José Fernandes: o influenciador que virou ‘namorado’ de idosas no TikTok e gerou alerta entre famílias
Crédito, Reprodução/TikTok
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- Author, Isabella Vilchez
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
De chapéu de caubói, camisa aberta e corrente de prata, José Fernandes olha pra câmera. É possível ver o chão de terra no fundo do vídeo e ouvir galinhas cacarejando.
“Eu tô falando de você, minha preciosa. Eu tenho muito orgulho de você, que tem um sorriso encantador. Deus está cuidando de você.”
Em outro vídeo, ele diz que já está na cidade da “coroa que está do outro lado da tela” e que vai visitá-la em breve. Para isso, só basta que ela “clique na setinha”, referência ao botão de compartilhamento do TikTok.
Esse é o roteiro básico dos vídeos compartilhados pelo influenciador, que já conta com mais de 700 mil seguidores no TikTok e quase 1 milhão no Kwai.
José Fernandes produz conteúdos com teor romântico, fazendo juras de amor e promessas às seguidoras. Não há qualquer ilegalidade nas postagens — e, em vídeos recentes, ele disse que é apenas “um personagem” e não está à procura de relacionamentos amorosos.
Mas, nas últimas semanas, o influenciador esteve no centro de uma polêmica, impulsionada principalmente por relatos de familiares que viram suas avós, tias ou mães ficarem “viciadas” nos seus conteúdos e que acreditam que ele estaria explorando pessoas vulneráveis.
Muitas idosas parecem acreditar que vivem um romance virtual com José Fernandes, como indicam os comentários nos vídeos do influenciador.
Crédito, Reprodução/TikTok
Geralmente feitos por mulheres que aparentam ter mais de 60 anos, esses comentários revelam o envolvimento emocional das seguidoras do influenciador.
Muitas desejam boa noite, fazem elogios e agradecem o carinho, como se estivessem respondendo a uma conversa privada ou a uma ligação por vídeo. Outras vão além: compartilham informações pessoais, como telefone e endereço, na esperança de um contato direto com José Fernandes.
Ao longo de um mês e meio, a BBC News Brasil analisou publicações do influenciador, acompanhou as polêmicas envolvendo ele e leu comentários de dezenas de mulheres. A reportagem também ouviu as famílias de algumas delas.
Os relatos vão de mulheres que acreditam estar em um relacionamento à distância com José Fernandes e mudam sua rotina em função disso — trocando de roupa para esperá-lo, deixando de se alimentar ou de tomar remédios — a casos de familiares que precisaram intervir, bloquear perfis ou limitar o uso do celular.
Em um dos casos, uma família contou ter sido alvo de um golpe envolvendo terceiros que usaram o nome de José Fernandes. A idosa perdeu cerca de R$ 1,5 mil e, segundo os parentes, foi exposta a riscos maiores, tanto físicos quanto patrimoniais, de acordo com os familiares.
O influenciador já fez um alerta nas suas redes sobre pessoas que tentam se passar por ele.
Especialistas afirmam que o compartilhamento público de dados sensíveis, como telefone e endereço, pode facilitar golpes direcionados.
Além disso, muitas idosas não percebem que estão se expondo — o que pode levar a frustrações quando a ilusão é quebrada, segundo os especialistas.
A BBC News Brasil enviou mensagens ao influenciador pelo TikTok e Instagram com pedidos de entrevista e perguntas sobre casos narrados nesta reportagem.
Ele foi questionado, entre outros pontos, sobre idosas em situação vulnerável que acreditam manter um relacionamento amoroso com ele e críticas de que, com seus vídeos, o influenciador estaria alimentando ilusões nessas mulheres.
Também sobre as mulheres que expõem dados pessoais nas postagens do influenciador, tornando-se sujeitas a golpes de terceiros que se passam por ele.
Mas José Fernandes não respondeu nenhuma das mensagens até a publicação desta reportagem.
‘Minha avó caiu em uma estratégia de marketing’
A história de José Fernandes ganhou repercussão após o relato da influenciadora Mafe Cabral, do Mato Grosso do Sul. Em um vídeo publicado no fim de maio, que já passa de 3 milhões de visualizações, ela narra a frustração da avó ao ficar alguns dias sem acesso ao celular — e, consequentemente, sem “conversar” com o influenciador.
Internada para tratar um problema de saúde, acompanhada por Mafe, a idosa ficou ansiosa e insistiu para usar o telefone da neta.
“Ela não parava de pedir meu celular pra falar com alguém na internet. Foi aí que eu percebi que esse alguém era o José Fernandes”, conta Mafe à BBC News Brasil.
Ela explicou à avó que se tratava de vídeos gravados e publicados nas redes sociais — e não de uma ligação feita diretamente para ela. A idosa ficou muito confusa e decepcionada, diz a neta.
“Ela precisa de andador, tem problemas no coração e quadros de demência por conta da idade. Não que não seja possível manter uma conversa, mas, às vezes, minha avó confunde algumas coisas e inventa algumas situações. Hoje, ela está em situação de vulnerabilidade e depende totalmente dos meus pais”, diz Mafe.
Crédito, Reprodução/TikTok
É a família que fica responsável pelos cuidados da idosa — sobretudo os financeiros.
Mesmo após a conversa com Mafe, ela continuou assistindo aos vídeos e acreditando que se tratava de uma chamada com ela. Para a influenciadora, a avó não foi vítima de um “golpe” amoroso, mas de uma estratégia de marketing.
“A minha avó acha que está conversando com ele, e ele ganha dinheiro com as visualizações e o engajamento”, diz Mafe.
“É óbvio que ele tem conhecimento disso: tem um monte de senhoras que não sabem o que estão fazendo nos comentários, que não têm consciência para lidar com aquela tecnologia. Elas todas perguntando: ‘quando é que a gente vai se encontrar?’, ‘por que eu não consigo falar contigo?’.”
Por produzir conteúdo original para as redes sociais, José Fernandes tem a possibilidade de monetizar seus vídeos. Esse é um mecanismo comum entre influenciadores, que usam o engajamento e as visualizações para gerar receita com suas publicações.
Thales Bertaglia, pesquisador da chamada creator economy (economia dos criadores de conteúdo nas redes sociais, em tradução livre) na Universidade Utrecht, na Holanda, explica que não há um único caminho para a monetização.
“Existe a monetização por meio da própria plataforma, quando a rede social paga ao influenciador pelo número de visualizações, como é o caso do YouTube e do TikTok. Nesse modelo, o retorno está ligado ao conteúdo produzido e à atenção que ele recebe do público”, explica Bertaglia.
“Mas, para a maioria dos criadores, o que mais gera retorno é a monetização externa. Por exemplo, parcerias com marcas, nas quais o influenciador é pago para divulgar um produto, ou recebe o item em si — os famosos ‘recebidos’.”
‘Luta’ pelas idosas
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Tia Marta, de 83 anos, achou que José Fernandes estava invadindo seu celular quando viu um vídeo dele pela primeira vez.
A idosa, que teve seu nome real preservado nesta reportagem, usava a plataforma do Kwai para ver uma receita quando uma gravação do influenciador apareceu na tela em seguida.
“Ô coroa, vim aqui pra te apresentar sua sogra”, dizia José Fernandes no vídeo, gravado ao lado de sua suposta mãe.
Marta, que é casada, se assustou e pediu ajuda para a sobrinha Jasmim Mendonça, de 31 anos, que tentou solucionar o problema e identificar o homem.
Durante um mês, Jasmim abria o celular com a tia ao seu lado enquanto deslizava a página “Para você” (que mostra vídeos selecionados pela plataforma para cada usuário), procurando pelo homem.
Até que, finalmente, José Fernandes apareceu na tela. Marta gritou: “É ele!”.
“Ela me disse: ‘Pior que eu estou gostando dele, por isso que falei para você achar’. Minha tia queria localizar ele, que eu achasse o número e o endereço dele. Eu neguei e expliquei várias vezes, até que ela ficou com raiva de mim e me bloqueou”, conta Jasmin.
Foi quando ela decidiu fazer vídeos expondo sua minha história e a de outras pessoas, para alertar outras famílias.
“Para ela, o José Fernandes é um novinho bonito que fala tudo que ela quer ouvir. Isso está adoecendo não só a minha tia, mas outras senhoras. Por isso, abri mão do meu engajamento e comecei uma luta pelos idosos”, diz Jasmim, que há três anos produz conteúdo de entretenimento em lives do TikTok.
“A gente tem que ter responsabilidade afetiva com quem está vendo nosso conteúdo. Ele deveria tirar essa ilusão do coração das senhoras.”
Em meio a várias cobranças nas redes sociais, José Fernandes publicou uma série de vídeos explicando que não passa de um personagem virtual.
“Estou vendo muitos relatos de perfis fakes criados em meu nome, entrando em contato com meus seguidores e pedindo algo [como dinheiro]. Não sou eu”, diz o influenciador em uma das publicações.
“Em nenhuma rede social eu entro em contato com meus seguidores. Vou falar de novo: sou um criador de conteúdo, sou um personagem, não estou à procura de relacionamento. Quero deixar bem claro aqui.”
Para a terapeuta ocupacional Renata Maria Silva Santos, que estudou a relação entre idosos e tempo de tela em seu pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais, o apego de mulheres idosas a influenciadores como José Fernandes pode ser reflexo da solidão, da falta de convivência familiar e da ausência de atividades que ofereçam propósito.
Ao assistirem com frequência aos vídeos de criadores que se comunicam diretamente com elas, essas mulheres passam a se sentir novamente vistas e ouvidas. Assim, o conteúdo acaba funcionando como um substituto para vínculos familiares ou sociais que foram se enfraquecendo, na visão da médica.
“A ausência de reconhecimento dentro da família e a falta de outras formas de pertencimento tornam esse tipo de conteúdo especialmente atrativo para algumas mulheres idosas”, explica.
‘Ele está vindo me visitar’
Quando ouviu a tia falar pela primeira vez sobre José Fernandes, a especialista de marketing Camile Peligrinelli, de 22 anos, não levou tão a sério. Maria Aparecida, também conhecida como Cida, de 78 anos, tinha começado a usar o TikTok para ouvir pregações de pastores.
Mas, pouco tempo depois, os vídeos da aba “Para você” começaram a mostrar algo diferente: conteúdos que a idosa acredita serem literalmente feitos sob medida para ela.
A BBC News Brasil conversou com Cida e sua sobrinha para ouvir, diretamente das duas, como se desenvolveu a “relação” da idosa com o influenciador e como a família está lidando com isso.
“No início, a gente explicou que era um personagem, mas não adiantava. Ela ficava muito brava, muito triste, mas logo vinha mostrar algum vídeo dele de novo”, diz Camile.
“Se alguém mandar uma mensagem pra ela, ela não vai saber responder. É só ela realmente conversando com o celular, como se estivesse realmente falando em uma ligação.”
Atendendo a um pedido da tia, Camile começou a gravar Cida mandando recados em vídeo para José Fernandes. Em uma das publicações mais recentes, a sobrinha conta à idosa que o influenciador é apenas um personagem — e grava sua reação.
No vídeo, que já ultrapassou 1,5 milhão de visualizações, a tia diz que achou a notícia “ruim”, mas entende que José Fernandes “precisou dizer isso para as outras mulheres não ficarem perturbando” — já que o influenciador, na verdade, estaria “doido” por Cida.
“Ela ainda acredita que, em algum momento, esse encontro vai acontecer. Ela diz: ‘ele está aqui na minha cidade’ e já aconteceu dela trocar de roupa e ficar esperando”, relata Camile.
Preocupada, a família tentou bloquear os perfis de José Fernandes no celular de Cida, na tentativa de reduzir a frequência com que os vídeos apareciam.
“A minha família conhece ele só pelo celular, mas quando a gente se encontrar mesmo pra ficar juntos, aí eu vou apresentar ele direito”, conta Cida à reportagem.
Para Cida, a conexão entre os dois vai além do TikTok. Ela realmente diz estar em um relacionamento com José Fernandes e afirma que são almas gêmeas, por terem histórias de vida parecidas.
Cida casou aos 55 anos e está viúva há 19. Usa aparelho auditivo e costuma assistir aos vídeos de José Fernandes no volume máximo, o que facilita para a família acompanhar as “conversas”.
‘Minha mãe perdeu R$ 1,5 mil’
A mãe do psicólogo Paulo Fernandes foi uma das mulheres que sofreram prejuízos financeiros por acreditar em fakes do influenciador.
Ela comentou seu endereço e telefone em um vídeo no qual José Fernandes dizia estar indo visitar a “coroa do outro lado da tela”.
O caso ligou um alerta no filho da idosa, que passa a maior parte do tempo longe de casa.
“Ela deixava dados sensíveis nos comentários. Em um vídeo, ele dizia: ‘estou na sua cidade, indo para sua casa’. Minha mãe ouviu isso e comentou: ‘Tá aqui meu endereço e meu número’.”
“Alguém pegou as informações, ligou se passando por ele e disse que ajudaria com questões financeiras”, diz o filho, acrescentando que a mãe perdeu R$ 1,5 mil no golpe.
A mãe de Paulo se afastou das vizinhas e já não compartilha o dia a dia com os filhos. Passa horas assistindo repetidamente aos vídeos do influenciador.
“Minha mãe era muito ativa, mas a partir do momento em que começou a ver esses vídeos, percebi que a questão social dela ficou muito mais rebaixada. Ela prefere estar no celular do que estar com as pessoas”, diz Paulo.
O pesquisador Thales Bertaglia chama a atenção para a pré-instalação de aplicativos como o TikTok, que “pode ser vista como uma forma de incentivo ao uso”.
Basta um clique no ícone para que o conteúdo comece a ser consumido — muitas vezes sem que o usuário sequer crie uma conta.
“Talvez essa senhora [mãe de Paulo] não tivesse vontade de ativamente ir lá, baixar o app e começar a usar. Mas só por já estar instalado, isso facilita muito”, diz Bertaglia.
No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados exige consentimento explícito e ativo acerca dos dados processados por um aplicativo. Mas, na visão do pesquisador, mesmo quando há a opção de não instalar um aplicativo assim que o aparelho é ligado pela primeira vez, ela não é clara.
O mecanismo por trás dos vídeos — e como isso afeta as idosas
Atualmente, José Fernandes mantém sua base de seguidores com vídeos curtos e lives esporádicas, nas quais dubla canções de sertanejo e testa filtros do TikTok.
Thales Bertaglia avalia que a principal fonte de renda do influenciador deve vir diretamente dos aplicativos.
“Ele solicita curtidas e comentários para aumentar o engajamento, o que não só eleva o número de visualizações — e, portanto, o valor que ele recebe — como também melhora a chance de seu conteúdo ser favorecido pelo algoritmo e alcançar mais pessoas”, explica.
O pesquisador estima que, no Brasil, um influenciador receba entre US$ 0,10 e US$ 0,20 por mil visualizações.
Nos vídeos de menor engajamento no TikTok, José Fernandes costuma ter entre 30 e 40 mil visualizações. Já em conteúdos mais populares, ele ultrapassa os 700 mil views, chegando até a ter batido 1 milhão em pelo menos três postagens.
“Além disso, no TikTok, ele também usa o recurso das lives, em que os seguidores podem enviar presentes virtuais com valores diferentes”, diz Bertaglia.
A influenciadora Jasmim Mendonça, que atualmente utiliza as lives do TikTok como fonte de renda, diz acreditar que Fernandes ganhe pelo menos R$ 10 mil por mês.
Bertaglia observa que ainda não existe uma regulamentação específica que busque a proteção de idosos na internet.
“Considero que o comportamento de José Fernandes está dentro do esperado para qualquer influenciador. É uma espécie de moeda de troca: ele oferece conteúdo gratuito e, em troca, espera engajamento”, diz o pesquisador.
“Mas é importante refletir sobre o fato de que, de certa maneira, ele pode estar explorando a vulnerabilidade dos seguidores”, afirma.
Questionado pela BBC sobre a crítica do pesquisador, o influenciador não respondeu.
O Kwai disse em nota que “assim que tomou conhecimento do caso, iniciou um processo de investigação, ainda em curso, para analisar o conteúdo publicado e a conduta do criador citado”.
“Caso sejam confirmadas violações às Diretrizes da Comunidade ou aos Termos de Serviço, serão adotadas as medidas cabíveis, que podem incluir desde a remoção de conteúdos até o banimento da conta”, afirma a plataforma.
O Kwai diz ainda repudiar “qualquer forma de exploração ou comportamento que possa colocar em risco a integridade física, emocional ou psicológica da comunidade” de usuários.
A BBC também enviou perguntas ao TikTok sobre a conduta do influenciador e críticas de especialistas de que a plataforma deveria fazer mais para bloquear conteúdos que enganam usuários.
A empresa não se manifestou sobre esses pontos e disse apenas que, em celulares comprados no Brasil, só é possível acessar o TikTok se a pessoa tiver cadastrada na plataforma e fizer o login.
Ilusão quebrada
A terapeuta Renata Maria Silva Santos destaca que há uma dualidade nesse tipo de engajamento: se por um lado o contato constante com os vídeos pode ter efeitos positivos, como o aumento da autoestima e até o estímulo para retomar projetos ou atividades pessoais, por outro, esse bem-estar está sustentado por uma ilusão.
“Quando essa ilusão se quebra, o impacto emocional pode ser muito mais profundo”, alerta.
Na avaliação dela, o envolvimento emocional com esse tipo de conteúdo torna as idosas mais suscetíveis a golpes.
Santos ressalta ainda que o risco não está apenas no conteúdo em si, mas na forma como ele é consumido: de maneira repetitiva, solitária e, em muitos casos, como única fonte de contato emocional.
“Hoje é o José Fernandes, mas não se sabe quem será amanhã”, conclui.