Papa Leão 14: o que é a Doutrina Social da Igreja Católica que pode ter inspirado a escolha do nome
Crédito, Francesco Sforza/Reuters
- Author, Débora Crivellaro
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
Desde que o cardeal Robert Francis Prevost foi escolhido pelo Colégio de Cardeais, começou uma corrida para decifrar seus sinais, da escolha do traje ao nome, a fim de prever qual será a tendência do seu pontificado.
No sábado (10/5), o papa Leão 14 facilitou e muito a vida dos especialistas em religião ao explicar os motivos da escolha do nome. Ele afirmou ter sido por causa de Leão 13 (1878-1903), e citou os dois grandes pilares da igreja chamada progressista, a encíclica Rerum Novarum (1891), o Concílio Vaticano II (1962-1965), reunião de bispos do mundo todo que modernizou a Igreja Católica, e, textualmente, a própria Doutrina Social da Igreja.
“O nome dele é o programa [de governo] dele”, resumiu o cardeal Ladislav Nemet, arcebispo de Belgrado, em entrevista à HRT, a Rádio e Televisão Croata.
Para não deixar dúvidas, Leão 14 fez um discurso contundente durante encontro com cardeais, no qual deixou claro seu alinhamento com o pontificado de seu antecessor Francisco.
“Gostaria que juntos, hoje, renovássemos nossa plena adesão, neste caminho, à via que há décadas a Igreja universal tem trilhado na esteira do Concílio Vaticano II. O Papa Francisco recordou e atualizou magistralmente seus conteúdos na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013), da qual quero destacar alguns pontos fundamentais: o retorno ao primado de Cristo no anúncio; a conversão missionária de toda a comunidade cristã; o crescimento na colegialidade e na sinodalidade; o cuidado amoroso pelos últimos e pelos descartados; o diálogo corajoso e confiante com o mundo contemporâneo em suas diversas componentes e realidades.”
E sobre a escolha do nome Leão 14: “…O Papa Leão 13, de fato, com a histórica encíclica Rerum Novarum, enfrentou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial; e hoje a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de doutrina social para responder a uma nova revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.
Revolução Industrial
A leitura imediata foi feita por ele mesmo. Leão 14 acredita que estejamos enfrentando uma nova Revolução Industrial, do mesmo modo que Leão 13 enfrentou a primeira, no fim do século 19, inaugurando a Doutrina Social da Igreja com sua carta papal Rerum Novarum.
“Queria apenas sublinhar como foi bonita a decisão na escolha do nome Leão, que traz consigo a vitalidade e a coragem” afirma o especialista em sociologia da religião Faustino Teixeira.
“Faz aquecer em nossa memória o singular empenho de Leão 13 em sua ousada experiência de abertura da Igreja para as coisas novas, para os novos tempos, para a causa dos trabalhadores. Com sua precisa decisão, o papa Prevost sinaliza para todos nós que o caminho verdadeiro da Igreja se faz com abertura, diálogo e compaixão.
A Doutrina Social da Igreja é um conjunto de ideias que promove a leitura do Evangelho à luz das questões concretas que afligem a sociedade – pobreza e desigualdade, principalmente.
Os adeptos dessa doutrina buscam a justiça, a dignidade humana e o bem comum. “Papa Francisco é, até o momento, o melhor exemplo de seguidor desse pensamento, o mais progressista”, afirma o teólogo e escritor Frei Betto.
O argentino Bergoglio declarou sua opção preferencial pelos pobres, defendeu imigrantes e indígenas, promoveu o diálogo inter-religioso, criticou o armamentismo e a guerra e organizou grandes eventos para debater o meio ambiente, entre outros gestos.
Doutrina Social é pensar os problemas que afligem a sociedade. Parece óbvio, mas até o século passado a igreja encarou a pobreza com uma visão determinista, como uma condição estabelecida por Deus. Uma ideia do tipo “essa pessoa é pobre porque Deus quis assim e a vida eterna a compensará.” A preocupação era com as recompensas no paraíso, sem olhar para as mazelas da vida cotidiana.
Rerum Novarum
Foi Leão 13 quem lançou a faísca da doutrina social com sua encíclica Rerum Novarum, que significa Coisas Novas, em 1891.
Foi ele, também, quem reposicionou a Igreja Católica em relação à ascensão das democracias modernas e à separação entre Igreja e Estado, passando da rejeição absoluta de seu antecessor Pio 9º (1846-1878) para uma abertura cautelosa que acabaria levando primeiro aos Pactos de Latrão (1929).
Os Pactos de Latrão foram um acordo entre a Santa Sé e o Reino da Itália que resolveu a chamada Questão Romana, conflito entre o governo italiano e a Igreja Católica sobre a posse de Roma e os Estados Papais (territórios governados pela Igreja), e, finalmente, à declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, Dignitatis Humanae (1965).
Na Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja (Edições Loyola), o padre Fernando Bastos de Ávila afirma que “…a Rerum Novarum abrange muitas exigências. O acesso e a garantia da propriedade privada para todos; direito ao repouso dominical que era desrespeitado de maneira cruel; a limitação da jornada de trabalho, especialmente para crianças e mulheres. Todavia, a coisa mais inovadora do documento foi a definição da justiça do salário. O salário justo é aquele que garante: condições de vida digna para o trabalhador, para sua família e possibilidades de poupança para enfrentar os imprevistos e as fatalidades mortais da vida. A encíclica consagra, assim, o salário-família como um dever de justiça, e não como uma mera utopia complacente, e consagra, também, a previdência privada…”
A Doutrina Social da Igreja foi apresentada de modo sistematizado em 2004, no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, fruto de trabalho do Pontifício Conselho Justiça e Paz.
No documento, a Rerum Novarum é tratada como “a carta magna da atividade cristã no campo social, em busca de uma ordem social justa. À vista dos problemas resultantes da revolução industrial que suscitaram o conflito entre capital e trabalho, aquele documento enumera os erros que provocam o mal social”.
E “também exclui o socialismo como remédio e expõe de modo preciso e atualizado a doutrina católica sobre o trabalho, o direito de propriedade, o princípio da colaboração em contraposição à luta de classes, sobre o direito dos mais fracos, a dignidade dos pobres e as obrigações dos ricos, o direito de associação e o aperfeiçoamento da justiça pela caridade”.
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Leão 13 e a primeira encíclica social
O papa Leão 13 entrou para a história como o pontífice que deu início à doutrina social da Igreja Católica, embora seus 25 anos de pontificado não tenham sido tão lineares.
Leão 13 nasceu Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci em Carpineto Romano, nos arredores de Roma. Estudou com os jesuítas e, ordenado sacerdote, serviu em Benevento, na Itália, até seguir para a Bélgica, país que exerceu forte influência no então padre.
O contato com o ambiente cultural e com o catolicismo belga, onde a Igreja agia de forma mais independente do Estado, ao contrário de outros países europeus, onde havia uma relação mais próxima, influenciaram o pensamento e a atuação do futuro papa.
Quando voltou da Bélgica, em 1846, Pecci foi nomeado bispo de Perugia, cargo que exerceu até se tornar papa. Durante os 32 anos em que esteve nesta cidade da região da Úmbria, estudou sobre os problemas sociais e econômicos da época e começou a refletir sobre o papel e as exigências da Igreja naquele momento histórico.
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Há registros de cartas de sua autoria nas quais afirma a necessidade de conciliação entre a Igreja e a sociedade moderna e cita os progressos da ciência com entusiasmo. Era notória sua admiração pela Revolução Industrial — dizia que ela representava a libertação do “trabalho difícil”.
O conclave que o alçou à papa durou apenas 36 horas. “Desde seu anúncio, a impressão geral à época era que um novo tempo e uma nova mentalidade haviam chegado à Igreja. E foi o que aconteceu”, afirma o historiador Ney de Souza, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor do livro História da Igreja (Ed. Vozes).
A característica mais marcante de seu pontificado foi reconciliar a Igreja com o mundo moderno, deixando de lado o constante confronto de seus antecessores, inclusive seu antecessor direto, Pio 9º. (1846-1878), que conduziu o Concílio Vaticano I (1869-1870). Essa reunião de bispos do mundo todo teve como principal objetivo combater o chamado mundo moderno – basicamente o racionalismo (convicção de que a razão humana é suficiente para se alcançar a verdade, dispensando a fé num deus); o liberalismo (ideologia que defende a separação entre Igreja e Estado e a limitação do poder religioso sobre a vida pública) e o materialismo (teoria segundo a qual só a matéria existe, negando a existência de qualquer entidade sobrenatural).
Leão 13 assinou 46 encíclicas ou cartas papais — o maior número já publicado por um pontífice até o momento — e também promoveu a abertura dos arquivos do Vaticano, até então mantidos em sigilo.
Perfil conservador
“Apesar de caminhar de mãos dadas com seu tempo, Leão 13 não era um papa liberal”, diz o teólogo e especialista em história eclesiástica Ney de Souza.
Ele foi um dos que comungaram do Syllabus Errorum, um anexo à encíclica Quanta Cura (1864) divulgada no pontificado de seu antecessor, Pio 9º. O polêmico documento teve como objetivo reafirmar a doutrina católica frente às mudanças sociais e políticas do século 19 e reafirmar o poder espiritual e temporal do papa, inclusive contra ideias de separação entre Igreja e Estado.
Leão 13 também nunca escondeu sua devoção a São Tomás de Aquino, que, ao lado de Santo Agostinho, refinou e aprofundou o entendimento do pecado na teologia cristã.
O papa italiano também era um ferrenho defensor do Estado eclesiástico, regiões governadas diretamente por uma autoridade religiosa. Na sua primeira encíclica, Dei Consilio (1878), chegou a afirmar que todas as vezes que se vai contra o poder temporal da Sé Apostólica, viola-se a causa do bem e a salvação do homem.
A formação da consciência social
O pensamento de Leão13 foi sendo moldado ao longo de seu pontificado, influenciado pelas mudanças sociais e econômicas que ocorriam à época, principalmente a consolidação da Revolução Industrial.
“Até aquele momento, a figura do capitalista e a do novo proletário e assalariado eram absolutamente estranhas ao universo católico da época”, afirma o teólogo Fernando Altemeyer Jr..
A Igreja analisava as crises socioeconômicas de forma genérica, atribuindo seus males ao capitalismo, que seria fruto do liberalismo, e à Revolução Francesa (1789) que, por sua vez, seria a consequência natural do abandono dos princípios religiosos do Antigo Regime, o sistema político que antecedeu à Revolução.
“Em suma, a Igreja resumia toda a problemática social do período a supostas causas religiosas e morais”, diz Altemeyer.
A aguda desigualdade social era vista como algo natural e até mesmo providencial pelos católicos. “Chegavam a defender que a existência dos pobres era uma necessidade social que beneficiava a salvação dos ricos. Aos pobres, pediam a resignação e a submissão à vontade de Deus, aceitando resignadamente sua sorte”, afirma Souza.
Leão 13 compartilhava dessas ideias e deixou isso documentado em cartas papais anteriores à à Rerum Novarum.
Em Auspicato Concessum (1882), por exemplo, escreve: ” (…) a questão entre as relações entre o rico e o pobre, que tanto preocupa os economistas, será perfeitamente deslindada se à pobreza não faltar dignidade; que o rico deve ser generoso e cheio de misericórdia; o pobre contente com sua sorte e satisfeito do seu trabalho (…) todos devem subir ao céu, um pela paciência e outro pela liberalidade (…)”.
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Catolicismo social
O século 19 também foi marcado por iniciativas no campo da caridade, basicamente de assistência ao pobre. Foi nesta época que surgiram inúmeras associações com este fim que perduram até hoje, como a Sociedade de São Vicente de Paulo, fundada em 1833. Esse catolicismo era essencialmente conservador. As obras de caridade tinham uma orientação paternalista, insistindo nos princípios da ordem e da autoridade, da propriedade e da moral cristã.
Neste contexto começou a aflorar o catolicismo social, pensamento que influenciou Leão 13. Na sua obra A questão Operária e o Cristianismo (1864), o bispo alemão Dom Whilhelm Emmanuel Von (1811-1877) afirmou que “o verdadeiro cristianismo pode oferecer uma solução adequada da questão social e restituir ao homem o autêntico significado do trabalho”. Ketteler enxergou no movimento de associação de operários o único instrumento eficaz para a construção da liberdade no mundo do trabalho. Com essas ideias, se tornou o primeiro teórico católico a favor da organização sindicalista, ideia adotada por Leão 13 e expressa na Rerum Novarum.
Em pouco tempo, esse movimento ideológico ganhou força em parte da Igreja, até inspirar a construção da encíclica Rerum Novarum e o início da Doutrina Social. “A Rerum Novarum criou a Doutrina Social da Igreja ao tratar da causa operária”, afirma Frei Betto.
Por conta desta encíclica, Leão 13 foi para o centro da polêmica. Muitas pessoas, dentro e fora da Igreja Católica, pediam a reconversão do papa ao catolicismo e o acusavam de alinhado às teses marxistas.
Leão 13 morreu com 93 anos e, nos últimos anos de vida, realçou traços de conservadorismo, o que se mostrou uma antecipação do que viria a seguir, o ultraconservador Pio 10 (1903-1914).
Leão Magno, o primeiro
Leão Magno foi papa de 440 a 461 e declarado santo logo após a sua morte. Ele não elaborou uma doutrina sistemática como a Rerum Novarum, mas seu discurso centrado na justiça e no bem comum foi fundamental para formar a base social que a Igreja usaria séculos depois.
Leão Magno foi papa durante o declínio do Império Romano do Ocidente e era considerado um teólogo brilhante, tanto que se tornou doutor da Igreja, título atribuído aos santos cuja obra é considerada de extremo saber e uma honraria concedida a poucos: há apenas 37 doutores na Igreja Católica. Ele também ficou famoso por sua atuação política e diplomática — convenceu Átila, o Huno, a não atacar Roma, por exemplo.
Em seus escritos, Magno afirmava que a riqueza não é absoluta e que os bens materiais têm uma função social. “Dá ao pobre aquilo que é dele: pois aquilo que é dado ao necessitado, não é um presente, mas uma dívida,” escreveu. Insistia que a caridade era uma obrigação e não uma opção e que a injustiça social era um problema moral e espiritual. Também defendia a promoção de uma sociedade onde todos os membros, ricos e pobres, tivessem dignidade e papel comum.