Morre papa Francisco: a imagem do pontífice rezando em praça vazia que marcou a pandemia
Crédito, Guglielmo Mangiapane/Reuters
- Author, Daniel Lisboa
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
-
No dia 27 de março de 2020, o fotógrafo italiano Guglielmo Mangiapane enfrentou o frio para se espremer com sua câmera junto à cerca que separa o Vaticano da Itália. O silêncio era tamanho que, de acordo com ele, tudo o que se podia escutar era o som da chuva. E a lamúria das gaivotas.
Ele tinha a missão de registrar um momento único na história do Vaticano: o papa orando sozinho diante de uma imensa e totalmente vazia Praça de São Pedro.
Naquele final de março, a pandemia de covid-19 já assolava a Itália e começava a se espalhar pelo mundo.
Em um gesto absolutamente inédito, o papa Francisco deu a benção Urbi et Orbi (à cidade e ao mundo) aos cerca de 1,3 bilhão de fiéis católicos que, confinados em suas casas, enfrentavam o medo, a ansiedade e a perda de entes queridos.
A imagem do papa Francisco orando sozinho, em um cenário escuro e algo desolador, foi um dos momentos mais marcantes do seu papado.
Para muitos, talvez tenha sido o mais emblemático deles. E Mangiapane, que trabalha para a agência Reuters, foi um dos responsáveis por eternizá-lo.
“Nós começamos a planejar a cobertura do evento assim que recebemos a notícia de que o papa daria uma benção Urbi et Orbi especial pelo fim da pandemia”, conta o fotógrafo.
“A praça estava quase completamente vazia a não ser por alguns gendarmes [guardas] do Vaticano e outros profissionais da imprensa. Como eu não podia entrar na Praça de São Pedro, tentei chegar o mais próximo possível da cerca e me movimentei para evitar alguns postes de luz que bloqueavam a visão.”
Crédito, AFP
Por meio dela, o papa concede a indulgência plenária, ou seja, o perdão dos pecados, aos fiéis católicos.
Na oração celebrada durante a pandemia, entre diversas outras mensagens, o papa falou em “um mundo doente” e lembrou das pessoas que, naquele momento, estavam se dedicando a cuidar dos enfermos.
“É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros”, disse então o sumo pontífice.
Para além da força da força do discurso e do registro imagético de um momento inédito, a aparição solitária do papa esteve carregada de muito simbolismo.
São detalhes que talvez passem despercebidos por um leigo, mas não por quem estuda o catolicismo e o Vaticano.
Crédito, Reprodução/LinkedIn
“É uma cena bastante forte porque o próprio papa usou o fato de estar chovendo para fazer uma relação com o Evangelho de Marcos, capítulo 4, versículo 35, onde Jesus está acalmando a tempestade. Ele [o papa] escolhe essa passagem para reforçar a ideia de que, em meio à tempestade, Cristo está presente”, diz João Cláudio Rufino, professor na faculdade de teologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
“E uma das frases que ele usa naquele dia é justamente’abraçar o Senhor é abraçar esperança’. Isso quando o mundo estava impactado por tudo aquilo o que estávamos vivendo, com muitas pessoas perdendo o sentido da vida, perdendo a esperança”, observa o especialista.
João Cláudio chama atenção também para os diversos símbolos que compuseram a emblemática cena.
“É importante destacar também a simbologia que a Igreja evocou naquele momento. Colocando, por exemplo, o crucifixo de São Marcelo”, diz o professor.
“Isso foi bem significativo, porque esse crucifixo é entendido como um objeto milagroso na fé católica. Em 1522, ele foi carregado pelas ruas de Roma quando uma peste estava acabando com a cidade. É uma imagem que evoca esperança. Que aquilo foi superado e estamos aqui, na continuidade da história.”
Crédito, Divulgação/Vaticano
O professor explica também sobre outro símbolo presente na Praça de São Pedro naquele dia, o ícone de Maria Salus Populi Romani (em português, ‘Protetora do Povo Romano’).
“É um dos ícones mais venerados em Roma e utilizado para orações contra pestes e crises”, diz João Cláudio.
Crédito, Domínio público
Doutor em sociologia e autor de um mestrado sobre a Igreja Católica, Renan William dos Santos também ajuda a revelar interpretações ocultas para os leigos.
Ele aponta, por exemplo, para o paralelismo entre a imagem do papa orando sozinho na praça e outras figuras religiosas presentes nas narrativas bíblicas.
“Se você parar para pensar, o fiel cresceu escutando histórias de indivíduos que são iluminados por Deus e enfrentam as provações em solidão”, diz Santos.
“Mesmo estando em um estado de sofrimento, ele está pensando no próximo, está pensando em salvar o mundo. É a noção da solidão e do sacrifício como forças que nos ferem, mas que também estão nos elevando naquele momento. Isso gera uma conexão emocional com quem está assistindo”, acrescenta o sociólogo.
O estudioso acredita que o papa Francisco era a figura ideal para estar ali naquele momento.
“Principalmente pelo carisma dele, que foi um dos principais ativos que o colocou no cargo”, explica. “Francisco tinha um perfil mais pastoral, que se contrapõe ao perfil mais teológico”.
Em linhas gerais, o que Santos quer dizer é que Francisco tinha um perfil mais “pés no chão”, de um papa que “vai até o povo”, diferentemente de um papa mais burocrata ou intelectual.
“Nas ciências humanas, seria a diferença entre o filósofo de gabinete e o antropólogo que vai ao campo”, brinca o estudioso.
Ele acredita que o papa Bento 16, por exemplo, não teria a mesma preocupação com a comunicação visual que Francisco.
Crédito, Getty Images
Santos avalia que, em termos de imagem, talvez apenas a do atentado contra o papa João Paulo 2º em 1981 tenha uma força equivalente.
“Mas, mesmo assim, foi diferente”, diz o doutor em sociologia.
“O papa Francisco apareceu como uma liderança que poderia dar essa sensação de esperança para quem estava amedrontado em casa. Ele estava oferecendo um acolhimento muito diferente daquele que estava sendo oferecido, de forma bastante inefetiva, pelas esferas seculares”, acredita o especialista.