Bolsonaro ‘forçou a barra’ e Moraes ‘precisava reagir’: a visão de dois juristas sobre a prisão domiciliar
Crédito, Reuters
-
- Author, Rute Pina
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
A decisão é um agravamento das medidas cautelares já impostas em julho pelo ministro. Para Moraes, Bolsonaro descumpriu de forma deliberada ordens judiciais — especialmente a proibição de uso de redes sociais e a tentativa de interferir no curso das investigações.
Em 17 de julho, Moraes impôs uma série de medidas cautelares ao ex-presidente, entre elas o uso de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e proibição de usar redes sociais, direta ou indiretamente.
Quatro dias depois, em 21 de julho, a Primeira Turma do STF referendou a decisão e reforçou que a proibição de uso das redes se estendia também à veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em perfis de terceiros.
Moraes esclareceu que entrevistas e discursos públicos usados como “material pré-fabricado” para alimentar redes sociais por meio de aliados também seriam considerados descumprimento da ordem judicial.
Neste domingo (3/8), o ex-presidente apareceu por meio de uma ligação de vídeo no celular do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) nas manifestações de apoiadores em São Paulo, e depois em um vídeo na rede social de um dos filhos, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
“A participação dissimulada de Jair Messias Bolsonaro, preparando material pré-fabricado para divulgação nas manifestações e redes sociais, demonstrou claramente que manteve a conduta ilícita de tentar coagir o Supremo Tribunal Federal e obstruir a Justiça, em flagrante desrespeito as medidas cautelares anteriormente impostas”, escreveu o ministro.
O ex-presidente é investigado por supostos crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação de organização criminosa e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
A Polícia Federal já havia pedido medidas cautelares contra Bolsonaro no âmbito da mesma investigação que envolve o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Crédito, REUTERS/Pilar Olivares
O que motivou a prisão domiciliar
Segundo Moraes, Bolsonaro ignorou as medidas impostas pelo STF.
A fundamentação para a decretação da prisão domiciliar está no “reiterado descumprimento” das restrições impostas, especialmente a proibição de uso de redes sociais, e na “instrumentalização” de terceiros para burlar essas determinações.
Moraes cita a partipação “dissimulada” do ex-presidente em manifestação no Rio, quando Bolsonaro saudou por telefone os participantes de um ato em Copacabana.
Durante o evento, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, colocou o pai no viva-voz e publicou o vídeo no Instagram. A postagem foi apagada.
Na chamada, o ex-presidente disse: “obrigado a todos. É pela nossa liberdade, nosso futuro, nosso Brasil. Sempre estaremos juntos”.
De acordo com Moraes, a fala foi uma tentativa deliberada de produzir material para mobilizar apoiadores contra o STF e obstruir a Justiça. O ministro classificou o gesto como “simulação” voltada à coação institucional.
“Não seria lógico e razoável permitir a utilização do mesmo modus operandi criminoso com diversas postagens nas redes sociais de terceiros, em especial por ‘milícias digitais’ e apoiadores políticos previamente coordenados para a divulgação das condutas ilícitas”, afirma o magistrado na decisão.
Para ele, isso demonstrou uma tentativa de driblar as restrições judiciais por meio de apoiadores e de estruturas organizadas que ele chama de “milícias digitais”.
Crédito, REUTERS/Adriano Machado
Outro argumento foi a tentativa de pressão internacional.
Segundo o magistrado, Bolsonaro continua instrumentalizando entrevistas e discursos públicos, que são posteriormente usados por terceiros nas redes sociais.
É uma estratégia para coagir o STF e induzir chefes de Estado estrangeiros a interferir nas decisões do Judiciário brasileiro — o que o ministro classificou como “flagrante atentado à soberania nacional”.
Moraes destacou que Bolsonaro reincidiu nas práticas investigadas, ignorando por mais de uma vez as ordens da Corte.
“A Justiça é igual para todos. O réu que descumpre deliberadamente as medidas cautelares — pela segunda vez — deve sofrer as consequências legais”, escreveu.
Além da prisão domiciliar, o STF estabeleceu:
- Proibição de receber visitas, exceto de advogados e pessoas previamente autorizadas pelo STF;
- Proibição de uso de celular, inclusive para tirar fotos ou fazer gravações;
- Manutenção da proibição de contatos com embaixadores, autoridades estrangeiras e demais investigados;
- Manutenção da proibição de uso de redes sociais, direta ou indiretamente.
A decisão adverte que o descumprimento das regras da prisão domiciliar levará à decretação da prisão preventiva.
O que dizem advogados sobre prisão de Bolsonaro
A decisão de Alexandre de Moraes que proibiu Bolsonaro de usar as redes sociais, ainda que por meio de terceiros, dividiram juristas quanto à sua constitucionalidade.
O advogado criminalista Davi Tangerino, professor de Direito Penal da UERJ, discorda da medida cautelar imposta em julho, que, segundo ele, pode configurar censura prévia. Mas ele avalia que a decisão desta segunda-feira (4/8), que decretou a prisão domiciliar do ex-presidente, é coerente.
“É um imbróglio entender os limites do que estava sendo proibido e permitido ali. Mas a cautelar foi dada, foi validada e foi claramente descumprida”, afirma.
Segundo Tangerino, Bolsonaro usou terceiros para burlar a proibição imposta — o que ficou evidente, diz ele, na participação remota do ex-presidente no ato em Copacabana.
“Usar outros como subterfúgio para usar a própria rede social, que foi exatamente o que ele fez, está claramente desenhado e proibido. Moraes precisava reagir. Ele não podia ficar desautorizado dessa forma.”
Tangerino também considera que Moraes foi “hábil” ao decretar a prisão domiciliar, em vez da preventiva, que implicaria cumprimento da medida no presídio da Papuda. “Ele encontrou ainda um último recurso antes da preventiva, que é a domiciliar.”
Na avaliação do advogado, Bolsonaro já havia dado motivos para ser preso preventivamente no episódio da visita à embaixada da Hungria, em março de 2024.
“Na minha cabeça, Moraes quer prender quando houver uma sentença condenatória de verdade. Agora, Bolsonaro está forçando a barra. Acho que a domiciliar é uma última chance para evitar a preventiva. Sinceramente, acho que Moraes nunca quis decretar a preventiva.”
O professor da FGV Direito Rio Thiago Bottino também criticou a falta de previsão legal para a proibição de uso das redes sociais imposta a Bolsonaro.
Ele lembra que o Artigo 319 do Código de Processo Penal lista dez medidas cautelares alternativas à prisão, e essa não está entre elas. No entanto, a decisão desta segunda, diz o advogado, é compreensível.
“Continuo sendo crítico do ponto de vista formal, pois não há previsão expressa para algumas das medidas decretadas. Porém, essa matéria foi submetida ao colegiado, foi referendada por maioria e também foi objeto de embargos — e foi mantida. Nesse sentido, goste eu ou não, ela deve ser observada, porque assim funciona o sistema judiciário de qualquer país”, afirma.
Bottino, no entanto, entende o argumento do relator: a proibição faria sentido porque os crimes atribuídos ao ex-presidente foram cometidos justamente por meio das redes sociais. “Mal comparando, seria como proibir alguém que tem porte de arma de andar armado porque estava ameaçando pessoas.”
Ele também esclarece que a prisão domiciliar já traz, por si só, restrições como a proibição de visitas e o uso de celular.
“Sempre foi aplicada dessa forma, porque a diferença entre ela e a prisão preventiva é apenas o local de cumprimento: em vez de cela, a casa do réu.”
Para garantir o cumprimento das medidas, além da tornozeleira eletrônica, policiais fiscalizam a proibição de acesso ao preso.
É possível recorrer da decisão?
A decisão desta segunda-feira não precisa, necessariamente, ser referendada por um colegiado do STF — assim como a anterior também não precisava.
“As medidas de gestão do processo cabem ao relator. Já as decisões de mérito, como o recebimento da denúncia e o julgamento, são do colegiado. A turma não precisa se manifestar sobre tudo”, afirma Bottino.
Ainda assim, ele acredita que Moraes deve submeter o caso à Primeira Turma do Supremo, como já fez anteriormente.
“Houve várias decisões, até polêmicas, que ele tomou sozinho e não mandou para a turma, como proibir o réu de usar uma roupa específica para depor. Mas acho que, pela repercussão, ele agiu bem ao levar essa à turma. Tecnicamente, cabe ao relator decidir monocraticamente, mas não é um problema a turma decidir.”
O advogado acrescenta: “Como agora é uma nova decisão, se ele seguir o mesmo padrão, vai mandar para a turma. Até porque — é só uma hipótese — os ministros podem discordar e decretar uma prisão preventiva, por exemplo.”
Tangerino afirma que há espaço para a defesa de Bolsonaro pedir revisão da decisão.
“As cautelares são provisórias por natureza. Podem ser revistas a qualquer tempo. A defesa pode argumentar, por exemplo, que não entendeu claramente que aquilo era proibido, que ele só saudou a turma de Copacabana. Mas acho que esse argumento não se sustenta. Quando se diz que não pode usar rede social, não pode, ponto.”
Segundo ele, a partir de agora, Bolsonaro está tecnicamente cumprindo pena. Se passar um ano em prisão domiciliar, esse tempo poderá ser contabilizado em uma eventual sentença condenatória.
Os advogados de Bolsonaro afirmaram que vão apresentar o recurso cabível. Em nota, a defesa afirmou que se viu “surpreendida” com a decretação de prisão domiciliar.
“Cabe lembrar que na última decisão constou expressamente que ‘em momento algum Jair Messias Bolsonaro foi proibido de conceder entrevistas ou proferir discursos em eventos públicos’. Ele seguiu rigorosamente essa determinação”, disseram os advogados.
“A frase ‘Boa tarde, Copacabana. Boa tarde meu Brasil. Um abraço a todos. É pela nossa liberdade. Estamos juntos’ não pode ser compreendida como descumprimento de medida cautelar, nem como ato criminoso”, finalizaram.