Algoritmo da polícia classificou Lina como ‘risco médio’ para feminicídio. Depois, ela foi morta
Crédito, Arquivo pessoal
- Author, Linda Pressly e Esperanza Escribano
- Role, BBC News
Em janeiro, Lina procurou a polícia.
Seu ex-companheiro vinha ameaçando-a em casa, na cidade costeira de Benalmádena, no sul da Espanha. Naquele dia, ele teria levantado a mão como se fosse agredi-la.
“Houve episódios violentos — ela estava com medo”, lembra o primo de Lina, Daniel.
Ao chegar à delegacia, ela foi entrevistada e seu caso foi registrado no VioGén, uma ferramenta digital que avalia a probabilidade de uma mulher voltar a ser atacada pelo mesmo agressor.
O VioGén — um sistema baseado em algoritmo — faz 35 perguntas sobre os abusos e sua intensidade, o acesso do agressor a armas, sua saúde mental e se a mulher saiu ou está pensando em sair do relacionamento.
Depois, classifica o risco que ela corre como “desprezível”, “baixo”, “médio”, “alto” ou “extremo”.
Essa categoria é usada para orientar decisões sobre a alocação de recursos policiais para proteger a mulher.
Lina foi classificada como “risco médio”.
Ela pediu uma medida protetiva em um tribunal especializado em violência de gênero, em Málaga, para que o ex-companheiro não pudesse entrar em contato com ela ou dividir o mesmo espaço. O pedido foi negado.
“Lina queria trocar as fechaduras de casa para poder viver em paz com os filhos”, conta o primo.
Três semanas depois, ela estava morta. O ex-companheiro teria usado sua chave para entrar no apartamento, e pouco depois a casa estava em chamas.
Enquanto os filhos, a mãe de Lina e o ex-companheiro conseguiram escapar, Lina não. Segundo amplamente noticiado, o filho de 11 anos teria dito à polícia que foi o pai quem matou a mãe.
O corpo sem vida de Lina foi encontrado no interior carbonizado da casa. O ex-companheiro, pai de seus três filhos mais novos, foi preso.
Agora, a morte de Lina levanta dúvidas sobre o VioGén e sua capacidade de proteger mulheres na Espanha.
O VioGén não previu com precisão o risco que Lina corria.
Como mulher classificada como “risco médio”, o protocolo previa que ela fosse contatada novamente por um policial responsável no prazo de 30 dias.
Mas Lina morreu antes disso. Se ela tivesse sido considerada “risco alto”, o acompanhamento policial teria ocorrido em até uma semana. Isso poderia ter feito diferença?
Ferramentas de avaliação de risco de violência doméstica reincidente são usadas na América do Norte e em toda a Europa. No Reino Unido, algumas forças policiais usam o DARA (Avaliação de Risco de Abuso Doméstico) — essencialmente uma lista de verificação. E o DASH (Avaliação de Abuso Doméstico, Perseguição, Assédio e Violência por Honra) pode ser usado por policiais ou outros profissionais, como assistentes sociais, para medir o risco de um novo ataque.
Mas só na Espanha um algoritmo está tão entrelaçado com a prática policial. O VioGén foi desenvolvido por policiais e acadêmicos espanhóis. É usado em todo o país, exceto no País Basco e na Catalunha (essas regiões têm sistemas próprios, embora haja cooperação nacional entre as forças de segurança).
A chefe da unidade da Polícia Nacional dedicada à família e à mulher em Málaga, inspetora-chefe Isabel Espejo, descreve o VioGén como “superimportante”.
“Ele nos ajuda a acompanhar cada caso com muita precisão”, afirma.
Seus agentes lidam com uma média de 10 denúncias de violência de gênero por dia. E, a cada mês, o VioGén classifica entre nove e dez mulheres como estando sob “risco extremo” de reincidência.
Nesses casos, os recursos necessários são imensos: proteção policial 24 horas por dia até que as circunstâncias mudem e o risco diminua. Mulheres avaliadas como “risco alto” também podem ter escolta policial.
Um estudo de 2014 mostrou que os agentes aceitaram a avaliação do VioGén em 95% das vezes. Críticos dizem que a polícia estaria abrindo mão de tomar decisões sobre a segurança das mulheres e delegando isso ao algoritmo.
A inspetora-chefe Espejo afirma que a estimativa de risco feita pelo algoritmo costuma ser adequada. Mas reconhece — mesmo que o caso de Lina não estivesse sob sua jurisdição — que algo falhou na avaliação.
“Não vou dizer que o VioGén não falha — ele falha. Mas isso não foi o que provocou o assassinato dessa mulher. O único culpado é quem matou Lina. Segurança total não existe”, diz.
Mas, como risco “médio”, Lina nunca foi prioridade para a polícia. E será que essa avaliação influenciou a decisão judicial de negar a medida protetiva?
As autoridades judiciais não autorizaram nosso encontro com a juíza que negou a medida protetiva a Lina — uma mulher que sofreu ataques nas redes sociais após sua morte.
Em vez disso, outra juíza do tribunal de violência de gênero de Málaga, Maria del Carmen Gutiérrez, explicou em termos gerais que esse tipo de medida exige dois elementos: provas de um crime e a ameaça de um perigo grave à vítima.
“O VioGén é um dos elementos que uso para avaliar esse perigo, mas está longe de ser o único”, afirma.
Às vezes, segundo a juíza, ela concede medidas protetivas mesmo quando o VioGén classifica a mulher como risco “desprezível” ou “baixo”. Em outras ocasiões, conclui que não há perigo mesmo com risco “médio” ou “alto”.
O criminologista Juan José Medina, da Universidade de Sevilha, diz que há uma “loteria geográfica” para mulheres que pedem medidas protetivas na Espanha — alguns tribunais são muito mais propensos a concedê-las do que outros. Mas não se sabe, de forma sistemática, como o VioGén influencia os tribunais ou a polícia, porque faltam estudos.
“Como os agentes e outros profissionais estão usando essa ferramenta, e como ela informa as decisões que tomam? Não temos boas respostas para isso”, afirma.
O Ministério do Interior da Espanha raramente permite que acadêmicos tenham acesso aos dados do VioGén. E nunca houve uma auditoria independente do algoritmo.
Gemma Galdon, fundadora da Eticas — uma organização que atua nos impactos sociais e éticos da tecnologia — diz que, sem auditoria, não é possível saber se o sistema realmente está protegendo as mulheres certas.
Casos de viés algorítmico são bem documentados. Nos EUA, uma análise de 2016 sobre uma ferramenta de previsão de reincidência criminal mostrou que réus negros eram mais propensos do que brancos a serem classificados erroneamente como de alto risco. Ao mesmo tempo, réus brancos tinham mais chances de serem apontados, equivocadamente, como de baixo risco.
Em 2018, o Ministério do Interior da Espanha não autorizou uma proposta da Eticas para fazer uma auditoria interna confidencial e gratuita. Então, Gemma Galdon e sua equipe decidiram realizar uma auditoria externa, por engenharia reversa.
Fizeram entrevistas com mulheres sobreviventes de violência doméstica e usaram informações públicas — inclusive dados do Judiciário sobre mulheres que, como Lina, foram assassinadas.
Descobriram que, entre 2003 e 2021, 71 mulheres assassinadas por parceiros ou ex-parceiros haviam denunciado violência à polícia. Dessas, as que estavam registradas no sistema VioGén foram classificadas como risco “desprezível” ou “médio”.
“O que queremos saber é: esses erros são inevitáveis? Ou seria possível melhorar a forma como os sistemas classificam o risco e, assim, proteger melhor essas mulheres?”, questiona Galdon.
Chefe da pesquisa sobre violência de gênero no Ministério do Interior espanhol, Juan José López-Ossorio descarta a investigação da Eticas: ela não foi feita com os dados do VioGén. “Se você não tem acesso aos dados, como pode interpretá-los?”, questiona.
Ele também se diz reticente quanto a uma auditoria externa, temendo que comprometa tanto a segurança das mulheres registradas quanto os procedimentos do VioGén.
“O que sabemos é que, uma vez que a mulher denuncia e recebe proteção policial, a probabilidade de violência cair é muito grande — não temos dúvidas disso”, afirma López-Ossorio.
Desde que foi implementado, o VioGén passou por mudanças. O questionário foi aprimorado, e a categoria “desprezível” será em breve extinta. Mesmo os críticos concordam que faz sentido haver um sistema padronizado de resposta à violência de gênero.
Em Benalmádena, a casa de Lina virou um memorial.
Flores, velas e imagens de santos foram deixadas na entrada. Um pequeno cartaz colado à parede dizia: Benalmádena diz não à violência de gênero. A comunidade organizou uma vaquinha para ajudar os filhos de Lina.
O primo de Lina, Daniel, conta que todos continuam abalados com a notícia de sua morte.
“A família está destruída — especialmente a mãe de Lina”, diz.
“Ela tem 82 anos. Não acho que exista nada mais triste do que ver sua filha ser assassinada por um agressor, de uma forma que poderia ter sido evitada. As crianças ainda estão em choque — vão precisar de muita ajuda psicológica.”