Após recuo de Lula, veto a pensão a famílias de crianças com microcefalia por zika é derrubado no Congresso
Crédito, Felix Lima/BBC
- Author, Camilla Veras Mota
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
A votação materializa um recuo do governo em relação ao tema. Após uma reação bastante negativa ao veto ao PL 6064/23 em janeiro, na última semana o presidente deu aval para que o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso, negociasse sua derrubada.
A maioria (75,5%) no Nordeste, especialmente em áreas marcadas pela vulnerabilidade social.
Nos últimos dez anos, muitas dessas famílias sobreviveram com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), um salário mínimo pago às pessoas com deficiência em situação de pobreza.
Foi por meio dessas redes que algumas delas viajaram a Brasília nos últimos meses para se reunir com parlamentares para pressionar pela derrubada do veto (leia mais abaixo).
Nesta quinta (17/6), aquelas que acompanhavam a votação a partir do Congresso mandavam atualizações em tempo real por grupos de WhatsApp às demais.
“Senti uma alegria enorme, vontade de gritar”, diz Ruty Freires, de Maceió (AL).
“Abracei minha filha, Tamara, contei para ela. Ela sorriu, não entendendo nada, mas ela sorriu, e eu agradeci a Deus.”
“Algumas mães chegaram a achar que não ia dar certo, mas eu não perdi as esperanças”, ela disse à BBC News Brasil.
Assim como a grande maioria das cuidadoras das crianças com microcefalia por zika, ela sabe exatamente para onde vai o dinheiro.
Quer começar fazendo um plano de saúde para a filha e pensa em tirar a habilitação e comprar um carro.
Tamara não se movimenta e se alimenta por uma sonda no estômago. Por conta disso, segundo Freires, o transporte de ônibus é difícil e os carros por aplicativo com frequência rejeitam a corrida quando veem a menina.
Crédito, Felix Lima/BBC
Anne Caroline Rosa, que vive com o salário mínimo do BPC, também quer contratar um plano de saúde para o filho Moisés, pensa em colocar um ar condicionado no quarto dele e comprar-lhe novas órteses, que são dispositivos ortopédicos para alinhar melhor o corpo.
“Pelo SUS passa anos e anos e quando a pessoa pega a botinha não dá na criança”, diz ela, que mora no mesmo residencial do Minha Casa Minha Vida que Freires, na periferia de Maceió.
“Vou poder dar uma qualidade de vida muito melhor pro Moisés. Nós esperamos dez anos, mas conseguimos.”
No interior de Alagoas, em Arapiraca, Adriana Kelly da Paz Lira faz planos parecidos. Quer pagar tratamento em uma clínica privada para o filho Bernardo, colocá-lo na natação para estimular seu desenvolvimento e pensa em comprar um carro pra levá-lo nas terapias, médicos e exames.
“Depois de tanta luta, é emocionante. Chorei, vibrei, pois precisamos muito desse valor”, ela comenta.
Entenda o que aconteceu
Depois de tramitar por dez anos no Congresso, o projeto de lei que previa reparo financeiro às famílias de crianças com síndrome congênita pelo zika havia sido aprovado em dezembro de 2024, mas vetado no mês seguinte.
Na época, o governo usou uma razão técnica para justificar a decisão, dizendo que o projeto não obedecia à Lei de Diretrizes Orçamentárias, à medida em que criava “despesa obrigatória de caráter continuado sem a devida estimativa de impacto orçamentário e financeiro, identificação da fonte de custeio, indicação de medida de compensação e sem a fixação de cláusula de vigência para o benefício tributário”.
Criticado, o governo federal substituiu o PL por uma medida provisória que previa uma indenização única de R$ 60 mil, que chegou a ser regulamentada por meio de portaria no fim de maio, mas não foi votada pelo Congresso e perdeu a validade.
As famílias consideraram o valor injusto e insuficiente e, reunidas em torno da Unizika, que agrega associações de familiares de crianças com síndrome congênita pelo zika, vinham se encontrando nos últimos meses com dezenas de parlamentares de todo o espectro ideológico, da deputada Taliria Petrone (PSOL-RJ) às senadoras Mara Gabrilli (PSD-SP) e Damares Alves (Republicanos-DF), em busca de apoio para derrubar o veto presidencial ou para costurar um novo projeto de lei que se aproximasse do anterior.
Elas também tentaram, sem sucesso, reuniões com o presidente, o vice-presidente e a primeira-dama. Na época, a reportagem questionou os gabinetes sobre os pedidos de audiência e só teve retorno sobre o assunto da vice-presidência, que afirmou ter recebido representantes da Unizika em 2023 e disse estar analisando o pedido feito neste ano para verificar quando seria possível atendê-lo.
Rede de cuidados intensa
“É um tratamento que custa caro”, diz a infectologista Mardjane Lemos, que diagnosticou os primeiros casos de síndrome congênita pelo zika em Alagoas em 2015.
O dano causado pelo vírus no cérebro dos bebês é irreversível, mas, segundo ela, é possível garantir qualidade de vida para as crianças com um acompanhamento de especialistas, por exemplo, em fisioterapia, fonoaudiologia, odontologia, terapia ocupacional.
“São muitos profissionais envolvidos, tem uma rede de cuidados muito intensa. Não tem plano de saúde que oferte tudo que uma criança dessa necessite — no SUS então, é o básico”, ela completa.
E esses cuidados, acrescenta a médica, são fundamentais para determinar o grau de comprometimento da criança, que também depende do próprio dano provocado pelo vírus.
Lemos diz que é difícil estimar uma expectativa de vida, mas que muitas têm morrido antes do que se esperava por problemas que seriam contornáveis, “porque não tiveram uma pneumonia diagnosticada a tempo, porque não conseguiriam acesso a uma cirurgia de gastrostomia”.
Na visão da especialista, o Estado errou em não dar “acolhimento rápido e oportuno a essas crianças, para garantir que elas tivessem estimulação adequada e conseguissem ter uma vida mais próxima do normal possível”, e por não proporcionar condições pra que as mães pudessem voltar a estudar ou ao mercado de trabalho.
Falhou também, ela prossegue, em prevenir o surto de zika que deu início a toda essa história dez anos atrás, com a falta de saneamento básico e de políticas robustas para controlar o vetor, que é o mosquito.
Os casos de zika e de nascimentos de bebês com síndrome congênita pelo zika diminuíram drasticamente, mas, ela alerta, isso não significa que um novo surto não possa voltar a acontecer, já que não se sabe exatamente o que provocou o declínio.
“O grande boom de casos parece ter cessado espontaneamente. Então isso leva a teoria de que há alguma imunidade natural. Quanto tempo ela dura? Ela é real? Nós não sabemos”, pontua Lemos.
Essas são algumas entre muitas perguntas que, dez anos depois, seguem sem resposta.
Outra questão importante ainda em aberto é por que o Nordeste foi mais afetado.
O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, de março de 2024, fala que 1.828 casos de síndrome congênita pelo zika foram confirmados no país entre 2015 e 2023, sendo 1.380 (75,5%) deles no Nordeste. (Outros 2.877 casos permanecem em investigação, sendo 1.898 (65,9%) deles de nascimentos entre 2019 e 2023.)
Há pesquisas que sugerem que a maior incidência na região pode estar relacionada com subnutrição materna, já que a maior parte das mães de bebês com microcefalia vivia em situação de vulnerabilidade social; outras estudam uma possível relação com a contaminação da água de reservatórios durante a seca severa de 2015 por bactérias que produzem uma neurotoxina que pode ter potencializado a ação do vírus zika no cérebro dos bebês.
Especialistas como a biomédica Patrícia Garcez e o neurocientista Stevens Rehen, que estiveram à frente dessas duas pesquisas, disseram à BBC News Brasil acreditar que a resposta possa ser uma combinação desses e de outros fatores.
“A gente sabe um pouquinho mais agora que tem fatores ambientais que podem estar contribuindo para essa maior prevalência, mas a gente não entende completamente como eles estão contribuindo. E são poucos os estudos”, afirma Garcez, que atualmente dá aulas na King’s College London, na Inglaterra.
Mardjane Lemos concorda: “Sinto que algumas lacunas de resposta estão muito atreladas ao fato de que tivemos uma população afetada que é negligenciada por políticas públicas, que não estão nos nichos de pesquisa, que estão mais concentrados no Sul e Sudeste”.