Brics apoia Irã, critica políticas dos EUA, mas evita confronto direto com Trump
Crédito, Rafa Neddermeyer/BRICS Brasil/PR
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- Author, Mariana Schreiber e Leandro Prazeres
- Role, Enviados da BBC News Brasil ao Rio de Janeiro
A declaração final da cúpula do Brics, realizada no Rio de Janeiro, condenou os ataques de Israel e Estados Unidos ao Irã, sem citar diretamente os agressores, evitando tensões com o presidente americano Donald Trump.
O documento também critica políticas do novo governo republicano, como as tarifas comerciais adotadas no início do ano, mas sem mencionar nominalmente o país.
O bloco defendeu ainda a regulação da inteligência artificial, na contramão do que vem defendendo o governo norte-americano, assim como mais mecanismos de trocas comerciais em moedas locais, como alternativa ao dólar.
Trump já fez críticas abertas ao Brics. Logo após assumir o cargo, o presidente chegou a dizer que os países do grupo são “aparentemente hostis” e ameaçou taxas seus produtos em 100% caso o bloco tentasse criar uma nova moeda para substituir do dólar.
O grupo passou a receber acusações de ser “antiocidental”, devido à entrada de mais regimes autoritários, como Irã e Arábia Saudita, que entraram no grupo em 2024.
Países do bloco como o Brasil refutam essas acusações e dizem que o Brics busca fortalecer o multilateralismo e o chamado Sul Global.
A declaração do grupo foi divulgada neste domingo (6/7), após meses de negociação, no primeiro dia da cúpula de líderes que ocorre no Rio de Janeiro, sob liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em sua fala inicial, o brasileiro criticou a corrida armamentista da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), impulsionada por Trump, e disse que o “temor de catástrofe nuclear” voltou.
Já a declaração final fez duras críticas à atuação de Israel no conflito com os palestinos, manifestando preocupação com os contínuos ataques israelenses contra Gaza e condenando o “uso da fome como método de guerra”.
A guerra da Ucrânia, por outro lado, foi mencionada brevemente, sem críticas diretas à invasora Rússia, um dos membros do Brics.
O grupo, que desde 2011 incluía Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, foi ampliado a partir de 2024, com a entrada de seis países: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã.
Crédito, Rafa Neddermeyer/BRICS Brasil/PR
1) Apoio de China e Rússia a Brasil e Índia no Conselho de Segurança
O Brasil conseguiu uma vitória ao garantir que a antiga aspiração do bloco a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU fosse incluída na declaração final.
O texto, porém, não menciona o apoio de todo o bloco, mas apenas de China e Rússia, membros permanentes do órgão.
As duas potências militares manifestam na declaração seu apoio a entrada de Brasil e Índia no Conselho, deixando de mencionar a África do Sul, devido à resistência de outras nações africanas que entraram no bloco ano passado.
“Ressaltamos que a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas visa a ampliar a voz do Sul Global”, diz a declaração.
“Recordando as Declarações dos Líderes de Pequim, de 2022, e Joanesburgo II, de 2023, China e Rússia, como membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, reiteram seu apoio às aspirações do Brasil e da Índia de desempenhar um papel mais relevante nas Nações Unidas, incluindo o seu Conselho de Segurança”, continua o texto.
Em anos anteriores, antes da expansão do bloco em 2024, a declaração trazia apoio de China e Rússia às aspirações de Brasil, Índia e África do Sul “de desempenhar um papel maior na ONU”.
Já no ano passado, esse trecho foi alterado para uma versão mais genérica, em que o bloco reafirmava seu apoio “a uma reforma abrangente das Nações Unidas, incluindo seu Conselho de Segurança, com o objetivo de torná-lo mais democrático, representativo, eficaz e eficiente”.
O texto não citava nações específicas, mas defendia a maior representatividade de África, Asia e América Latina, “incluindo países dos Brics”.
A alteração desse trecho ocorreu porque, com a ampliação do bloco, novos integrantes africanos passaram a se opor a um apoio direto apenas à África do Sul. Dessa forma, a declaração mantém apoio à maior representação do continente africano no Conselho de Segurança, mas sem apontar uma nação em específica.
O tema gerou divergência no bloco durante o encontro prévio à cúpula de líderes deste ano, em abril, quando os ministros das relações exteriores do bloco se reuniram no Rio de Janeiro. Na ocasião, não houve declaração conjunta devido a esse impasse.
A menção direta ao Brasil, ao lado de Índia, foi incluída após insistência e muita negociação do Itamaraty.
2) Condenação a tarifaços
Um dos trechos mais contundentes da declaração foi a crítica do bloco à utilização de tarifas no comércio internacional. Segundo o documento, esse tipo de estratégia seria uma desculpa para o “protecionismo” comercial.
“A proliferação de ações restritivas ao comércio, seja na forma de aumento indiscriminado de tarifas e de medidas não-tarifárias, seja na forma de protecionismo sob o disfarce de objetivos ambientais, ameaça reduzir ainda mais o comércio global”, diz.
A menção ao uso de tarifas acontece na esteira da guerra tarifária iniciada pelo presidente Donald Trump que, em abril deste ano, anunciou um amplo esquema de barreiras tarifárias contra produtos importados de diversos países do mundo. Países como a China tiveram seus produtos taxados em mais de 100%, inicialmente. Os chineses reagiram e impuseram tarifas a produtos norte-americanos.
Posteriormente, as duas maiores economias do mundo entraram em acordo e reduziram as tarifas mútuas. O Brasil também foi atingido por uma taxa média de 10% sobre seus produtos exportados aos Estados Unidos. Até agora, o Brasil não retaliou.
As declarações dos Brics defenderam o fortalecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC) como arena de solução de controvérsias comerciais internacionais.
3) Financiamento em moedas locais
Um dos temas que voltou a fazer parte da declaração final dos Brics foi a utilização de moedas locais nas transações entre os países do grupo.
O tema é considerado sensível dentro do bloco uma vez que, no ano passado, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçou impor tarifas aos países dos Brics caso eles desenvolvessem mecanismos para evitar o uso do dólar norte-americano.
Em 2024, durante a cúpula realizada em Kazan, na Rússia, a delegação russa trabalhou para que o grupo encampasse a ideia de fortalecer mecanismos que evitassem a utilização do dólar em transações entre os países do bloco.
Desde a invasão da Crimeia, em 2014, a Rússia vem sendo alvo de sanções internacionais que vêm afetando o seu acesso ao sistema financeiro internacional. As sanções se agravaram em 2022, com a intensificação da invasão à Ucrânia.
Na presidência brasileira dos Brics, o tema voltou a ser discutido, mas em menor intensidade. Uma das preocupações da delegação brasileira era ampliar as tensões com o governo norte-americano.
Em 2024, por exemplo, a declaração disse:
“Acolhemos o uso de moedas locais em transações financeiras entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais”.
Em 2025, esse trecho foi retirado. O texto focou na utilização de moedas locais no contexto de financiamentos realizados pelo NDB, o Banco dos Brics.
“Saudamos a constante expansão da capacidade do Banco de mobilizar recursos, fomentar a inovação, expandir o financiamento em moeda local, diversificar as fontes de financiamento e apoiar projetos impactantes”, diz um trecho da declaração.
Apesar de, nos bastidores, a delegação brasileira ter tratado o uso de moedas locais com cautela, o presidente Lula voltou a defender o dispositivo na semana passada, durante a reunião anual dos presidentes dos países que integram o Banco dos Brics.
“Já temos 31% dos projetos financiados nas moedas dos próprios países, o que reduz a dependência do dólar e reforça nossa autonomia financeira”, disse Lula.
4) Regulação da Inteligência Artificial
A declaração dos Brics deste ano reforçou o foco do bloco na defesa da regulação da inteligência artificial.
“Reconhecemos que a Inteligência Artificial (IA) representa uma oportunidade singular para impulsionar o desenvolvimento rumo a um futuro mais próspero. Para alcançar esse objetivo, destacamos que a governança global da IA deve mitigar potenciais riscos e atender às necessidades de todos os países, incluindo os do Sul Global”, diz um trecho da declaração.
A manifestação do bloco, no entanto, vai na contramão da posição do governo norte-americano do presidente Donald Trump. Nos últimos meses, Trump vem se posicionando contra a regulação da inteligência artificial, numa postura apoiada pelas empresas de tecnologia norte-americanas.
O projeto de orçamento do governo norte-americano enviado por Trump chegou a prever uma proibição para que os Estados do país implementassem formas de regulação da inteligência artificial. A proposta, no entanto, foi rejeitada pelo Congresso do país.
A declaração do Brics defende, ainda, o pagamento de direitos autorais por informações usadas pelas empresas de tecnologia que desenvolvem ferramentas de inteligência artificial.
“Reconhecemos a importância de colaborar na promoção do respeito aos direitos de propriedade intelectual utilizados no ambiente digital, inclusive para fins de treinamento em inteligência artificial, bem como na remuneração justa aos titulares de direitos, respeitando as necessidades e prioridades dos países em desenvolvimento”, diz o documento.
5) Condenação a ataques ao Irã, sem citar EUA
O Brics resistiu à pressão iraniana para endurecer sua oposição aos recentes bombardeios sofridos pelo país e criticar diretamente Estados Unidos e Israel.
A declaração condena os ataques, mas sem mencionar nominalmente seus autores, evitando provocar o presidente americano, Donald Trump.
Em junho, forças americanas bombardearam instalações nucleares do Irã, sob o argumento de que o país estaria próximo de desenvolver uma bomba nuclear, algo que Teerã nega.
“Condenamos os ataques militares contra a República Islâmica do Irã desde 13 de junho de 2025, que constituem uma violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, e expressamos profunda preocupação com a subsequente escalada da situação de segurança no Oriente Médio”.
O texto ainda manifesta “séria preocupação com os ataques deliberados contra infraestruturas civis e instalações nucleares pacíficas sob totais salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em violação ao direito internacional e a resoluções pertinentes da AIEA”.
O bloco ainda reforçou seu apoio “às iniciativas diplomáticas destinadas a enfrentar os desafios regionais” e exortou o Conselho de Segurança da ONU “a se ocupar desta questão”.
Em outro trecho da declaração, o Brics também se diz preocupado com “os crescentes riscos de perigo e conflito nuclear” e volta a defender a “suprema importância dos esforços que visam acelerar a implementação das resoluções sobre o Estabelecimento de uma Zona Livre de Armas Nucleares e outras Armas de Destruição em Massa no Oriente Médio”.
Não está claro o tamanho do dano que os bombardeios conseguiram infligir ao programa nuclear iraniano — que o país diz ter fins pacíficos. O Irã reenvidou os ataques de Israel e Estados Unidos, mas com poder de destruição menor. Depois disso, houve um acordo de cessar-fogo.
A entrada do Irã no Brics em 2024 foi patrocinada por dois importantes aliados: China e Rússia, duas potências nucleares. Isso não significa, porém, garantia de apoio militar a Teerã, ressaltam especialistas.
“A entrada no Brics fortalece o Irã, mas não a ponto de prover qualquer tipo de guarida ou escudo. Na verdade, o Irã teve de lutar sozinho. Praticamente, teve que confrontar Israel e, depois, os Estados Unidos com seus próprios meios”, afirma o professor de Política Internacional e Comparativa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dawisson Belém Lopes.
6) Bloco critica ‘fome como método de guerra’ em Gaza
Com o agravamento da situação na Faixa de Gaza, o bloco ampliou sua manifestação sobre o tema e críticas a Israel, destinando quatro parágrafos do texto ao conflito — na declaração do ano passado, era um.
Uma das novidades foi a condenação ao uso “da fome como método de guerra”, devido aos bloqueios à chegada de ajuda humanitária ao território palestino.
“Reiteramos nossa profunda preocupação com a situação no Território Palestino Ocupado, diante da retomada de ataques contínuos de Israel contra Gaza e da obstrução à entrada de ajuda humanitária no território”.
A declaração também chama a ocupação israelense de “ilegal” e diz que o fim do conflito só pode ser alcançado por meios pacíficos. O bloco reforçou sua defesa de uma solução de dois Estados, com a coexistência de Israel e da Palestina.
Nesse ponto, o texto defende “o estabelecimento de um Estado da Palestina soberano, independente e viável dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas de 1967, que inclui a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, com Jerusalém Oriental como sua capital”.
Esse trecho da declaração sofreu resistência do Irã, que não reconhece a existência de Israel e, por isso, se opôs a menção à solução de dois Estados. Essa, porém, é uma posição tradicional do Brics e o Irã acabou sem força para modificá-la.
7) Guerra na Ucrânia
A guerra na Ucrânia voltou a ser mencionada na declaração do Brics deste ano. E como nas declarações desde 2022, quando a invasão russa começou, não houve nenhum tipo de condenação à ação iniciada pelo regime de Vladimir Putin.
A declaração deste ano praticamente reproduziu os termos usados na do ano passado.
“Recordamos nossas posições nacionais em relação ao conflito na Ucrânia, expressas nos fóruns apropriados, incluindo o CSNU (Conselho de Segurança das Nações Unidas) e a AGNU (Assembleia Geral das Nações Unidas)”, diz um trecho do documento.
A novidade da declaração deste ano veio na menção às propostas de paz elaboradas pela Iniciativa Africana pela Paz e pelo Grupo de Amigos pela Paz, do qual o Brasil e a China fazem parte.
O documento também criticou o uso de sanções unilaterais sem respaldo do Conselho de Segurança da ONU.
“Apelamos à eliminação de tais medidas ilegais, que minam o direito internacional e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas. Reafirmamos que os estados-membros do Brics não impõem nem apoiam sanções não autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU”, diz o documento.
A menção pode ser interpretada como uma crítica velada a ações tomadas pelos governos dos Estados Unidos e da União Europeia contra países como a Rússia e o Irã, que são membros dos Brics e que estão, há anos, sob sanções econômicas.