os cenários que fazem com que o país oscile nesse levantamento divulgado todos os anos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU).
Até porque o país vive o histórico paradoxo de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas, ao mesmo tempo, ainda ter dificuldades para alimentar toda a população.
“Vou repetir o que eu já disse em 2014. Temos de celebrar que o Brasil saiu do Mapa da Fome. Mas não podemos deixar de dizer que é vergonhoso que um país como o Brasil tenha estado no Mapa da Fome”, diz à BBC News Brasil o economista Renato Maluf, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integrante da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
“Parece ser um tabu discutir a realidade brasileira de ser o país mais desigual do mundo […]”, diz à BBC News Brasil o sociólogo Giuliano Salvarani, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Isso não significa que somos um país pobre, pelo contrário, mas de empobrecidos e famélicos. É essa a realidade que precisa ser escancarada e alterada em qualquer projeto político de cunho nacional.”
Segundo os critérios da ONU, um país deixa de figurar no Mapa da Fome quando menos de 2,5% da população está em risco de subalimentação, ou seja, situação em que o indivíduo consome menos calorias do que o necessário para uma vida saudável — condição de insegurança alimentar crônica.
Na virada dos anos 2000, o cenário era grave. O Brasil ainda colhia o joio acumulado com a soma de décadas de ditadura militar, inflação descontrolada e, em seguida, as consequências sociais das intensas reformas que vieram na carona do Plano Real.
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Resultado: de 2000 a 2002, 10,4% da população brasileira viviam em condições de subnutrição — embora a ONU divulgue anualmente os dados, sempre são consideradas as médias trienais para evitar distorções.
De lá para cá, a cada nova edição do levantamento o Brasil apresentava uma melhora até que, no triênio 2013-2015, finalmente o número de pessoas em subalimentação no país foi menor do que 2,5%.
Para especialistas, os bons resultados vêm de uma soma de esforços, das políticas públicas ao papel da sociedade civil. Também coincidem com momentos de aumento real no salário mínimo, com reajustes acima da inflação. Além, é claro, da conjuntura econômica global.
O economista Maluf acredita que o combate à fome deve se organizar sob dois parâmetros. De um lado, políticas públicas interssetoriais “necessárias para enfrentar uma questão multidimensional”. De outro, “intensa participação social”.
Campanhas e governos
Os esforços históricos empreendidos pelo país para combater a fome se tornaram relevantes desde os anos 1990. Um marco desse movimento foi a campanha idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, com sua organização Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Em 2001, nos estertores do segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foram instituídos os programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação, modelos de transferência de renda precursores.
Nos governos posteriores, contudo, o petista Luiz Inácio Lula da Silva trouxe o combate a fome para o protagonismo, sobretudo no início de seu primeiro mandato. É dessa época a criação dos programas Fome Zero e Bolsa Família — este último unificou e ampliou os programas de transferência de renda que já existiam.
A curva da fome voltou a ser de crescimento durante a complexa combinação de governo Jair Bolsonaro e pandemia de covid-19. Entre 2019 e 2021, 3,4% dos brasileiros viviam em subalimentação, de 2020 a 2022, o número saltou para 4,2%.
O governo federal extinguiu o Bolsa Família, que atendia em 2021 14,7 milhões de pessoas. Em seu lugar, foi implementado o Auxílio Brasil, que acabou criticado principalmente pela sua gestão fragmentada e por não considerar a composição familiar no cálculo do benefício.
“No início dos anos 2000, sob um governo comprometido com a justiça social, o Brasil mostrou ao mundo que é possível vencer a fome. O retrocesso ocorrido na década seguinte não foi consequência direta da pandemia, embora ela tenha servido como pretexto e cobertura para o desmonte de uma política pública virtuosa”, comenta à BBC News Brasil o sociólogo Rogério Baptistini, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O mau momento pode ser atestado também por outros levantamentos. Segundo dados do Centro de Políticas Sociais FGV Social, o pior momento econômico para os brasileiros desde o início da série histórica, em 2012, foi em 2021, quando 37,4% dos brasileiros viviam com renda domiciliar per capita igual ou inferior a US$ 3,65 por dia. Eram 10 milhões a mais de pessoas nessa condição de pobreza do que no ano anterior.
Até então, o melhor ano dessa série havia sido 2014 — quando eram 31% os abaixo dessa linha.
Evidentemente que a pandemia também impactou. De acordo com inquérito desenvolvido na época pela Rede Penssan, em 2021, 55,2% dos domicílios brasileiros vivenciam um cenário de insegurança alimentar — em 2018 eram 36,7%.
O conceito de segurança alimentar foi criado depois da Primeira Guerra Mundial e, hoje, é entendido em três níveis: o leve é quando a família tem indisponibilidade de algum alimento básico; o moderado é quando essa indisponibilidade afeta o indivíduo do ponto de vista nutricional; o grave é quando a pessoa não consegue fazer nenhuma refeição por um dia ou mais. Em 2021, 9% dos brasileiros vivenciavam essa situação da maneira mais grave — mais de 19 milhões de pessoas, portanto.
Os estudos da Penssan sobre segurança alimentar, com base em análise de microdados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), espelham os índices da ONU. Para a rede brasileira, o melhor ano da série histórica era 2013, quando 77,1% dos lares brasileiros viviam uma situação de segurança alimentar. Em 2018, o percentual já havia caído para um número bem próximo do dia 2004: 63,3%.
Sem fome
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A melhoria coincide com a volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder — e as políticas sociais que são bandeira do presidente Lula. O Bolsa Família foi reinstituído. No triênio 2021-2023, segundo os dados da ONU, a proporção de subalimentados foi de 3,9%. E, agora, nos dados divulgados na última segunda, compreendendo o período de 2022 a 2024, novamente o país saiu do Mapa da Fome.
“Sair do chamado Mapa da Fome após três anos é talvez a maior conquista desse governo Lula 3º”, avalia Salvarani. “Em primeiro lugar porque constata que o Brasil regrediu socialmente no governo Bolsonaro ao voltar pro Mapa da Fome, demonstrando a elevação do nível da miséria nos últimos anos. Mas, em seguida, evidenciou a eficácia das políticas públicas de combate à fome no Brasil do governo do petista. Isso não é pouca coisa.”
Dados do Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), pesquisado pelo IBGE, atestam que entre 2022 e 2023 24 milhões de brasileiros saíram da condição de insegurança alimentar grave. Também em 2023, a pobreza extrema no Brasil foi reduzida a 4,4% — 10 milhões de brasileiros a menos do que em 2021.
Para o sociólogo Salvarani, a melhoria do cenário não é apenas resultado da recuperação pós-pandemia. “A questão não gira somente na melhoria da conjuntura global pós-covid. Inclusive porque o Brasil ainda não retomou aos patamares econômicos anteriores à pandemia”, frisa ele.
“Refere-se sobretudo à priorização alocativa do combate à fome em detrimento de outras escolhas políticas. Precisamos relembrar que Bolsonaro e o Congresso destruíram políticas como o Bolsa Família e quintuplicaram gastos com o Judiciário, por exemplo”, critica. “Decisões como essas transformam pobres em famintos e juízes em multimilionários.”
O professor enfatiza que fome não é “uma questão puramente econômica, mas política”. E, para ele, isso é especialmente mais notável em um país como o Brasil, “a décima economia do mundo, o quinto que mais cresce e o maior produtor de alimento do planeta”.
Para o economista Maluf, “foi uma surpresa bastante positiva que dois anos de reconstrução das políticas que tinham sido desmontadas” retiraram novamente o país do Mapa da Fome. “Isso mostra que o aprendizado do período de 2003 a 2015, tanto do ponto de vista da ação governamental como da mobilização da sociedade civil brasileira, foi fundamental”, enaltece.
Maluf também alerta que “um período curto” foi capaz de desmontar “uma longa construção”. “Isso significa que o risco de desmonte em uma sociedade desigual, com assimetria de poder e uma institucionalidade com várias fragilidades, o risco do retrocesso está muito presente na medida que as disputas continuam postas […] e há grupos que não têm nenhum compromisso com direitos humanos, com fome, etc.”, afirma. “É uma conquista mas é, ao mesmo tempo, um alerta.”
Em nota técnica enviada à imprensa, a Rede Penssan atribui a saída do Brasil do Mapa da Fome a inúmeros fatores. O grupo enumera a “retomada de políticas estruturantes e emergenciais de enfrentamento da fome, em especial a recomposição de programas como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, a valorização do salário mínimo, o crescimento do emprego formal e o apoio à agricultura familiar”.
O texto lembra, contudo, que ainda há 7 milhões de brasileiros “em situação de fome”.
Aumento histórico da renda
Para Baptistini “estar fora do Mapa da Fome pela segunda vez”, é sinalizar “um avanço no compromisso do país com os direitos humanos fundamentais”. “É um indicativo de que uma parcela significativa das pessoas excluídas pela manutenção de estruturas econômicas e sociais resistentes à mudança passou a ter acesso regular à alimentação”, afirma.
Diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social, o economista Marcelo Neri enfatiza que a retirada do país do Mapa da Fome coincide com um dado histórico: a pobreza e a extrema pobreza no Brasil diminuiu de forma recorde e chegou “ao menor nível histórico em 2024”.
O percentual de pessoas vivendo com menos de US$ 3,65 por dia no país regrediu dos 36,75% de 2021 para atuais 23,72%, aponta o FGV Social. Já aqueles que vivem em extrema pobreza, ou seja, com menos de US$ 2,15 por dia, hoje representam 6,7% dos brasileiros — eram 14% em 2021.
“É certo que a expansão de quase 50% nas transferências de renda governamentais aos pobres como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada nos últimos dois anos ajudam a entender o quadro”, complementa ele, à BBC News Brasil.
“Assim como o crescimento de ações alimentares para população no pais conhecido como ‘fazenda’ do mundo, como reajustes da merenda escolar e apoio com crédito a agricultura familiar.”
Neri lembra que, de acordo com a agência da ONU, “só em 2023 a fome caiu 85% no Brasil”. Para o economista, isso reflete também a melhor distribuição de renda, com “crescimento real [da expansão trabalhista] de 7% nos últimos 12 meses terminados no primeiro trimestre de 2025.”
“Sendo mais específico a renda do agricultor familiar da área rural nordestina, a mais pobre do país, cresceu 33% nos últimos dois anos”, exemplifica.
Este cenário, na análise dele, indica que o país continuará fora do Mapa da Fome nos levantamentos dos próximos dois anos.
A Rede Penssan enfatiza que é preciso compromisso político constante para que a situação não piore novamente. E alerta que, “apesar da melhoria nos indicadores gerais, a fome segue afetando de forma desproporcional os grupos mais vulnerabilizados da população, com recortes marcados por raça, gênero, território e classe social”.
Louros políticos
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“Sair do Mapa da Fome era o objetivo primeiro do presidente Lula ao iniciar o seu mandato em janeiro de 2023. A meta era fazer isso até o fim de 2026”, declarou na segunda o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias.
“Mostramos que, com o Plano Brasil Sem Fome, muito trabalho duro e políticas públicas robustas, foi possível alcançar esse objetivo em apenas dois anos. Não há soberania sem justiça alimentar. E não há justiça social sem democracia.”
A nota do ministério politizou o fato, dizendo ser “a segunda vez que o governo do presidente Lula retira o país dessa condição: a primeira foi em 2014”. Naquele ano, contudo, a presidente do país era Dilma Rousseff, também do PT.
Ideólogo do Fome Zero, o frade dominicano e escritor Frei Betto comemora a notícia. “Uma grande conquista do governo Lula e do povo brasileiro o Brasil sair, pela segunda vez em mandatos do PT, do Mapa da Fome”, destaca ele, à BBC News Brasil. “Isso já havia acontecido em 2014, mas infelizmente voltou ao Mapa da Fome por descaso do governo Bolsonaro.”
“Em nossa história, poucos governos assumiram a fome como um problema político. Lula, desde seu primeiro mandato, fez isso ao colocar a erradicação da insegurança alimentar no centro da agenda pública brasileira”, analisa Baptistini.
Frei Betto cobra que o exemplo brasileiro seja visto como inspiração para outros lugares afetados pela fome no mundo. “Diante da tragédia humanitária em Gaza, convoco todas as pessoas de bem a lutarem por um mundo no qual haja gastos com a erradicação da fome, para salvar vidas, e não com a proliferação de armas, para ceifar vidas”, diz o escritor.
Josué de Castro
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Indicado três vezes ao Prêmio Nobel, o médico e geógrafo brasileiro Josué de Castro (1908-1973) presidiu o conselho da FAO nos anos 1950. Autor de obras como Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, ele se tornou uma referência no combate à pobreza. “Denunciou a fome como um problema político, e não natural”, pontua Baptistini.
“Ela [a fome] não deriva da escassez, mas de estruturas desiguais que determinam como um país organiza sua economia e distribui a renda. Por isso, a existência de fome em uma sociedade é um marcador civilizatório”, pontua o sociólogo. “Ou, melhor dizendo, da ausência de civilização.”