Escravidão: quem foi a escravizada considerada 1ª advogada do Brasil
Crédito, Gabriel Santos / Riotur
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled, para a BBC News Brasil
Acredita-se que Esperança Garcia, uma escravizada que vivia em fazenda localizada a 300 quilômetros de onde hoje é Teresina, no Piauí, tivesse apenas 19 anos quando escreveu uma carta reclamando de maus-tratos.
O texto, datado de 6 de setembro de 1770, foi descoberto pelo antropólogo e historiador Luiz Mott, professor na Universidade Federal da Bahia. Revisto e analisado, passou a ser considerado uma petição — a primeira peça jurídica escrita por uma mulher no Brasil.
“A valorização de figuras como Esperança Garcia é crucial para fortalecer a representatividade e o empoderamento das comunidades negras”, diz à BBC News Brasil a historiadora Iraneide Soares da Silva, professora na Universidade Estadual do Piauí.
“Ao reconhecer seu papel histórico, contribui-se para a construção de uma narrativa mais inclusiva e diversa, que valoriza as contribuições de pessoas negras na formação da sociedade brasileira.”
Em 2022, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passou a reconhecer Esperança Garcia como a primeira advogada brasileira, repetindo uma honraria póstuma que já havia sido conferida ao abolicionista Luiz Gama (1830-1882) em 2015.
“Ela agiu, de certa maneira, como verdadeira advogada, daí o seu pioneirismo”, avalia o jurista Rubens Beçak, professor na Universidade de São Paulo (USP).
“[Agiu] em prol não só do seu direito, mas de um tratamento mais humano, condizente com a sua condição de ser humano, contra aquela violência toda que os escravizados sofriam. Ela o fez também em nome de outras pessoas, de seus familiares que estavam no entorno.”
Silva conta no Dicionário Biográfico – Histórias Entrelaçadas de Mulheres Afrodiaspóricas que há indícios de que Esperança Garcia tenha nascido em 25 de abril de 1751, na então Província do Piauí. Ela teria sido batizada em homenagem a Nossa Senhora da Esperança.
“Não se tem notícias sobre seus pais ou outros parentes […]”, escreve a historiadora. “Sabe-se que ela era afrodescendente.”
Esperança teve o primeiro filho aos 16 anos. Mas ela acabou separada de sua família, vendida ao capitão Antônio Vieira do Couto, procurador de fazendas de gado de Portugal.
Separada de seu marido e seus filhos, ela passou a sofrer abusos na mão de seu novo senhor, como espancamentos, inclusive também filho pequeno, diz o advogado Flávio de Leão Barros Pereira, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Violações eram também suportadas por outras mulheres escravizadas. Nesse contexto de opressão, Esperança toma a decisão de praticar um ato que entraria para a história como a primeira petição de direitos do Brasil”, diz Pereira.
Crédito, Domínio Público
A petição de Esperança
A carta foi escrita em letra cursiva e com boa caligrafia. Tinha 20 linhas.
O destinatário era o governador da Província do Piauí, Gonçalo Pereira Botelho de Castro. Esprança reclamava das condições a que estava sendo submetida na nova casa e pedia para retornar à Fazenda Algodões. Dizia assim:
“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal”, disse ela.
“A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar”, prosseguiu.
“Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.”
O documento é considerado valioso, tanto por seu aspecto historiográfico quanto sob o aspecto jurídico, diz Pereira.
“Seu conteúdo constitui uma peça de alta qualidade técnica no que tange aos pressupostos até hoje exigidos para uma boa petição de direitos ao Estado, bem como enquanto peça de denúncia por violações impostas não apenas à própria Esperança Garcia, como também a outras vítimas escravizadas”, ressalta o advogado.
Este texto foi descoberto por Mott em 1979. “Foi no Arquivo do Estado do Piauí. E na época não se conhecia nenhum manuscrito original escrito por escrava no Brasil”, conta ele, à BBC News Brasil.
“No meu artigo [científico publicado logo após a descoberta], eu digo que aquilo era mais do que uma carta, era uma petição. Então, viram que o procedimento dela preenchia as condições mesmo para isso [com características de uma peça jurídica].”
As negras escravizadas eram submetidas a condições de violência severas, faziam todo o trabalho doméstico e ainda sofriam abusos sexuais.
“Nesse sentido, Esperança nos informa, em carta, que, por ser uma mulher escravizada, vivia em um contexto de violência e dor”, escreve Silva.
“Ela se dizia casada e com a profissão de cozinheira, o que a qualificaria e a tornava mais cara para o senhor. Soma-se a essa valoração, seus filhos, sua pouca idade e sua instrução, pois sabia ler e escrever, apesar dos registros de inventários de famílias, no geral, demonstrarem que havia uma significativa diferença entre os preços de homens e o de mulheres escravizadas.”
Não há nenhum registro conhecido de resposta dada pelo governo provincial à carta.
Mas o nome de Esperança Garcia consta em um levantamento dos escravizados que pertenciam à Fazenda Algodões quando ela tinha 27 anos — o que indica, portanto, que ela conseguiu o que desejava.
Segundo esse documento, ela vivia com seu marido, um angolano chamado Ignácio que tinha então 57 anos.
Crédito, Divulgação/OAB
Religião, feminismo e legado
Para pesquisadores, o ponto que ajudou na causa de Esperança Garcia foi apelar à religião.
Na carta, ela ressalta que estava sem poder se confessar há três anos e que queria batizar as crianças. Ainda argumentava que voltar à sua fazenda original a permitiria voltar a viver com seu marido — e o matrimônio também é um valor caro à religiosidade católica.
A Fazenda Algodões, onde a escravizada nasceu e para onde depois conseguiu voltar, era dos religiosos jesuítas. “Foi provavelmente com eles que Esperança aprendeu a ler e a escrever”, pontua Pereira.
O advogado analisa a peça, lembrando que a jovem escrava narra como foi separada de sua família e como ela e seu filho sofriam todo tipo de agressões e violações.
“Ainda mais importante, denunciava também a violência suportada por outras escravas, todas privadas do exercício do culto, inclusive ressaltando que não conseguiam se confessar, tampouco batizar suas crianças, certamente uma estratégia marcada por alta sagacidade e perspicácia por valer-se de valores europeus e colonizadores para obter da autoridade as providências solicitadas”, complementa Pereira.
Ele destaca passagens “dramáticas” como a expressão “colchão de pancadas” diante das “trovoadas de pancadas” que eram empregadas pelo senhor.
Estruturalmente, a escravizada fez um documento “endereçado à autoridade competente”, descrevendo “os fatos e suplícios sofridos”, contemplando “não apenas sua situação individual, mas das demais companheiras de escravidão”.
Segundo Pereira, portanto, ela fez “um pedido coletivo”, valendo-se de “verdadeira e eficaz estratégia jurídica e cultural”.
“[Elaborou] uma peça primorosa considerado o contexto da época, um verdadeiro habeas corpus individual e coletivo. Realmente impressionante”, avalia.
Sob os aspectos técnicos, a advogada Mariana Sousa Schedeloski, professora na Universidade Mackenzie Alphaville, lembra que o manuscrito de Esperança Garcia segue, ainda que de maneira simplificada, a ordem de uma peça jurídica.
“Ela endereça à autoridade competente, faz sua apresentação, conta os fatos que lhe aconteciam de maneira cronológica, expõe seus pedidos e finaliza assinando o texto”, sintetiza Schedeloski.
“Com relação ao conteúdo, o documento traz um pedido coletivo de retornar à família, praticarem sua fé religiosa, se confessarem e batizarem seus filhos. Bem como se solidariza com outras mulheres que estão na mesma condição que ela, evidenciando a sororidade entre mulheres escravizadas”, acrescenta a professora.
Para Schedeloski, o texto ainda é relevante “por fazer parte da literatura afro-brasileira com narrativa feminista, tom reivindicatório, metáforas e relato autobiográfico”.
Crédito, Reprodução do livro Dicionário Biográfico: Histórias Entrelaçadas de Mulheres Afrodiaspóricas
Não se sabe como e quando morreu Esperança.
“Esperança Garcia deve ser lembrada e celebrada como uma fonte de inspiração para as gerações futuras. Seu exemplo de resistência, coragem e busca por justiça serve como um modelo para todos que continuam a lutar contra a discriminação e a desigualdade”, afirma a historiadora Silva.
Em 1999, o Piauí decretou o 6 de setembro como o Dia Estadual da Consciência Negra ou Dia de Esperança Garcia, em alusão à carta.
Em 2017, um espaço dedicado à cultura negra em Teresina foi inaugurado e rebatizado como Memorial Esperança Garcia. Em 2022, a OAB reconheceu a escravizada como a primeira advogada brasileira.
No ano seguinte, a escola de samba Em Cima da Hora fez de Esperança Garcia o tema de seu desfile pela Série Ouro do carnaval do Rio de Janeiro.
“A história de Esperança Garcia é um lembrete poderoso de que a luta pela justiça e pela igualdade é contínua e que é necessário lembrar e celebrar aqueles que pavimentaram o caminho para um futuro melhor”, frisa a historiadora.