A médica brasileira que é segunda esposa de muçulmano em Dubai: ‘Não sou submissa’
Crédito, Arquivo pessoal/Anna Paula Vieira
A neurologista Anna Vieira chegou a Dubai em 2024. Aos 45 anos, já havia morado em diversos países e se preparava para iniciar um estudo na sua atual área: a psicologia profunda, voltada ao tratamento de pacientes com quadros considerados difíceis, como depressão refratária, ideação suicida persistente e transtornos de personalidade complexos.
Pouco mais de um ano após a mudança, Anna conta que conquistou mais do que os objetivos profissionais que a trouxeram ao Oriente Médio.
Fez amigas de diferentes nacionalidades e, em poucos meses, encontrou o amor. Casou-se com um egípcio, muçulmano como ela, em um tipo de casamento pouco convencional para a maioria dos brasileiros: aceitou ser sua segunda esposa.
Há dois meses, ela começou a responder, em sua conta no Instagram, perguntas sobre essa diferença cultural para o matrimônio “tradicional” brasileiro, e tem atraído olhares curiosos, muitas vezes respeitosos, mas também muitas críticas.
Anna relata que muitas pessoas demonstram surpresa — ou até espanto — ao descobrir que ela é médica, com uma carreira consolidada, duas graduações, nove pós-graduações e dois doutorados em andamento.
Na avaliação dela, existe uma ideia pré-concebida de quem seria uma segunda esposa e quando veem que ela é uma mulher independente e estudada, “essa imagem cai por terra.”
“Acham que eu sou submissa, que não me valorizo, que sou uma ‘escrava’…”
“Se eu não fosse médica, se me enquadrasse no padrão de beleza, se fosse uma ‘Barbie’, iam me chamar de puta. Iam dizer que entrei nessa por interesse, por futilidade”, diz.
“Na verdade, já fui chamada de puta. Já teve homem comentando: ‘o que o dinheiro não faz?’, ou ‘também, com uma Ferrari na garagem, eu seria até a décima’. Olham tudo pela ótica do dinheiro.”
Anna também aponta que, se não atacam sua escolha por esse viés, muitos partem para críticas sobre sua aparência. “Dizem: ‘cuidado, você tá muito gorda, ele vai arrumar a terceira’. Ou comentam que estou desleixada, que minhas roupas são feias. É como se houvesse uma vigilância constante sobre minha imagem.”
Crédito, Arquivo pessoal/Anna Paula Vieira
Na cultura muçulmana, a poligamia é permitida em alguns contextos — e, embora não fizesse parte dos planos de Anna, o casamento acabou se tornando parte da sua nova vida. Ela já havia sido casada e enfrentado uma grande perda anos antes, quando o marido e um de seus filhos morreram em um acidente.
“Entendo que, para o olhar ocidental, a poligamia pareça algo absurdo. Mas, curiosamente, ela é mais comum do que se imagina — só que não é assumida. Os homens traem, e quase todo mundo conhece alguém que fez isso: um pai, um irmão, um amigo. No Brasil, é comum o homem ter mais de uma família, e às vezes só se descobre isso quando ele morre — na hora de dividir a herança, aparecem filhos de outro relacionamento. A diferença é que aqui isso é feito com clareza, dentro de regras, sem engano.”
Quando Anna chegou ao novo país, refazer a vida amorosa parecia fora de questão. Mas, incentivada por uma amiga que viveu uma história romântica feliz, Anna acabou criando um perfil em um aplicativo voltado a casamentos islâmicos — e cedeu à possibilidade de tentar de novo.
A médica sentiu uma conexão com seu atual marido, M*, de 41 anos, logo nos primeiros encontros. Ele havia dito que era divorciado, o que Anna descobriu mais tarde que não era totalmente verdade.
“Ele e a primeira esposa não são mais um par romântico, dormem em locais separados, mas se mantêm legalmente casados por respeito às tradições impostas pelas famílias e pelos filhos deles”, conta ela, que admite ter tido resistência à ideia em um primeiro momento.
Ela prefere não expor o marido em fotos nas redes sociais – e pediu que seus detalhes, mostrados à reportagem, não fossem compartilhados, para preservar a privacidade dele e de sua primeira família.
A conversão ao islamismo aos 17 anos
Natural de São Paulo, Anna cresceu com pais cristãos – e conta que sua filha, que hoje tem 20 anos, escolheu por seguir a umbanda.
“A religião nunca foi algo imposto dentro da minha família.”
Mas foi seu avô libanês que plantou nela a semente do Islã, uma escolha que permeia todas as áreas de sua vida desde que escolheu pela conversão, aos 17 anos.
“Minha mãe sofreu um acidente de carro grave, algo que me abalou muito”, lembra. “Na época, eu frequentava a igreja evangélica, e comecei a buscar respostas espirituais para o que estava vivendo. Foi então que o conhecimento do meu avô sobre o Islã conseguiu me oferecer as respostas que eu procurava. Ele, que sempre admirei muito, conseguiu me fisgar.”
Anna vivia em Salvador quando o avô sugeriu que ela participasse de um acampamento islâmico em São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo. A experiência foi transformadora.
“Ali foi meu primeiro contato com a comunidade — adolescentes árabes que nasceram muçulmanos, outros brasileiros convertidos… e a minha vida virou”, conta Anna. “Comecei a estudar, fui fazer aulas de árabe. Já conhecia algumas palavrinhas do dia a dia, porque meu avô sempre usava em casa. E então eu me converti.”
Quando completou 20 anos, seu avô sugeriu que ela se casasse.
“Disse que era hora, senão ele ia me ‘perder para o mundo'”, lembra, bem-humorada.
“Ele chegou até mim com três opções de pretendentes. E eu tinha mesmo essa vontade. Tudo que aconteceu com a minha mãe me marcou muito. Eu fiquei meio… eu queria ir embora. Não queria mais ficar no Brasil.”
Crédito, Arquivo pessoal/Anna Paula Vieira
Primeiro casamento islâmico e luto
No início dos anos 2000, Anna se casou com um homem sírio e se mudou para Damasco, a capital do país.
Naquela época, não tínhamos WhatsApp, não tínhamos aquela internet rápida. Tinha um horário específico para usar. A gente conversava muito por e-mail, porque ele estava em Damasco e eu em Salvador. Imagina a distância, a diferença de fuso. Mas a gente ultrapassou tudo isso e ele me pediu em casamento. Como ele estudava Sharia Islâmica, uma escola para formação de professores religiosos, ele não podia sair da Síria, e eu tinha que ir até ele. E assim eu fiz.”
Ela conta que foi difícil convencer os pais. “Mas eles sabiam do meu objetivo e respeitaram minha vontade. Assim, eu fui para a Síria me casar. Foi como um déjà vu para mim, me encontrei naquele momento.”
“Digo que foi a fase que fui mais feliz em toda a minha vida. Foi uma mudança gigantesca de cultura. Estamos falando do início dos anos 2000. Tudo era muito diferente. A Síria ainda era Síria, com seus desafios políticos e religiosos, mas era o país que existia antes [da guerra civil que começou em 2011].”
“Fiquei ali, casei, tive a primeira gravidez, perdi um bebê. Depois, engravidei da minha filha e começamos nossa vida juntos.”
Anna passou cinco anos na Síria. Mas com o agravamento dos conflitos no país, escolheu se mudar para a Europa.
“A gente foi para Portugal, e de lá meu esposo recebeu uma proposta para trabalhar no Principado de Andorra. Eu fui morar lá, tive um segundo filho, e recomeçamos.”
Em 2011, porém, Anna perdeu o marido e o filho em um acidente.
Ela lidou com um luto profundo, ao perder o marido e o filho, enquanto enfrentava outro grande desafio: a saúde delicada da filha, que tem a rara Síndrome de Ehlers-Danlos, uma condição genética que afeta os tecidos conjuntivos e pode causar articulações extremamente flexíveis, dor crônica e fragilidade da pele.
“Foi um processo de ressignificação na minha vida. Durante muitos anos, eu pausei. Mesmo assim, tentei tocar minha vida, mas foi impossível, porque ali foi o lugar que a gente recomeçou a nossa vida, onde tenho as minhas outras melhores lembranças e as piores também”, conta.
Naquela época, Anna decidiu voltar ao Brasil.
“Até descobrirmos o diagnóstico, sofremos muito, porque ela tinha muitos sintomas, que pioravam com o estresse emocional, calor ou frio extremos. Essas crises causavam inflamações severas no corpo, colocando sua vida em risco.” Foram anos de busca por respostas: “Rodamos o mundo — Chile, Itália, Estados Unidos — atrás de tratamentos para as dores e crises da minha filha.”
Foi durante uma pesquisa clínica nos EUA que Anna encontrou um médico que mudou sua trajetória. Ele a incentivou a voltar à clínica, reconhecendo tudo que ela já tinha feito pela filha. “Ele disse: ‘Sua filha está viva por sua causa. Você pode ajudar outras crianças’. Isso me fez acordar, me fez voltar com força.”
Essa vivência intensa e a busca pela cura da filha abriram para Anna um caminho além da medicina convencional. “Comecei a estudar terapias integrativas e holísticas. Me aprofundei em xamanismo, nas medicinas da floresta, e no uso da cannabis medicinal, que trouxe muita melhora para a saúde da minha filha.”
Ela fez pós-graduação em cannabis medicinal e química das plantas medicinais, descobrindo como diferentes plantas podem auxiliar no tratamento.
Esse percurso levou Anna a se dedicar à psicologia profunda, área que hoje exerce em Dubai, combinando sua experiência pessoal, conhecimento científico e práticas alternativas para tratar quadros complexos, especialmente aqueles marcados por traumas e sofrimento emocional.
Crédito, Arquivo pessoal/Anna Paula Vieira
A vida como ‘segunda esposa’
Anna encarou com resistência a ideia de dividir o marido com outra mulher, mas, considerando a falta de relação romântica de M* com a primeira esposa, e o forte sentimento que nutria por ele, aceitou.
A decisão de aceitar esse arranjo veio também com limites claros. No contrato de casamento que firmaram, há uma cláusula explícita: Anna não aceita que ele tenha uma terceira esposa.
Os contratos matrimoniais islâmicos, válidos em muitos países de maioria muçulmana, permitem esse tipo de personalização. Neles, a mulher pode estipular, por exemplo, que o marido não se case novamente, que ela tenha o direito de trabalhar, de continuar os estudos ou até de pedir o divórcio em determinadas condições.
Há alguns meses, M* trouxe a primeira família, do Egito, para morar nos Emirados Árabes Unidos.
“Antes eu vivia uma vida com ele como se ele fosse solteiro. Ele já estava morando sozinho em Dubai, há anos, e só via a esposa e os filhos nas férias”, explica.
“Depois, a esposa ficou doente, e ele precisou trazê-los para cá”
Anna admite que não acha possível uma convivência com a outra esposa. Elas já conversaram por mensagem, para ter certeza de que ela autorizava M* a ter uma segunda esposa, e que estavam de acordo com a divisão, mas nunca se encontraram pessoalmente.
“Somos mulheres maduras, mas é impossível não ter comparação. Só se eu fosse de gelo. Se eu estivesse ali só pelo dinheiro, pela posição, eu não estaria nem aí. Mas não é o caso.”
Anna e a outra família vivem em cidades diferentes — e dividem os dias da semana de forma alternada.
“O acordo era um dia de cada, mas minha rotina é extremamente corrida, e eu gosto de ter um tempo para mim, então deixo que ele fique, durante a semana, dois dias com a primeira família.”
Hoje, a médica sente que chegaram a uma dinâmica mais estável, embora admita que ainda é desafiador alinhar as diferentes expectativas moldadas por cada cultura com o estilo de vida que cada um deles está acostumado.
“Às vezes ele me vê cansada, estressada, e fala que o maior sonho da vida dele era que eu largasse tudo e fosse só esposa. Mas eu não consigo, e amo meu trabalho. Eu não sou a esposa submissa que fica aqui com a comidinha pronta. Também nunca cozinhei para ele, e em vez de lavar as roupas que ele deixa aqui, mando na lavanderia.”
Anna conta que passou a dividir com o marido tarefas que antes faria sozinha, como providenciar o conserto de eletrodomésticos ou carregar malas. Já da parte dele, houve uma abertura para o estilo de vida dela: passou a frequentar o círculo de amigos de Anna — onde homens e mulheres conversam livremente, sem distinção entre casados e solteiros — e até comparece a eventos onde há consumo de bebidas alcoólicas, algo que não faz parte de seus costumes. “Ele foi ao show da Marisa Monte comigo, foi uma experiência muito legal”, lembra.