Marion Nestle: ‘Indústria de alimentos adotou os métodos da indústria tabagista de semear dúvidas sobre pesquisas e recrutar influenciadores’
Crédito, Peter Menzel/Cortesia de Marion Nestle
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- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
A nutricionista americana Marion Nestle tinha 65 anos de idade e décadas de experiência como pesquisadora quando publicou o livro que transformaria não apenas sua carreira, mas o debate sobre comida e nutrição nos Estados Unidos.
Na época em que Food Politics: How the Food Industry Influences Nutrition and Health (“Política alimentar: como a indústria de alimentos influencia a nutrição e a saúde”, em tradução livre) foi lançado, em 2002, as decisões sobre alimentação costumavam ser consideradas puramente uma questão de responsabilidade individual.
O livro, no entanto, argumentava que, por trás disso, havia um sistema projetado para incentivar as pessoas a comerem mais e desencorajar escolhas saudáveis. Um sistema no qual a indústria de alimentos e seu lobby têm grande influência sobre políticas governamentais, e a preocupação principal é o lucro, não a saúde pública.
“As empresas de alimentos criam um ambiente que estimula o consumo excessivo de comida, por meio de publicidade, marketing indireto, brindes, redes sociais, apoio a organizações, apoio a pesquisas”, diz Nestle em entrevista exclusiva à BBC News Brasil.
“E, longe da vista do público, [há] lobby e financiamento de campanhas eleitorais. A responsabilidade pessoal não tem chance contra essa investida esmagadora. Tentar comer de forma saudável nesse contexto significa que você está enfrentando sozinho todo o sistema alimentar.”
Ao colocar a responsabilidade nas mães, esse debate não mencionava como as empresas direcionavam o marketing de junk food (comida de baixo valor nutricional e alta densidade calórica) para as crianças.
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“Gosto de dizer que a indústria alimentícia não é um serviço social ou uma agência de saúde pública. Seu propósito, seu único propósito, é gerar lucro para os investidores. Se não fizer isso, os investidores reclamam, e os preços das ações caem”, afirma Nestle, cujo sobrenome se pronuncia “Néssol” e não tem nenhuma relação com a empresa Nestlé.
“O trabalho de uma empresa de alimentos é vender mais comida, não menos, independentemente do efeito de seus produtos na saúde. Sendo bem direta: [a população] comer menos é ruim para os negócios.”
Nestle já tinha uma trajetória respeitada, mas a publicação do livro consolidou sua posição como uma das principais autoridades em nutrição e política alimentar dos Estados Unidos.
Ela inspirou gerações de nutricionistas e ativistas e, aos 88 anos de idade, continua sendo uma das vozes mais influentes nesse campo.
Trajetória profissional
Seu olhar crítico é apoiado pelo treinamento formal como cientista, e ela costuma dizer que muitas vezes já atacaram suas opiniões, mas nunca o rigor científico de seu trabalho.
Apesar de sempre ter se interessado por comida, o foco em nutrição ocorreu por acaso. Em 1968, após concluir doutorado em Biologia Molecular pela Universidade da Califórnia em Berkeley, ela foi contratada como bolsista de pós-doutorado na Universidade Brandeis, em Massachusetts.
Depois de alguns anos dedicados a pesquisas no Departamento de Biologia da universidade, foi encarregada de lecionar um novo curso que a Brandeis havia criado, sobre nutrição.
Como sua formação não era nessa área, mergulhou em livros e pesquisas sobre o tema para se preparar. Ela conta que, ao fim desse processo, estava apaixonada pelo assunto, dando início a uma virada em sua trajetória profissional.
Crédito, Zara Surti/Cortesia de Marion Nestle
Em 1976, foi contratada como professora de Biologia e Ciência da Nutrição na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF), onde permaneceu por dez anos. Durante esse período, também obteve um mestrado em Nutrição em Saúde Pública.
Nestle teve uma breve passagem por Washington, onde foi consultora sênior de política de nutrição para o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA por dois anos. Foi nessa época, após ver de perto o poder da indústria de alimentação nas políticas do governo, que começou a trabalhar no livro Food Politics.
Em 1988, chegou à Universidade de Nova York (NYU, na sigla em inglês) com a incumbência de modernizar o que era na época o Departamento de Economia Doméstica e Nutrição. Sob seu comando, surgiu o Departamento de Nutrição e Estudos Alimentares.
A iniciativa de dedicar um programa acadêmico ao estudo não apenas de nutrição ou nutrientes individuais, mas da alimentação como um todo, incluindo implicações sociais, culturais e políticas, foi pioneira na época e teve grande influência. Hoje, outras universidades nos Estados Unidos e outros países têm programas do tipo.
Nestle se aposentou oficialmente em 2017, mas mantém o título de professora emérita de Nutrição, Estudos Alimentares e Saúde Pública da NYU e não dá sinais de que pretenda parar. Ela continua viajando pelo país em palestras e eventos e é uma das principais fontes de referência para jornalistas e documentaristas sobre o tema.
Depois do sucesso de Food Politics, publicou mais de 15 livros sobre segurança alimentar, política alimentar e nutrição, vários deles premiados. Em 2022, lançou um livro de memórias, relembrando sua carreira.
Ela tem dois títulos com lançamento previsto para este ano, entre eles What to Eat Now (“O que Comer Agora”, em tradução livre), versão atualizada de What to Eat (“O que Comer”), de 2006, e já trabalha em um novo projeto para o ano que vem.
Nestle tem mais de 130 mil seguidores na rede social X e mantém um blog, Food Politics, no qual publica notícias, análises e críticas sobre políticas alimentares.
Um dos alvos constantes de suas críticas no blog é o financiamento corporativo de pesquisas sobre nutrição, que considera mais publicidade do que ciência, já que buscam demonstrar benefícios para os produtos do patrocinador. Ela já comparou a indústria de alimentos à indústria tabagista.
“A indústria de alimentos adotou o manual da indústria tabagista, os métodos que esta empregou para lançar dúvidas sobre pesquisas desfavoráveis e recrutar influenciadores para defender seus produtos”, afirma.
“As empresas de alimentos semeiam dúvidas sobre estudos desfavoráveis, financiam suas próprias pesquisas, contratam pesquisadores como consultores, insistem na autorregulação, reclamam que as regulamentações constituem um estado paternalista, fazem lobby e financiam campanhas eleitorais. Elas são muito boas em tudo isso.”
Comida ‘de verdade’
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Ao refletir sobre o que mudou nas cinco décadas desde que começou sua carreira nesse campo, Nestle diz que o interesse público em nutrição e saúde é hoje maior do que nunca.
Mas, em um ambiente em que proliferam modismos, dietas milagrosas e informações muitas vezes contraditórias, lembra que as recomendações básicas para uma alimentação saudável são simples e continuam as mesmas de décadas atrás.
“Nos anos 1950, para prevenir doenças crônicas, éramos aconselhados a comer mais frutas, verduras, legumes e grãos, reduzir a ingestão de sal, açúcar e gordura saturada e equilibrar a ingestão e o gasto de calorias. Ainda recebemos as mesmas recomendações”, afirma.
Nestle diz ignorar a onda de influenciadores que fazem sucesso nas redes sociais com fórmulas e memes sobre nutrição.
“Infelizmente, muita gente presta muita atenção. Meu conselho: descubra quem os está patrocinando”.
Sua dica para uma alimentação saudável, que ela própria garante seguir “com facilidade”, é manter uma dieta variada, com comida “de verdade”, dando preferência a frutas, verduras, legumes e grãos, sem exagerar nas porções.
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Nestle também ressalta a importância de evitar alimentos ultraprocessados, que estão ligados a consequências negativas para a saúde e são definidos por ela como “aqueles produzidos industrialmente para serem irresistíveis, se não viciantes, cheios de sal, açúcar, calorias e aditivos industriais, e impossíveis de serem feitos na cozinha da sua casa”.
“As recomendações básicas de alimentação não mudam muito, ou quase nada. Onde há divergências é na forma de elaborar dietas que sigam essas orientações”, ressalta.
“Há muitas maneiras de escolher dietas que sigam os princípios fundamentais. O quanto você come é tão importante, se não mais, do que o que você come. A comida é um dos grandes prazeres da vida. Saboreie o que você come!”
Nestle elogia a política alimentar de países da América Latina, especialmente o Brasil.
“Países latino-americanos lideram em iniciativas de saúde pública para proteger crianças contra a publicidade de alimentos ultraprocessados”, afirma.
“As diretrizes alimentares do Brasil são as mais inovadoras do mundo. Rótulos de advertência, restrições à publicidade e restrições [de ultraprocessados] na alimentação escolar são avanços gigantescos. Quem dera tivéssemos isso [nos Estados Unidos].”