Capela Sistina: as mensagens deixadas por Michelangelo no palco do conclave
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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
A partir desta quarta (7/5) o mundo estará na expectativa pelo que acontece dentro de uma igreja de 41 metros de comprimento, 13,5 metros de largura e 21 metros de altura no coração do Vaticano.
O espaço tem esse nome em homenagem ao papa Sisto 4º (1414-1484), que determinou sua construção entre 1473 e 1481 — antes, o local se resumia às ruínas da chamada Capela Magna. Mas o que faz deste lugar uma pérola não só para os católicos mas para todos os apreciadores das artes são as impressionantes pinturas murais, afrescos que revestem suas paredes e o teto abobadado.
São trabalhos de diversos nomes da renascença italiana, como Sandro Botticelli (1445-1510), Rafael Sanzio (1483-1520) e Pietro Perugino (1446-1523). Mas nenhum deles, contudo, tem seu nome tão associado à Capela Sistina quanto o do florentino Michelangelo Buonarrotti (1475-1564).
Ele trabalhou no local em dois momentos. De 1508 a 1512, pintou as imagens que adornam os 460 metros quadrados do teto da capela, representando as histórias do Livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia. Chamado de volta, de 1536 a 1541 dedicou-se à obra Juízo Final, com quase 170 metros quadrados na parede atrás do altar.
“Só pode compreender perfeitamente a grandiosidade desta obra quem pôde vivenciar esta experiência de imersão na arte em uma visita à Capela Sistina”, diz à BBC News Brasil a antropóloga e historiadora Lidice Meyer, professora na Universidade Lusófona, em Portugal.
“Quem entra na capela sente-se como que submerso em uma história milenar que nos cerca por todos os lados e acima das nossas cabeças.”
O historiador da arte Christiaan Santini, pós-graduado em patrimônio cultural da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, contextualiza à BBC News Brasil, que “se Jesus está em toda a parte” na arte italiana desta época, Michelangelo ultrapassou fronteiras com as imagens da Capela Sistina.
“Ele representa como homem não só o filho, mas também o pai, o Criador. E o faz com um corpo maravilhoso, perfeito, atlético, usando portanto o cânone de beleza grego, outro pilar sobre o qual se funda a cultura ocidental”, comenta.
“De certo modo, Michelangelo, ao pintar Deus, aperfeiçoa a arte grega por meio da inspiração cristã”, analisa ele. “Uma síntese de tudo o que a arte havia sido até aquele momento. E uma fonte de inspiração para tudo o que viria depois, pelo menos até [o espanhol Pablo] Picasso [(1881-1973)].”
Curiosamente, hoje se sabe que o artista não queria fazer esse trabalho. Foi praticamente obrigado. Em 1509 ele escreveu uma carta-poema a um amigo, lamentando que pintar a capela era uma “tortura” que o obrigava a ficar “curvado aqui como um gato na Lombardia”.
“Meu pincel, acima de mim o tempo todo, pinga tinta, então meu rosto vira um belo chão para excrementos”, reclamou ele, ressaltando que “cada gesto que faço é cego e sem objetivo”, “minha coluna está toda emaranhada por se dobrar sobre si mesma” e “minha pintura está morta” porque “não estou no lugar certo — não sou pintor”.
Ele realmente não se via como qualificado para a pintura. Considerava-se um escultor.
Papa Júlio 2º (1443-1513) era um admirador do seu trabalho. Conforme conta à reportagem a artista plástica Keka Consiglio, estudiosa da obra do florentino, Michelangelo então trabalhava nas esculturas tumulares que deveriam enfeitar a futura sepultura do papa. Este, então, cancelou a encomenda e determinou que o artista se incumbisse da capela.
“Michelangelo ficou indignado. Montou em seu cavalo e voltou para sua Florença. Jurou nunca mais trabalhar para o papa”, conta Consiglio. Em uma época que desafiar a autoridade de um sumo pontífice era inadmissível, não teve jeito: os guardas do Vaticano foram até lá e o arrastaram de volta à empreitada.
De acordo com a especialista, Michelangelo conseguiu impor uma condição: liberdade total para definir as pinturas. “Michelangelo revolucionou a pintura ao aplicar princípios escultóricos à pintura de afresco. Suas figuras são tridimensionais, com corpos musculosos, poses complexas e dramatismo anatômico, uma fusão de arte, ciência e fé”, afirma ela.
São obras que permitem tantas interpretações que faltam consensos até hoje, cinco séculos depois. “A obra de Michelangelo na Capela Sistina é muito conhecida, estudada e controvertida também”, ressalta à BBC News Brasil a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, professora no Museu de Arte Sacra de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa A Palavra é Imagem: Arte Sacra Contemporânea, História e Religião, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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Narrativa
Daí então resultou toda a complexidade artística, filosófica e teológica da obra imagética criada por Michelangelo. No teto, a composição traz nove painéis centrais com episódios do Livro do Gênesis. A cena mais famosa é A Criação de Adão, umas das obras mais icônicas da arte mundial.
Já na obra posterior, a que fica ao fundo do altar, Michelangelo representou o Juízo Final, ou seja, a ideia cristã de que haverá um julgamento derradeiro dos vivos e mortos para o estabelecimento definitivo do Reino de Deus.
Consiglio analisa esse trabalho como um compilado de questões existenciais e espirituais, ressaltando que a “famosa imagem da Criação de Adão, com os dedos de Deus e do homem quase se tocando, tornou-se um ícone da condição humana e do elo entre o divino e o mortal”.
Ela frisa que Michelangelo conseguiu expressar a tensão “entre fé e razão”, o conflito “entre corpo e espírito” e, ao mesmo tempo exaltar a mente, a ciência, a busca por sentido. “E, mais incrível: sem palavras. Tudo está ali, em cores […] que nos fazem parar, olhar para cima e refletir”, pondera.
Interessante que, de acordo com pesquisadores, o plano original do Vaticano para ilustrar o teto não era esta revisita ao primeiro livro da Bíblia. Mas, sim, uma representação dos primeiros seguidores de Jesus segundo os textos dos evangelhos.
“O papa buscava uma pintura dos 12 apóstolos. Só que o próprio gênio Michelangelo buscou algo maior porque ele acreditava que pintar apenas os apóstolos naquele espaço muito grande seria pobre, não haveria o que colocar”, conta à BBC News Brasil o pesquisador de arte Jack Brandão, diretor do Centro de Estudos Logo-imagéticos Condes-Fotós e editor da revista acadêmica Lumen et Virtus.
Meyer lembra que muitos veem nesse gesto um ato de rebeldia do artista, principalmente porque, ao transportar a narrativa do Novo para o Velho Testamento, ele substituía a ideia dos primeiros seguidores de Jesus por histórias representativas dos ancestrais judaicos do cristianismo — uma “condenação ao tratamento dado pela Igreja Católica à fé judaica”, ilustra ela.
“Outros acadêmicos acreditam que isso se trata de uma forma particular de humor de Michelangelo”, pontua. “Independentemente de sua real intenção, qualquer um desses símbolos poderia facilmente tê-lo marcado como herege, causando sua morte.”
Críticas à Igreja
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Há críticas à Igreja presentes no trabalho, conforme interpretam analistas. “É verdade e há cada vez mais consenso entre estudiosos de que Michelangelo usou símbolos, metáforas e imagens anatômicas para inserir mensagens ocultas”, diz Consiglio.
“Isso não significa que tudo seja mensagem secreta, em tom conspiratório: trata-se de um artista profundo, com conhecimento em anatomia, filosofia, teologia e ciência.”
Entre essas críticas, ela ressalta que há certas poses e gestos, como o Cristo do Juízo Final, com braço erguido de forma brusca, que seriam uma indignação diante do “dogmatismo e à ideia de condenação”. Ela diz que em vez de um Cristo “compassivo”, Michelangelo pintou um Cristo “implacável”, mais parecido com um “juiz romano”.
Outro ponto lembrado pela pesquisadora foi a presença das sibilas pagãs, profetisas não-cristãs, que foram pintadas ao lado de profetas bíblicos. Isso foi um movimento ousado para a época. “Michelangelo sugere que a sabedoria e a verdade não pertencem exclusivamente à Igreja, mas podem vir de outras culturas e tradições”, comenta Consiglio.
Segundo ela, a Igreja nunca se preocupou em apagar ou alterar essas mensagens porque na época não compreendia a totalidade das mensagens cifradas e, posteriormente, com Michelangelo já consagrado, entendeu-se que era preciso respeitar e reconhecer a genialidade de seu trabalho, que passou a ser considerado “como um milagre de técnica e inspiração divina”.
“Nos séculos seguintes, a própria Igreja passou a valorizar a liberdade artística e a profundidade simbólica de Michelangelo. Hoje, o Vaticano se orgulha da obra e a apresenta como um dos maiores tesouros do cristianismo”, diz Consiglio.
“Esta conduta da Igreja fez com que um riquíssimo patrimônio artístico chegasse até nós”, ressalta a artista Bueno.
Para o historiador Santini, contudo, é preciso tomar cuidado com o peso de tais interpretações. “Muitas histórias e lendas nasceram em torno do mito de Michelangelo. É natural que seja assim: a Capela Sistina é a capela papal do Palácio Apostólico […]”, lembra ele.
Em seu entendimento, em geral essas histórias não são sustentadas por fontes históricas e “nenhuma pode ser confirmada com certeza”. “Tudo o que ele pintou foi certamente examinado e sugerido por teólogos a serviço do papa e da Cúria e é improvável que Michelangelo, embora crítico de certos aspectos da Igreja da época, tenha incluído imagens que contivessem críticas diretas å política ou à ortodoxia vigente”, diz Santini.
No que tange às possíveis críticas ao catolicismo, a cientista da religião De Tommaso lembra que houve contextos diferentes em cada uma das duas fases de Michelangelo na Capela Sistina. Quando foi contratado para pintar o Juízo Final, o acordo havia sido feito com o papa Clemente 7º (1478-1534). “Ele conhecia bem Michelangelo”, pontua. “E ficaria atento para evitar erros da manifestação da fé cristã como haviam ocorrido no teto da capela.”
“Isso porém não aconteceu porque, logo após assinar o contrato, Clemente morreu”, acrescenta ela. O substituto foi Paulo 3º (1468-1549). “Este não conhecia tão bem assim Michelangelo e deixou-o livre para realizar sua obra. Nessa época, Michelangelo já era famoso, rico e um rebelde furioso com o sistema”, diz a professora.
Anatomia humana
Os conhecimentos de Michelangelo acerca da anatomia humana eram impressionantes para a época e não se limitavam apenas aos formatos dos corpos.
Há diversos sinais na Capela Sistina de que o florentino sabia como eram os órgãos mais importantes. “Um exemplo bem conhecido é a imagem de Deus na Criação de Adão na qual o formato da vestimenta com a qual Deus aparece a Adão é notavelmente semelhante ao de um cérebro humano”, pontua Meyer.
“Uma forma craniana também é visível no formato incomum do pescoço e do tronco de Deus em A Separação da Luz das Trevas (um dos painéis centrais do Livro do Gênesis), que neurocirurgiões modernos afirmam ter uma forte semelhança com o tronco cerebral e até mesmo com a coluna vertebral. Como Michelangelo possuía um grande conhecimento de anatomia humana, estas imagens podem refletir tanto seu conhecimento como uma série de implicações metafóricas”, completa ela.
Detalhados estudos recentes cada vez mais corroboram essa perspectiva. Em 1990, o médico Frank Meshberger (1947-2020), estudioso da arte e também pintor, foi o primeiro a descrever cientificamente, em artigo publicado pelo Journal of the American Medical Association, a notável perícia com que Michelangelo inseriu formas do interior do corpo humano nas pinturas da capela.
“A mais famosa [teoria acerca desse tema] está justamente na cena mais conhecida: a Criação de Adão. A figura de Deus e dos anjos ao seu redor está contida em uma estrutura […] que parece ter a forma de um cérebro humano”, diz o historiador Santini, referindo-se a esse estudo de 35 anos atrás.
“Não acredito muito nessa teoria, mas gosto bastante dela. Afinal, quando Deus toca com o dedo Adão, dá a ele justamente isso: a razão, o intelecto, a consciência, a alma, o livre-arbítrio.”
Em 2010, pesquisadores da Johns Hopkins University School of Medicine avançaram nessas análises, apontando para desenhos do cérebro, da medula e dos nervos ópticos nas pinturas, elementos estes que Michelangelo teria camuflado na representação de Deus.
Brandão acredita que Michelangelo, assim como outros artistas da Renascença, deva “ter participado de necropsias” clandestinas, já que exames em cadáveres não eram aceitos pela Igreja na época.
Na visão da artista plástica Mari Bueno, especializada em arte sacra, tais interpretações “são algumas entre muitas feitas a partir da arte desse gênio, mas ele não deixou nada escrito ou declarado sobre essas supostas mensagens secretas”, conforme ela pontuou à BBC News Brasil.
Nudez
Se a Igreja nunca pareceu se incomodar com as mensagens cifradas deixadas pelo gênio do Renascimento, um detalhe não passou despercebido: a nudez dos personagens. “Muitos personagens do Juízo Final haviam sido pintados por Michelangelo completamente nus. E isso foi considerado inadequado desde o início mas, após a morte do artista, a situação se tornou insustentável”, situa Santini.
“O clima havia mudado e o Concílio de Trento [realizado entre 1545 e 1563] havia estabelecido regras muito rígidas sobre a arte sacra.”
Em 1565 um discípulo de Michelangelo, o artista Daniele da Volterra (1509-1566) foi encarregado pelo Vaticano de fazer alguns ajustes, “corrigindo” algumas “figuras excessivamente expostas”, conta Santini, ressaltando que aquela era uma “solução diplomática” encontrada pela cúpula da Igreja para manter a obra do florentino.
Volterra ficaria conhecido pelo apelido de “braghettone” — algo como “aquele das calças”, “o das ceroulas”. “Colocou uma espécie de roupa de baixo na figura de Jesus no Juízo Final, que, originalmente, estava completamente nu”, exemplifica o especialista. “Cobriu várias outras figuras e chegou até a mudar a posição de algumas delas, cujas poses poderiam sugerir atitudes lascivas ou escandalosas… Não me faça entrar em detalhes.”
Desafetos
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Conhecido pelo forte temperamento, Michelangelo teria deixado nos afrescos uma série de “homenagens” a seus desafetos. “Ele parece ter sido uma pessoa muito vingativa”, salienta Brandão.
“Michelangelo tinha personalidade intensa, orgulhosa e, muitas vezes, rancorosa”, acrescenta Consiglio. “E, como todo gênio da Renascença, ele se vingava com arte.”
De acordo com sua pesquisa, é possível reconhecer algumas dessas personalidades ali retratadas. O mais notório foi Biagio da Cesena (1463-1544), padre que atuava como mestre de cerimônias do Vaticano no período. Quando Michelangelo ainda nem havia terminado o trabalho, o sacerdote já criticava sua obra. Chegou a afirmar que “aquelas figuras nuas não deveriam estar em uma igreja, mas sim em tavernas ou banhos públicos”.
Michelangelo teria então respondido pintando Cesena como Minos, o juiz dos mortos no inferno, com orelhas de burro e uma cobra enrolada em seu corpo, mordendo suas genitálias.
O historiador Santini reconhece que se trata de uma das histórias mais conhecidas a respeito da Capela Sistina. “A lenda diz que quando Biagio da Cesena levou suas queixas ao papa, este respondeu com humor: ‘posso fazer pouco a respeito, já que não tenho jurisdição sobre o inferno'”, comenta. “Improvável, mas bastante engraçado.”
Outro desafeto do artista que teria sido eternizado ali foi o poeta Pietro Aretino (1492-1556). Conta-se que ele tentou chantagear Michelangelo pedindo cópias das imagens da Sistina. Diante da recusa deste, o poeta passou a espalhar textos ofensivos contra o artista. “Alguns estudiosos acreditam que uma das figuras decadentes do inferno, um corpo contorcido e caído, olhando para trás, seria uma caricatura de Aretino”, diz Consiglio.
Há ainda de forma geral críticas a cardeais do Vaticano. “Muitos estudiosos identificam expressões zombeteiras, corpos grotescos ou deformados como críticas a padres hipócritas. As figuras em queda livre representariam, então, a corrupção do clero e o medo do castigo”, contextualiza a pesquisadora e artista.
O próprio papa Paulo 3º também teria sido vítima dos pincéis de Michelangelo. “Embora tenha apoiado a obra, ele tentava controlar Michelangelo, impondo limites e sugerindo mudanças, enfurecendo o artista”, pontua a estudiosa. Alguns interpretam que a decisão de pintar Cristo no Juízo Final como uma figura musculosa e sem barbas, rompendo com a iconografia oficial, seria uma afronta ao papa, uma espécie de provocação.
Autorretrato
Por fim, Michelangelo teria incluído também um autorretrato na Capela Sistina. No Juízo Final há a imagem de São Bartolomeu segurando sua própria pele esfolada, em um retrato do que teria sido seu martírio. “Muitos acreditam que o rosto na pele seja um autorretrato de Michelangelo, expressando sua angústia e vulnerabilidade diante do julgamento de Deus”, diz Consiglio. Na interpretação dela , seria como se ele dissesse que estava se sentindo assim diante “da instituição religiosa”.
“Nenhuma fonte confirma isso, mas é verdade que artistas renascentistas, por não poderem assinar obras murais, já que não eram os proprietários delas, muitas vezes usavam retratos seus como assinatura”, comenta o historiador Santini.