Como ler transforma o cérebro
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- Author, Paula Adamo Idoeta
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
Enquanto você lê esta reportagem, ativa circuitos cerebrais que nós, seres humanos, levamos milhares de anos para desenvolver: os da leitura.
Decodificar letras, símbolos e significados transformou o nosso cérebro e nossa sociedade, e criou algo que não existia quando a nossa espécie surgiu.
“Nós pensamos na linguagem como algo natural, e deduzimos que a língua escrita é algo natural também. Mas não é, nem um pouco”, afirma à BBC News Brasil Maryanne Wolf, cientista cognitiva, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro Leitor (editora Contexto).
“E quanto mais você lê, mais esse sistema molda o cérebro, de modo cumulativo. Dá a ele todo um conhecimento, toda uma construção de processos que eu chamo de leitura profunda.”
No entanto, Wolf adverte que essa habilidade de leitura profunda está sob risco, por causa dos hábitos digitais modernos – como apenas “passar os olhos” em textos online.
A seguir, explicamos quatro formas como a leitura alterou a forma como pensamos – e como preservar essas conquistas.
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1 – A ‘invenção’ da leitura
Maryanne Wolf explica que um cérebro neurotípico já nasce com os circuitos que permitem que nossos olhos enxerguem e que as nossas cordas vocais produzam os sons da fala. Mas ele não nasce com um circuito que permita ler.
Esse processo provavelmente começou por volta do ano 3300 a.C., com o povo sumério, na Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. Os sumérios criaram o sistema cuneiforme, de cunhar símbolos em argila – embora haja debates entre alguns cientistas que os precursores da escrita possam ter sido os egípcios, com seus hieróglifos.
De qualquer modo, decifrar símbolos passou a exigir mais do cérebro do que apenas enxergar. Era preciso associar aquele símbolo a algum objeto, conceito ou emoção, e também a algum som.
“Os símbolos de escrita começaram a surgir mais ou menos 6 mil anos atrás. E exigiram uma mudança no cérebro, em que um símbolo visual passou a representar um conceito e ser expressado por linguagem”, diz a autora.
Em seu livro, Wolf explica que os cientistas acreditam que os nossos ancestrais “reciclaram” para a leitura circuitos antes usados para o reconhecimento de objetos.
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Em 1989, um grupo de pesquisadores acompanhou a atividade cerebral de pessoas olhando para uma série de caracteres – alguns deles com significado e outros aleatórios, que não significavam nada em particular.
E quando as pessoas olhavam para os caracteres que tinham significado real – ou seja, eram uma palavra de um idioma -, ativavam-se áreas muito mais amplas da visão, e também células específicas que a nossa espécie desenvolveu para processar o sentido de letras, palavras e sons.
E uma única palavra é capaz de despertar no cérebro todo um acervo de conceitos relacionados.
Wolf cita um experimento feito anos atrás pelo cientista cognitivo David Swinney. Os participantes do estudo, quando liam a palavra “bug”, em inglês, pensavam não só no significado básico do termo – inseto -, como também em “bugs de informática” e até mesmo no carro Fusca (que em inglês chama Beetle, nome de um inseto).
2 – O idioma que aprendemos impacta áreas diferentes do cérebro
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Outra observação de Wolf é de que diferentes idiomas podem impactar o cérebro de modo distinto.
Vejamos o caso do chinês, um dos idiomas mais antigos do mundo, escrito no chamado sistema logográfico. Cada ideia ou preposição, por exemplo, é representada por um símbolo, em vez de por um conjunto de letras do alfabeto.
Pesquisas indicam que o aprendizado de sistemas logográficos ativa áreas diferentes do cérebro do que o aprendizado de português ou inglês, por exemplo. Em particular as regiões envolvidas na memória visual e associação visual.
Uma das formas como os cientistas descobriram isso foi a partir de um estudo pioneiro sobre o bilinguismo na década de 1930. Nele, pesquisadores chineses estudaram o caso de um homem que sofrera um derrame cerebral grave. No entanto, o derrame impactou apenas a capacidade do paciente de ler chinês. O conhecimento do idioma inglês continuou intacto.
“É um exemplo de como os circuitos do cérebro refletem as demandas do idioma chinês, que exige mais memória visual e mais processamento visual daqueles belos e intrincados símbolos”, afirma Maryanne Wolf.
3 – Repertório desde a primeira infância
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Inclusive, esse aprendizado tão sofisticado começa antes da alfabetização formal: já quando os bebês ouvem história no colo dos adultos ou veem livros com figuras – mesmo que ainda não consigam decifrar as letras.
Para Wolf, isso já cria o terreno para a criança desenvolver habilidades emocionais importantes, como a empatia e a capacidade de se colocar no lugar de um personagem da história.
Em contrapartida, a negligência à leitura tem um efeito contrário – e bastante prejudicial – ao cérebro infantil.
Um famoso estudo americano de 1995 concluiu que crianças de lares pobres, sem acesso à leitura e a estímulos, terão escutado, até os 3 anos de idade, 30 milhões de palavras a menos do que uma criança estimulada e de classe média.
Hoje já existem outras pesquisas contestando algumas conclusões desse estudo – dizendo que não é uma mera questão de nível socioeconômico, e que tais conclusões podem estigmatizar crianças mais pobres.
Mas um ponto-chave continua a valer: com menos repertório, a tendência é que a criança já comece a vida acadêmica em desvantagem.
4 – Capacidade de leitura profunda se perdendo
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Uma grande preocupação da pesquisadora é com o que ela chama de “crise de leitura”.
O fato de que ler não é uma capacidade inata dos humanos, e sim algo adquirido e aperfeiçoado ao longo de milênios, significa, segundo Wolf, que essas habilidades podem ser atrofiadas ou lentamente perdidas.
Pensa em como você lê na tela do celular. Por acaso é uma passada de olhos, fazendo scroll na tela, e interrompendo a cada notificação do WhatsApp? Isso é cada vez mais comum.
O problema, segundo Wolf, é que se limitar a essa leitura superficial pode prejudicar nossa capacidade de imersão num texto, de entender argumentos complexos, de fazer uma análise crítica, de identificar notícias falsas ou, simplesmente, de mergulhar em um livro bem escrito.
“Quando você apenas passa o olho no texto, estudos mostram que você absorve apenas uma amostra do que está escrito”, diz ela. “E você não perde apenas dados ou fatos absolutos, mas também todo o propósito do que o escritor está tentando instigar – que é a beleza da linguagem.”
Wolf cita pesquisas acadêmicas indicando, por exemplo, que crianças que usam o celular desde os primeiros anos de vida podem ter um desempenho pior na escola depois.
Além disso, “num cérebro que é constantemente distraído e hiper-estimulado, os neurotransmissores começam a desejar estímulos em um intervalo cada vez mais curto. Daí é comum que essas crianças, quando estão off-line, se sintam muito entediadas.”
E tampouco sobra tempo para a leitura de lazer, “o que significa que (muitas crianças e adolescentes) não vão desenvolver essa capacidade de leitura profunda”.
“O antídoto para isso é o mais simples e bonito o possível: ter nossas crianças imersas na leitura, e ter uma vida de leitor. Ajudá-los a entender que (a leitura) pode ser um santuário onde elas podem pensar por conta própria”, conclui Wolf.
“Mas é um antídoto duro, no sentido de que exige que pais e professores ajudem. Eles têm de servir de modelo. Eles têm de ler para as crianças. E eles próprios precisam desenvolver o gosto pela leitura.”
Dislexia e dificuldades de leitura
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Outro ponto de atenção são as muitas crianças com dificuldades de leitura, como a dislexia – uma condição que, segundo diferentes estimativas, atinge de 4% a 10% da população mundial.
A dislexia é caracterizada por entraves de aprendizado de leitura e ortografia. Crianças com dislexia costumam ter dificuldade também em distinguir sons e fonemas dentro das palavras, ou em recordar informações que veem e escutam.
Maryanne Wolf tem um filho disléxico e dirige um centro de estudos sobre a dislexia na Universidade da Califórnia. E lamenta que tantas crianças com essa característica sejam taxadas de incapazes ou preguiçosas, em vez de diagnosticadas e ajudadas.
“O enredo da história da dislexia poderia ser contado com pequenas variações em todo o mundo”, escreve Wolf em O Cérebro Leitor.
“Uma criança inteligente, digamos um menino, chega à escola cheio de vida e entusiasmo; se esforça para aprender a ler como todo mundo, mas, diferentemente de todos, parece que não conseguirá aprender; seus pais lhe dizem para se esforçar mais um pouco; os professores lhe dizem que ‘não está trabalhando com todo seu potencial’; alguns colegas o chamam de ‘retardado’, ‘idiota’; recebe a mensagem avassaladora de que não terá muito valor; e assim, essa criança deixa a escola sem qualquer traço do entusiasmo inicial de quando entrou”, afirma ela.
Em seu livro, a pesquisadora cita algumas hipóteses para explicar a dislexia, como uma possível falha nas estruturas de linguagem ou visão do cérebro. Também é possível que pessoas disléxicas usem circuitos cerebrais diferentes dos de um leitor típico.
“Já conhecemos muito, mas muito ainda precisa ser explicado na história e nos mistérios da dislexia”, diz Wolf.
“Em muitos casos, o cérebro nunca atinge os estágios mais elevados de desenvolvimento da leitura, pois leva muito tempo para conectar as primeiras partes do processo. Muitas crianças com dislexia literalmente não têm tempo para processar a informação escrita.”
Ao mesmo tempo, muitas pessoas com dislexia são consideradas excepcionalmente criativas e inteligentes.
Inclusive existe o debate de que grandes gênios da humanidade, como Leonardo da Vinci, Thomas Edison e Albert Einstein possam ter sido disléxicos.
Da Vinci, por exemplo, tinha dificuldade com a leitura e às vezes escrevia da direita pra esquerda, e com erros ortográficos e sintáticos.
“A maioria das pessoas com dislexia não possui talentos espetaculares como os de Edison ou Leonardo, mas parece haver um grande número de pessoas portadoras de dislexia extraordinariamente talentosas”, escreve Wolf.
Além disso, hoje já existem muitas estratégias para ajudar crianças com essa e outras dificuldades de leitura.
“O principal é tentar ajudar as crianças a descobrirem a sensação de terem um santuário de leitura”, afirma Wolf à BBC News Brasil. “No começo, é claro, as histórias são muito simples e com o tempo vão ficando mais complexas. Mas sempre enfatizando habilidades como capacidade de dedução, empatia e pensar por conta própria.”