Apagão na Espanha e Portugal foi culpa da energia solar? Discussão toma os dois países
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- Author, Vitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil no Recife
Ainda há muitas perguntas sem respostas sobre as causas do apagão que levou caos à Península Ibérica na última segunda-feira (28/04). Mas, desde que Portugal e Espanha ficaram no escuro, os dois países têm discutido se uma falha em um sistema de energia solar espanhol estaria por trás do blecaute.
A Espanha, onde aconteceu falha, já descartou a possibilidade de ataque cibernético ou de um evento meteorológico extremo.
Segundo a empresa Red Eléctrica, que opera a rede elétrica espanhola, a investigação preliminar aponta para um problema de perda de geração fotovoltaica (energia solar) no sudoeste do país, que derrubou todo o sistema, segundo o jornal espanhol El País.
Em entrevistas à imprensa portuguesa, o administrador da operadora de energia de Portugal, a REN, João Faria Conceição, disse que o excesso de fontes de energia renovável no sistema energético espanhol é uma “ideia plausível” por trás do evento, mas “não única”.
Já o premiê da Espanha, Pedro Sánchez, rejeitou em declarações à imprensa a ideia de que o problema tenha sido causado pelas renováveis, argumentando que “a energia nuclear” também “falhou.
O apagão acontece justamente num momento em há um debate intenso sobre o futuro da energia nuclear na Espanha, com o governo planejando fechar as cinco usinas ainda ativas no país.
A eletricidade na Espanha vem de várias fontes, com atuação de usinas nucleares, centrais que queimam gás, hidrelétricas, parques eólicos e solares.
Nos últimos anos, o país vem se destacando no mundo na produção de energia renovável. Antes do incidente, a rede elétrica espanhola era abastecida principalmente por energia solar (59%) e eólica (11%).
As primeiras indicações levam a crer que a situação na Espanha tem alguma similaridade com o apagão de 15 de agosto de 2023 no Brasil, explica Pedro Jatobá, ex-superintendente da Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) e ex-diretor do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel).
Vinte e cinco Estados foram atingidos pelo apagão de seis horas, justamente em razão de problemas com a intermitência da energia solar e eólica no Ceará, um dos líderes na produção desse tipo de energia.
“Tudo indica que essa ocorrência, como na ocorrência brasileira, se iniciou com a saída de algumas fontes solares e isso provocou um efeito cascata”, explica Jatobá, hoje pesquisador do FGV-Ceri (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura).
Mas como a presença de energia solar no sistema poderia contribuir para esses casos de blecaute?
O equilíbrio de um sistema elétrico se dá através do balanço entre oferta e demanda. Ou seja, é preciso gerar a mesma quantidade de energia que está sendo consumida.
A grande questão, explica Jatobá, é que em sistemas muito extensos, feito o brasileiro ou europeu, as fontes hidroelétricas e a fonte térmica têm uma característica que ajuda a estabilidade.
“Mecanicamente, o fato de serem máquinas muito grandes, elas têm uma certa energia associada à rotação chamada inércia. É essa energia usada naqueles microssegundos para não deixar o sistema entrar em colapso”, diz Jatobá.
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Ou seja, esses geradores rotativos gigantes das usinas hidrelétricas, nucleares e térmicas possuem abundância de inércia acumulada em seu movimento, ajudando a estabilizar a rede elétrica quando acontecem eventos e falhas muito rápidos.
É por isso que às vezes vemos a luz de nossa casa perder força e depois subir novamente. Isso mostra o sistema respondendo a alguma falha.
Na segunda, a Espanha operava justamente com pouca “inércia”, já que não utilizava esses tipos de fontes de energia.
O pesquisador explica que essas novas fontes de energia intermitentes, como eólica ou solar, são acopladas ao sistema elétrico com equipamentos eletrônicos chamados inversores, que transformam a corrente contínua gerada pelos painéis de captação em corrente alternada (usada na rede e nos nossos eletrodomésticos).
“O que está acontecendo no mundo todo, e isso já se percebeu há muito tempo, é que, quando você tem uma quantidade muito grande de fontes de geração com essa característica (ou seja interligadas através desses inversores), se você tem um balanço, uma ocorrência, eles são sensíveis e te desligam rapidamente”, conta Jatobá.
O pesquisador da FGV explica que esses inversores também demoram mais no momento de religar o sistema, fazendo com que outras fontes sejam ativadas.
Segundo reportagem jornal espanhol El País, a Redeia, matriz da Red Eléctrica, alertou há dois meses sobre o risco de desconexões “severas” devido ao aumento das fontes renováveis.
No relatório de 2024, a empresa apontou o fechamento de usinas convencionais de carvão, nuclear ou gás como outro fator de incerteza para o sistema elétrico.
Após o apagão, a Espanha restabeleceu o fornecimento utilizando principalmente as usinas de ciclo combinado e as hidrelétricas.
Aqui vale explicar que a energia com fonte hidrelétrica é considerada renovável (ela depende do fluxo de água) e limpa, mas há questionamentos sobre seus impactos ambientais superiores a usinas eólicas e fotovoltaicas, especialmente na construção de sua estrutura.
Isso não quer dizer, porém, que devemos abrir mão dessas novas fontes renováveis, como éolica e solar.
Pedro Jatobá explica que há máquinas chamadas geradores síncronos, “uma grande massa girante”, que pode ser usada num momento desses para estabilizar o sistema.
No Brasil, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) estuda a possibilidade de aumentar a quantidade dessas máquinas no Nordeste, região mais alimentada pelas energias solar e eólicas.
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Outra opção seria mudar a “lógica dos inversores”, para que eles possam se comportar como tendo inércia e ajudarem na estabilidade. “Para dar uma resposta na hora de uma pertubação e contribuam para a estabilidade ao invés de corroer a estabilidade do sistema”, diz o pesquisador.
A grande pergunta, segundo ele, é por que ninguém previu isso, especialmente numa das regiões mais ricas do planeta?
“Talvez porque nós não tenhamos mais um planejamento, principalmente a nível de sistema, que anteveja determinadas situações. Tudo isso é muito novo”, diz.
Jatobá dá o exemplo a Finlândia, que mede seu índice de estabilidade em tempo real.
“Acho que para chegar na nossa utopia de ter um sistema totalmente descarbonizado, nós vamos precisar avança em metodologia e tecnologia principalmente. Mas não acho que sejam metas insuperáveis. Acho que a humanidade tem plena capacidade de vencer esse desafio”, conclui.
Efeito em Portugual
Se o problema foi na Espanha, por que Portugal ficou às escuras?
O pesquisador Pedro Jatobá explica que, quando foi identificado o problema na rede espanhola, outro país vizinho, a França, se desligou do sistema interligado.
Algo que Portugal não foi capaz de fazer porque estava totalmente conectado à Espanha.
“Portugal estava abraçado totalmente com a Espanha quando o sistema espanhol caiu. E o país não tem um sistema robusto o suficiente para se separar e se manter estável rapidamente”, diz o brasileiro.
Em tese, Portugal não é dependente da energia da Espanha e é capaz de produzir o que consome, segundo autoridades portuguesas.
Mas no momento na falha na Espanha, Portugal estava comprando energia do país vizinho por razões econômicas, segundo o operador português. Ou seja, os espanhóis produziam energia barata, interessante para ser adicionada à rede portuguesa. Esse intercâmbio acontece diariamente entre países da Europa continental.
Desde o apagão, alguns políticos portugueses têm condenado o encerramento de centrais termoelétricas que produziam energia à base de carvão. Mas autoridades no assunto têm insistido que voltar com fontes mais poluidoras não é uma solução.
Jatobá explica que o Brasil, ao contrário de Portugal, praticamente não corre risco de sofrer problemas caso ocorra apagões em países vizinhos, apesar de ter ligações com Uruguai, Argentina ou Paraguai.
O único Estado ainda desconectado no sistema nacional é Roraima, que ainda compra energia da Venezuela e pode sofrer com oscilações no vizinho. O governo tem previsão de que, em 2026, os roraimenses estejam conectados ao restante do país.