Fraude do INSS é culpa do governo Lula ou do governo Bolsonaro? O que é fato na batalha de versões
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- Author, Mariana Schreiber
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
A revelação de uma fraude bilionária no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), que pode ter roubado centenas de milhares de aposentados por meio de descontos não autorizados em seus benefícios, criou uma guerra de narrativas entre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e a oposição bolsonarista.
Cada lado acusa o outro de responsabilidade pelo esquema de corrupção, revelado após investigação conjunta da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal (PF).
A suspeita é de que sindicatos e associações de aposentados conseguiam, por meio de convênios com o INSS, descontar mensalidades de aposentados e pensionistas sem autorização.
Não há informação sobre quanto de fato foi desviado. A CGU divulgou que, de 2019 a 2024, descontos em benefícios realizados por sindicatos e associações somaram R$ 6,3 bilhões, mas nem tudo foi de forma não autorizada.
Cerca de 60% desse valor foi descontado nos dois últimos anos, já no governo Lula, quando as contribuições associativas dispararam.
Apesar de a CGU ter destacado o valor descontado entre 2019 e 2024, ainda não está claro quando os desvios começaram.
Investigações passadas do Ministério Público já apuraram descontos indevidos em 2018 e 2019, ainda nos governos de Michel Temer (MDB) e de Jair Bolsonaro (PL), mas em escala menor do que a observada na fraude revelada agora.
O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Luís Lopes Martins, especialista em direito previdenciário, ressalta que os descontos associativos são um instrumento lícito, mas que “começou a ser deturpados em algum momento”.
Esses descontos ocorrem de maneira legal quando os aposentados aceitam se associar a alguma instituição em troca de benefícios, como serviços médicos e atividades de lazer.
Mas, segundo as investigações, tanto associações reais como instituições de fachada criadas há pouco tempo passaram a incluir entre seus associados milhares de aposentados sem seu consentimento.
Segundo Lopes Martins, esse tipo de fraude leva um tempo para amadurecer, de modo que o forte crescimento dos desvios em 2023 pode ser um desdobramento de ações anteriores.
“Parece que de fato, num primeiro momento, se abriu uma janela para um novo formato de fraude e houve um amadurecimento e exploração da fraude nesses últimos tempos”, afirma.
Na guerra de narrativas, autoridades da gestão petista e parlamentares governistas enfatizam que, segundo a CGU e a PF, o esquema teve início em anos anteriores ao mandato de Lula (2023-2026) e argumentam que apenas no atual governo o esquema foi investigado e interrompido.
“O esquema que visava fraudar o INSS foi implementado durante o governo Bolsonaro. A maioria das entidades suspeitas surgiu entre os governos Temer e Bolsonaro. A única gestão que topou investigar e desmantelou a rede foi a do presidente Lula. Entendeu ou quer que eu desenhe?”, postou o senador Humberto Costa (PT-PE) na rede social X.
Em suas falas, o lado petista deixa de citar que o volume desviado cresceu fortemente a partir de 2023 e que a diretoria do INSS deixou de adotar medidas efetivas para interromper os descontos, segundo a própria CGU.
Já parlamentares ligados a Bolsonaro buscam associar o escândalo apenas à gestão Lula e já protocolaram na Câmara de Deputados um pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o esquema. Sua instalação, porém, depende do aval do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB).
O que a oposição não aponta é que, segundo a CGU, a maioria das instituições suspeitas de envolvimento no esquema foram autorizadas a aplicar os descontos nas aposentadorias em convênios realizados com o INSS no governo anterior.
Por outro lado, bolsonaristas destacam o fato de uma das instituições suspeitas, o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi), ter como vice-presidente o irmão de Lula, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, embora ele não tenha sido alvo da operação da PF.
O Sindnapi nega qualquer ilegalidade e diz que denunciou ao ministro da Previdência Social, Carlos Lupi (PDT), os indícios de ilegalidade nos descontos associativos em junho de 2023, durante reunião do Conselho Nacional da Previdência Social.
Ata do encontro obtida pelo Jornal Nacional confirma que a denúncia foi feita pela então conselheira Tonia Galleti, coordenadora do Departamento Jurídico do Sindnapi.
Questionado sobre essa denúncia pelo jornal O Globo, Lupi disse que, como a conselheira, outras pessoas também o avisaram sobre a existência de denúncias, mas era preciso ter “fatos concretos para serem investigados”.
Após a operação da PF, Lula demitiu o presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, que estava no cargo por escolha de Lupi. O presidente está sendo pressionado a demitir o próprio ministro, mas teme perder apoio do PDT no Congresso.
Em nota enviada ao portal UOL por seus advogados, Stefanutto negou as acusações e disse que tomou providências contra os descontos ilegais.
“A defesa de Stefanutto segue confiante que, ao final da investigação, a verdade dos fatos será restabelecida e a inocência do ex-presidente será confirmada”.
Entenda melhor a seguir como o esquema teria funcionado durantes os governos de Bolsonaro e Lula.
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Maioria das entidades suspeitas iniciou descontos no governo Bolsonaro
A operação da Polícia Federal autorizada pela Justiça mirou parte dos sindicatos e associações que têm Acordos de Cooperação Técnica (ACT) com o INSS para desconto automático de suas mensalidades.
Essas instituições costumam oferecer serviços a aposentados e pensionistas em troca desse pagamento. O problema é que a maior parte dos descontos estaria sendo feita de forma ilegal, sem consentimento dos beneficiários.
Foram alvos da operação onze entidades suspeitas de integrar o esquema.
Segundo a CGU, quatro delas tem ACTs mais antigos: Contag (1994), Sindinapi/FS (2014), Ambec (2017) e Conafer (2017).
Outras cinco firmaram os acordos com o INSS em 2021 e 2022, no governo Bolsonaro: AAPB, AAPPS Universo, Unaspub, ABCB/Amar Brasil e CAAP.
E a última, AAPEN (anteriormente denominada ABSP), firmou seu ACT em 2023, primeiro ano do governo Lula.
As entidades investigadas negam terem cometido ilegalidades.
Valores descontados dispararam no governo Lula
Os indícios de fraude foram identificados pela CGU devido ao forte aumento de cobranças e reclamações, que começaram a subir em 2022 e depois saltaram fortemente a partir de 2023.
Segundo um relatório da controladoria produzido em setembro de 2024, mas divulgado apenas agora, o valor anual médio descontado pelas associações entre 2016 e 2021 ficou em R$ 523,8 milhões, sendo o maior valor desse período registrado em 2018 (R$ 617 milhões).
Em 2022, último ano do governo Bolsonaro, houve uma primeira alta mais expressiva, quando os descontos somaram R$ 706,2 milhões, aumento de 32% ante 2021 (R$ 536,3 milhões).
Depois disso, o crescimento se acelerou no governpo Lula, atingindo R$ 1,3 bilhão em 2023, aumento de 84%.
O relatório projetava que em 2024 os descontos chegariam a R$ 2,6 bilhões, dobrando em um ano.
“Acompanho essa área há mais de 30 anos. Sempre houve fraude no INSS, inclusive aquela famosa [do início dos anos 1990] liderada pela Jorgina de Freitas. O que chama atenção agora no relatório da CGU é o incremento estrondoso que houve nos valores debitados”, nota o advogado Washington Barbosa, especialista em Direito Previdenciário e mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas.
Esse aumento veio acompanhado de muitos pedidos de exclusão do desconto por beneficiários que diziam não ter autorizado esse pagamento. Essas queixas somaram 422 mil em 2023, segundo os dados do INSS analisados pela CGU.
E, no ano seguinte, esses pedidos já somavam 709 mil apenas no primeiro semestre.
Diante dos números, a CGU fez uma pesquisa com uma amostra de beneficiários do INSS em todo o país que estavam sofrendo os descontos.
“Dos 1.273 entrevistados, 1.242 (97,6%) informaram não ter autorizado o desconto, e 1.221 afirmaram não participar de associação (95,9%), o que revela que há uma grande probabilidade de os descontos estarem sendo feitos sem a autorização prévia dos beneficiários”, diz o relatório da CGU.
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Inércia do INSS x atuação da CGU e da PF
O relatório da CGU acusa o INSS de não tomar medidas eficazes para interromper os descontos legais.
O documento lembra que indícios de ilegalidades apurados pelo Ministério Público em descontos aplicados em 2018 e 2019 levaram à suspensão das mensalidades cobradas por quatro entidades em 2019: ABAMSP, CENTRAPE, ASBAPI, ANAPPS.
“Mesmo conhecendo essa situação, a existência de denúncias recorrentes acerca da realização de descontos associativos não autorizados pelos beneficiários, e a falta de capacidade operacional necessária para acompanhamento dos ACT, o INSS não implementou controles suficientes para mitigar os riscos de descontos indevidos, e seguiu assinando ACT após a suspensão ocorrida em 2019, com o crescimento significativo dos descontos a partir de julho de 2023”, diz o relatório da CGU.
Em nota ao portal UOL por sua defesa, Stefanutto diz que tomou providências contra a fraude.
“Entre as medidas adotadas estão a suspensão de NOVOS Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) firmados pelo órgão com entidades e associações, a determinação para que fossem exigidas assinatura eletrônica avançada e biometria para autorização de novos descontos e a implementação do sistema biométrico da Dataprev (PDMA) para garantir a segurança das averbações”, diz a nota.
Já PF reconhece que a direção do INSS chegou a suspender os descontos de todas as entidades em maio de 2024, até que fosse desenvolvido um procedimento mais seguro para esses pagamentos. No entanto, aponta a investigação, a própria direção flexibilizou a decisão e voltou a autorizar os descontos em junho, antes que o novo procedimento fosse adotado.
Após as investigações da CGU e da PF, a Justiça Federal do Distrito Federal determinou o afastamento de Stefanutto e mais quatro servidores do alto escalão do INSS.
“No mínimo, houve negligência [da direção do INSS], quer seja ela culposa, sem a intenção [de favorecer a fraude], quer seja ela dolosa, com a intenção de realmente não tomar nenhuma medida”, avalia o advogado Washington Barbosa, especialista em Direito Previdenciário.
O relatório da Polícia Federal com detalhes das acusações continua em sigilo.
Segundo o jornal Estado de S.Paulo, que teve acesso ao documento, ex-servidores do alto escalão do INSS receberam mais de R$ 17 milhões de intermediários das associações suspeitas de aplicar os descontos ilegais.