Gaza: desnutrição avança no território palestino no terceiro mês de bloqueio israelense
- Author, Fergal Keane
- Role, Da BBC News, em Jerusalém
Às vezes, em uma guerra, é o som mais sutil que transmite a mensagem mais potente.
No hospital Nasser, em Gaza, uma menina de cinco meses luta para chorar.
Siwar Ashour está rouca. Sua voz foi esvaziada da energia necessária para expressar o sofrimento. Ela não consegue digerir o leite em pó comum, e os médicos dizem que o bloqueio israelense, agora em seu terceiro mês, fez com que o alimento específico de que precisa esteja escasso.
Siwar soa como se o peso da guerra estivesse comprimindo seus pulmões.
Sua mãe, Najwa, de 23 anos, troca sua fralda. Siwar pesa pouco mais de 2 kg. Uma bebê de cinco meses deveria pesar cerca de 6 kg ou mais.
“Não havia comida quando dei à luz”, conta Najwa.
“Se eu quisesse me alimentar para conseguir amamentá-la, não tinha nutrientes para recuperar minha saúde… Agora ela só toma leite em pó, e não sabemos como vamos conseguir mais.”
Israel proibiu a entrada de jornalistas internacionais em Gaza para reportagens independentes.
Mas um colaborador local da BBC filmou os sinais inconfundíveis de desnutrição severa no corpo de Siwar: a cabeça que parece grande demais para o corpo frágil; braços e pernas finos como gravetos; as costelas marcadas sob a pele quando tenta chorar; os olhos castanhos e grandes, que seguem cada pequeno movimento da mãe.
Najwa se preocupa com o que vai acontecer quando tiver que deixar o hospital.
“O hospital conseguiu, com muita dificuldade, encontrar um pouco de leite para ela. Procuraram em todos os hospitais, mas só encontraram em um. Disseram que me darão um frasco quando eu sair, mas mal dá para quatro dias. O pai dela é cego e não pode comprar leite para ela. Mesmo se encontrássemos, seria caro, e ele está desempregado.”
Segundo o médico de Siwar, Ziad al-Majaida, essa é a segunda internação da bebê, provocada pela falta de leite específico.
“Nada entra pelas fronteiras — nem leite, nem comida, nada. Isso causa grandes problemas para as crianças. Essa bebê precisa de um tipo específico de leite. Era disponível antes, mas com o fechamento das fronteiras, os estoques acabaram.”
O hospital tenta encontrar mais suprimentos, mas Siwar está fraca e sofre de diarreia constante.
“Se continuar assim, sua vida estará em risco. Mas se o leite e o tratamento fossem providenciados, seu estado melhoraria”, diz o médico.
Desde o início do ano, segundo a ONU, cerca de 10 mil casos de desnutrição aguda em crianças foram identificados. Os preços dos alimentos dispararam até 1400%.
Cozinhas solidárias, que alimentavam centenas de milhares de pessoas em Gaza, estão fechando por falta de suprimentos. Vinte e cinco padarias apoiadas pelo Programa Mundial de Alimentos foram obrigadas a encerrar as atividades.
Na cidade de Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza — onde está localizado o hospital Nasser —, a reportagem visitou uma cozinha administrada pelo grupo juvenil Shabab Gaza, que entrega refeições diretamente às famílias. Cada uma recebe comida suficiente para uma refeição por dia.
Mohammad Abu Rjileh, 29, responsável pela organização, afirma que três das quatro cozinhas do grupo fecharam por falta de suprimentos. Saques cometidos por gangues criminosas e por civis desesperados agravaram a crise de abastecimento.
“Muitas das organizações que nos apoiam tiveram seus depósitos saqueados. Em vez de termos ingredientes para preparar 10 mil refeições por dia — o suficiente para mais uma semana ou dez dias —, agora temos suprimentos apenas para um ou dois dias. Se nenhuma solução for implementada imediatamente e as fronteiras não forem reabertas, seremos forçados a parar de cozinhar.”
Troca de acusações
A ONU classificou o bloqueio israelense como “uma punição coletiva cruel” contra a população civil.
Tom Fletcher, diretor humanitário da ONU e ex-diplomata britânico, afirmou que o direito internacional é inequívoco.
“Como potência ocupante, Israel deve permitir o ingresso de ajuda humanitária… A ajuda, e as vidas civis que ela salva, jamais deveriam ser usadas como moeda de troca.”
A reportagem levou esse ponto a Boaz Bismuth, parlamentar do partido Likud e aliado do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Ele nega que haja uma crise humanitária provocada pelo bloqueio.
“Há comida em Gaza… Israel não imporia uma restrição dessas se a população não tivesse acesso a alimentos. Conheço meu país perfeitamente bem”, declarou.
Confrontado com relatos e imagens de crianças passando fome, Bismuth insistiu:
“Não há crianças famintas. Repito: não há.” Disse ainda que as denúncias feitas meses atrás sobre fome, limpeza étnica e genocídio em Gaza “eram uma besteira”.
“Nada mudou, porque somos Israel, e obedecemos não só ao direito internacional, mas também ao direito humanitário.”
“O que queremos é o retorno dos nossos reféns e o fim do Hamas em Gaza. A guerra pode acabar em exatamente 30 segundos.”
Israel acusa o Hamas de desviar a ajuda humanitária — uma acusação negada pelo grupo.
O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, com sede na Cisjordânia ocupada, afirmou recentemente que a maior parte dos saques está sendo cometida por gangues ligadas ao Hamas.
Ele também chamou o grupo de “filhos de cães” e exigiu a libertação dos reféns israelenses. O Hamas respondeu dizendo que Abbas “insiste em culpar de forma suspeita os crimes da ocupação [Israel] e sua agressão contínua contra nosso povo”.
Sem acesso à Faixa de Gaza para reportagens independentes, é difícil verificar os eventos em curso.
Gangues criminosas armadas foram fortemente implicadas nos saques. O Hamas ameaça com violência aqueles que acusa de roubo.
Duas pessoas foram baleadas do lado de fora de um depósito da Unrwa, mas não está claro quem atirou. Um ativista local presente no local culpou o Hamas.
“O Hamas está estocando comida, privando a população faminta, e vendendo os alimentos a preços altíssimos. A população protestou, exigiu que os mantimentos fossem distribuídos — ou tomariam à força. O Hamas respondeu com tiros contra os famintos”, afirmou Moumen al-Natour, advogado e líder dos protestos.
Tudo isso ocorre no contexto de uma fome crescente e do colapso da ordem social causado pela guerra e pelo bloqueio.
O gabinete israelense aprovou a intensificação da ofensiva militar em Gaza, alegando que o objetivo é destruir o Hamas — uma meta que tem se mostrado inatingível ao longo dos últimos 19 meses de guerra.
Há relatos de que Israel planeja utilizar empresas de segurança privada para supervisionar a distribuição de ajuda em Gaza, embora nenhuma data oficial tenha sido divulgada.
A ONU e as principais agências humanitárias afirmaram que esse plano representa uma politização da ajuda e já avisaram que se recusam a colaborar com ele.
Com colaboração de Alice Doyard e Nik Millard