A explosão de cirurgias plásticas na China: ‘Fiz 100 operações e nunca vou parar’
- Author, Natalia Zuo
- Role, BBC Eye
Após receber tratamento hormonal para uma doença, o peso de Abby aumentou de 42 kg para 62 kg em dois meses.
A mudança não passou despercebida por sua professora de teatro.
“Minha professora disse: ‘Você era nossa estrela, mas agora está muito gorda. Ou desiste ou emagrece rápido'”, lembra Abby, que estava se preparando para as provas de teatro na época.
A mãe de Abby interveio, levando-a para uma lipoaspiração para remover a gordura da barriga e das pernas.
Abby se lembra das palavras da mãe enquanto esperava na clínica, de camisola hospitalar, nervosa com a operação iminente.
“Seja corajosa e entre. Você ficará bonita quando sair.”
A cirurgia foi traumática. Abby recebeu apenas anestesia parcial e permaneceu consciente durante todo o procedimento.
“Eu conseguia ver quanta gordura era extraída do meu corpo e quanto sangue eu estava perdendo”, diz ela.
Crédito, Arquivo pessoal/Abby Wu
Agora com 35 anos, Abby já passou por mais de 100 procedimentos, que custaram meio milhão de dólares (R$ 2,9 bilhões).
Ela é coproprietária de uma clínica de estética no centro de Pequim e se tornou um dos rostos mais conhecidos da explosão de cirurgias plásticas na China.
Mas os procedimentos têm um custo físico.
Sentada em frente ao espelho em seu luxuoso apartamento duplex em Pequim, ela aplica suavemente corretivo nos hematomas de uma recente injeção para emagrecer o rosto – um procedimento ao qual se submete mensalmente para ajudar seu rosto a parecer “mais firme e menos gordinho” após três cirurgias de redução de maxilar que removeram muito osso.
Mas ela insiste que não se arrepende das cirurgias e acredita que sua mãe tomou a decisão certa todos esses anos.
“A cirurgia funcionou. Fiquei mais confiante e feliz, dia após dia. Acho que minha mãe tomou a decisão certa.”
Crédito, Arquivo pessoal/Abby Wu
Antes vista como tabu, a cirurgia plástica explodiu em popularidade nos últimos 20 anos na China, impulsionada pelo aumento da renda disponível e por mudanças nas atitudes sociais, em grande parte impulsionadas pelas redes sociais.
Todos os anos, 20 milhões de chineses pagam por procedimentos estéticos.
A esmagadora maioria das mulheres jovens – sob pressão para atingir padrões de beleza cada vez mais elevados – busca a cirurgia. Cerca de 80% dos pacientes são mulheres e a idade média de quem se submete à cirurgia é de 25 anos.
Embora a aparência sempre tenha sido importante na cultura chinesa, especialmente para as mulheres, os padrões de beleza no país estão mudando.
Durante anos, as características mais procuradas eram uma mistura de ideais ocidentais, estética de anime (desenhos animados japoneses) e inspiração do K-Pop: pálpebra dupla, maxilar esculpido, nariz proeminente e rosto simétrico.
Mas, ultimamente, procedimentos mais perturbadores estão em ascensão – perseguindo um ideal irrealista, hiperfeminino, quase infantil.
A cirurgia da pálpebra inferior, inspirada no olhar vidrado das heroínas de anime, alarga os olhos para uma aparência inocente e infantil.
O encurtamento do lábio superior estreita o espaço entre o lábio e o nariz, considerado um sinal de juventude.
Mas grande parte dessa beleza é construída para as telas. Sob filtros e anéis de luz (luminárias especiais utilizadas para auto filmagem de vídeos publicados nas redes sociais), os resultados podem parecer impecáveis.
Na vida real, o efeito costuma ser estranho – um rosto não exatamente humano, não exatamente infantil.
Crédito, Reprodução/TikTok e RedNote
Aplicativos de cirurgia plástica como SoYoung (cujo nome original em chinês significa “Oxigênio Novo”) e GengMei (“Mais Bonita”) – que alegam oferecer análises algorítmicas das chamadas “imperfeições faciais” – têm crescido em popularidade.
Após escanear e avaliar os rostos dos usuários, eles fornecem recomendações de cirurgias de clínicas próximas, recebendo uma comissão por cada operação.
Essas e outras tendências de beleza são compartilhadas e promovidas por celebridades e influenciadores nas redes sociais, mudando rapidamente o que é considerado desejável e normal.
Como uma das primeiras influenciadoras de cirurgia plástica da China, Abby documentou seus procedimentos nas principais redes sociais e aderiu ao SoYoung logo após seu lançamento.
No entanto, apesar de ter passado por mais de 100 procedimentos, quando ela escaneia o rosto usando o recurso “Espelho Mágico” do SoYoung, o aplicativo ainda aponta “imperfeições” e sugere uma longa lista de cirurgias recomendadas.
“Diz que tenho olheiras. Fazer um aumento de queixo? Já fiz isso.” Abby parece se divertir.
“Afinar o nariz? Devo fazer outra cirurgia no nariz?”
Ao contrário dos sites de comércio eletrônico tradicionais, aplicativos de beleza como o SoYoung também oferecem uma função de rede social.
Os usuários compartilham diários detalhados de antes e depois e frequentemente pedem conselhos a superusuários como Abby.
Crédito, Divulgação/SoYoung
‘Minha pele parecia ter cimento por baixo’
Para atender à crescente demanda, clínicas estão abrindo rapidamente em toda a China.
Mas há escassez de profissionais qualificados e um grande número de clínicas opera sem licença.
De acordo com um relatório da empresa de pesquisa de mercado iResearch, em 2019, 80 mil estabelecimentos na China ofereciam procedimentos estéticos sem licença e 100 mil profissionais de estética trabalhavam sem as qualificações necessárias.
Como resultado, estima-se que centenas de acidentes ocorram todos os dias em clínicas de cirurgia plástica chinesas.
Yang Lu, cirurgiã plástica e proprietária de uma clínica de cirurgia estética licenciada em Xangai, afirma que, nos últimos anos, o número de pessoas que procuram cirurgias para reparar operações malsucedidas tem aumentado.
“Já atendi muitos pacientes cuja primeira cirurgia foi malsucedida porque foram a locais sem licença”, diz Yang.
“Alguns até fizeram cirurgias dentro de casa.”
Yue Yue, de 28 anos, está entre as que passaram por cirurgias que deram muito errado.
Em 2020, ela recebeu injeções de colágeno Baby Face – projetadas para deixar o rosto mais volumoso – de uma clínica sem licença aberta por uma amiga próxima. Mas os preenchimentos endureceram.
“Minha pele parecia ter cimento por baixo”, diz ela.
Desesperada para desfazer o dano, Yue Yue recorreu a clínicas que encontrou nas redes sociais – nomes conhecidos –, mas os reparos só pioraram a situação.
Uma clínica tentou extrair o preenchimento usando seringas. Em vez de remover o material endurecido, extraíram seu próprio tecido, deixando sua pele solta.
Outra clínica tentou levantar a pele perto das orelhas para alcançar o preenchimento por baixo, deixando-a com duas cicatrizes longas e um rosto com uma aparência artificialmente tensa.
“Minha imagem inteira desmoronou. Perdi meu brilho e isso afetou meu trabalho [em recursos humanos de uma empresa estrangeira em Xangai] também.”
Ela conheceu Yang por meio da SoYoung no ano passado e, desde então, passou por três cirurgias reparadoras, incluindo as de pálpebras, que foram danificadas em uma operação anterior realizada em outra clínica.
Mas, embora as cirurgias de Yang tenham trazido melhorias visíveis, alguns dos danos causados pelos procedimentos malsucedidos podem ser permanentes.
“Não quero mais ficar bonita”, diz ela.
“Se eu pudesse voltar a ser como era antes da cirurgia, ficaria muito feliz.”
‘Isso arruinou minha carreira’
Todos os anos, dezenas de milhares de pessoas como Yue Yue são vítimas de clínicas de estética sem licença na China.
Mas mesmo algumas clínicas licenciadas e cirurgiões qualificados não seguem as regras à risca.
Em 2020, a cirurgia de nariz malsucedida da atriz Gao Liu – na qual a ponta do seu nariz ficou preta e necrosou – viralizou.
“Meu rosto ficou desfigurado e eu estava muito deprimida. Isso arruinou minha carreira de atriz.”
Ela havia feito a cirurgia de nariz em uma clínica licenciada em Guangzhou, chamada She’s Time’s, com o médico He Ming, descrito como seu “cirurgião-chefe” e especialista em cirurgia de nariz.
Mas, na realidade, He não era totalmente qualificado para realizar a cirurgia sem supervisão e não havia obtido seu status de cirurgião plástico licenciado da Comissão Provincial de Saúde de Guangdong.
As autoridades multaram a clínica, que fechou logo após o escândalo, e proibiram He de exercer a profissão por seis meses.
No entanto, semanas antes da She’s Time’s ser oficialmente dissolvida, uma nova clínica, Qingya, solicitou o registro no mesmo endereço.
Crédito, Arquivo pessoal/Gao Liu
A BBC Eye – divisão de documentários investigativos da BBC – encontrou fortes ligações entre a She’s Time’s e a Qingya, como uma mesma conta no Weibo (rede social chinesa similar ao X) e a manutenção de vários funcionários, incluindo He.
A BBC também apurou que He só obteve a qualificação de cirurgião plástico licenciado em abril de 2024, embora tecnicamente ele tenha sido impedido de solicitar o status por cinco anos a partir da data em que foi punido, em 2021.
A Qingya agora afirma ter aberto 30 filiais.
He Ming, a Qingya e a Comissão Provincial de Saúde de Guangdong não responderam aos pedidos de comentário da BBC.
A Embaixada da China no Reino Unido afirmou: “O governo chinês exige consistentemente que as empresas operem em estrita conformidade com as leis, regulamentos e disposições políticas relevantes nacionais.”
Quatro anos e duas cirurgias de reparo depois, o nariz de Gao Liu continua irregular.
“Eu realmente me arrependo. Por que eu fiz isso?”
A Comissão Central de Saúde da China vem tentando reprimir o problema de profissionais de saúde pouco qualificados que realizam tarefas além de sua especialidade nos últimos anos — inclusive ordenando que órgãos de saúde locais melhorem a regulamentação e emitindo diretrizes mais rigorosas —, mas os problemas persistem.
Da oferta de emprego à dívida e cirurgia em 24 horas
Na China de hoje, ter uma boa aparência é importante para o sucesso profissional.
Uma busca rápida em plataformas populares de recrutamento revela muitos exemplos de empregadores que listam requisitos físicos para as vagas, mesmo quando estes têm pouco a ver com o trabalho em si.
Uma vaga de recepcionista exige que os candidatos tenham “pelo menos 1,60 m de altura e sejam esteticamente agradáveis”, enquanto um cargo administrativo exige “uma aparência atraente e uma presença elegante”.
E agora essa pressão está sendo explorada por um golpe crescente em algumas clínicas chinesas, nas quais jovens mulheres vulneráveis recebem ofertas de emprego, mas somente se pagarem por cirurgias caras realizadas por seus futuros empregadores.
Da Lan, nome fictício, se candidatou a uma vaga de “consultora de beleza” em uma clínica em Chengdu, sudoeste da China, em um site de recrutamento popular em março de 2024.
Após a entrevista, ela recebeu a oferta do cargo naquela mesma noite.
Mas ela conta que, ao começar seu trabalho na manhã seguinte, foi levada a uma pequena sala por seu gerente, que a examinou de cima a baixo e lhe deu um ultimato: fazer uma cirurgia plástica ou perder o emprego.
Da Lan conta que teve menos de uma hora para decidir.
Sob pressão, ela concordou em se submeter a uma cirurgia de pálpebra dupla – que custou mais de 13.000 yuans (R$ 10,2 mil) – mais de três vezes o salário mensal da função – com juros anuais de mais de 30%.
Ela conta que a equipe pegou seu telefone e o usou para solicitar o chamado “empréstimo estético”, falsificando seus dados de renda. Em um minuto, o empréstimo foi aprovado.
Ao meio-dia, ela estava fazendo exames médicos. Uma hora depois, estava na mesa de operação.
Da oferta de emprego à dívida e à cirurgia – tudo em 24 horas.
A cirurgia não melhorou em nada suas perspectivas de emprego. Da Lan diz que seu gerente a menosprezou, gritando seu nome em público e xingando-a.
Ela pediu demissão depois de apenas algumas semanas. Olhando para trás, ela acredita que o emprego nunca foi real.
“Eles queriam que eu saísse desde o início”, diz ela.
Apesar de ter trabalhado lá por mais de dez dias, ela recebeu apenas 303 yuans (R$ 238). Com a ajuda de seus amigos, Da Lan pagou a dívida da cirurgia após seis meses.
A BBC Eye conversou com dezenas de vítimas e conheceu três delas, incluindo Da Lan, em Chengdu, uma cidade que se propõe a se tornar a “capital da cirurgia plástica” da China. Algumas estão presas em dívidas muito maiores há anos.
A clínica que Da Lan diz ter lhe dado um golpe já havia sido denunciada por outros recém-formados e exposta pela imprensa local, mas continua aberta e ainda está recrutando para a mesma função.
Esse golpe não se limita a empregos em clínicas – está se espalhando para outros setores.
Algumas empresas de transmissão ao vivo pressionam jovens mulheres a tomar empréstimos para cirurgias, prometendo uma chance de fama como influenciadora.
Mas, nos bastidores, essas empresas costumam ter acordos não divulgados com clínicas – ficando com uma comissão de cada candidata que enviam para a mesa de cirurgia.
Em um café de estilo boêmio em Pequim, o cenário perfeito para uma selfie, Abby encontra suas amigas para um café.
O trio ajusta suas poses e edita seus rostos detalhadamente – estendendo cílios e remodelando as maçãs do rosto.
Quando perguntadas sobre o que mais gostam em seus traços faciais, elas hesitam, lutando para nomear uma única parte que não considerariam alterar.
A conversa muda para implantes de queixo, encurtamento do buço e cirurgia no nariz.
Abby diz que está pensando em outra rinoplastia – a atual tem seis anos – mas os cirurgiões estão com dificuldades para operá-la.
“Minha pele não estica tanto depois de tantos procedimentos. Os médicos não têm muito com o que trabalhar. Você não pode dar a eles tecido suficiente para um colete e esperar um vestido de noiva.”
A metáfora paira no ar, ressaltando o custo de todas as operações.
Mas, apesar de tudo, Abby não tem planos de parar.
“Acho que nunca vou parar minha jornada para me tornar mais bonita.”