Vida em ‘prédio fantasma’: as idosas que resistem a demolição de edifício
Crédito, Arquivo pessoal
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- Author, Camilla Veras Mota
- Role, De Fortaleza para a BBC News Brasil
Maria Elisier Balidas, de 84 anos, e Maria Martha dos Santos, de 79 anos, são as últimas moradoras do edifício Kátia, um prédio de três andares a duas quadras da praia em um bairro nobre de Fortaleza.
Elas hoje vivem rodeadas por 10 apartamentos vazios. Alguns estão vedados com tapumes, outros, abertos — quem sobe pelas escadas, inclusive, consegue ver de fora que estão parcialmente destruídos, sem portas, sem janelas, sem cerca na varanda e com entulho pelo chão.
“Eu cheguei a ligar para minha filha, falei: ‘Areti, tô com medo de ficar aqui nesse prédio assombrado”, diz Elisier, que há 30 anos mora no apartamento 104.
Os vizinhos começaram a ir embora em fevereiro, depois de fazerem um acordo com uma construtora que planeja construir um empreendimento de alto padrão no local. Eles assinaram um contrato de permuta que previa a troca de seus apartamentos por uma unidade no novo edifício.
Mas Elisier e Martha não concordaram com a proposta, mergulhando em um embate que foi parar na Justiça.
O advogado que as representa, Stênio Gonçalves Silva, alega que as idosas estão sendo intimidadas e coagidas pela construtora a deixar suas casas — apartamentos com 149 metros quadrados, três quartos e três banheiros —, o que a empresa nega.
Apartamentos de R$ 1,9 milhão
O projeto da empresa Reata Arquitetura e Engenharia prevê a demolição em duas etapas dos cinco prédios de três andares que hoje estão no terreno de cerca de 5 mil metros quadrados no bairro do Meireles, um dos mais valorizados da capital cearense.
A ideia apresentada pela empresa, segundo Silva, foi a de construir duas torres no lugar, uma das quais destinada parcialmente aos atuais condôminos.
Os apartamentos de Elisier e Martha estão em um dos dois blocos que seriam demolidos neste primeiro momento para dar lugar a esse prédio, o Kátia e o Ângela.
Os outros três blocos, Capricornius, Scorpio e Aquarius, têm 36 apartamentos e por ora seguem habitados. Eles seriam destruídos na segunda fase do projeto, para abrir espaço para uma segunda torre, que a Reata disse à reportagem “que poderá ser realizada ou não”.
A empresa descreveu o prédio que pretende erguer no terreno dos edifícios Kátia e Ângela como uma torre de 21 andares com apartamentos de alto padrão de 121 a 138 metros quadrados com preço estimado de R$ 1,9 milhão.
Ainda segundo a companhia, o contrato de permuta assinado com os moradores prevê também uma ajuda de custo no valor de R$ 2,8 mil “paga até o ato de entrega da nova unidade”.
As idosas não querem sair de casa para aguardar a construção de um novo edifício.
As filhas das duas, que também conversaram com a BBC News Brasil quando a reportagem esteve no condomínio, levantaram ainda questões em torno das garantias previstas no contrato de permuta, que consideram frágeis. Assim, as famílias preferem vender o imóvel.
Mas o valor oferecido pela empresa, de R$ 450 mil, segundo elas, não é compatível com os preços praticados na região.
‘Fiquei apavorada’
Apesar da dissidência de Elisier e Martha, os moradores votaram em assembleia no dia 10 de janeiro pela extinção do condomínio.
Semanas depois apareceram os trabalhadores que deram início à retirada de itens como portas, janelas e cercas de madeira da varanda de apartamentos dos dois blocos.
O episódio surpreendeu as duas idosas, que chegaram a pensar que o prédio estava sendo demolido com elas dentro.
“Fiquei apavorada”, diz Elisier. “Era muito barulho, começava às 8 da manhã e ia até o fim da tarde. Um barulho de marreta assim: pá, pá, pá…”
Ela relata ter caído da escada depois de escorregar nos pedregulhos e na poeira que ficaram pelos degraus, e afirma que não se machucou porque conseguiu amortecer a queda segurando no corrimão.
“Fiquei preocupada, pensei: ‘Meu Deus, será que eu vou ter que sair atrás [dos pedreiros], correndo?'”, afirma Martha, que se mudou para o 202 do edifício Kátia em 2011.
A moradora Renata Maia, que foi apontada como liquidante do condomínio na assembleia de janeiro, nega que tenha havido “desmanche dos apartamentos” e afirma que o processo ocorreu “de forma espontânea”.
“O que aconteceu, de forma objetiva e clara, foi a retirada de itens que representavam algum tipo de valor, seja sentimental, para recordação, tendo em vista que alguns proprietários residiam no local há mais de 30, 40 ou 50 anos, seja para aproveitamento, no caso de utilização destes itens em outros espaços, ou seja material, para venda/comercialização, tendo em vista que são materiais de qualidade”, respondeu, por escrito, à reportagem.
Ela diz que 20 das 24 unidades dos dois blocos pertencem a pessoas com idades entre 60 e 85 anos e que a falta de elevadores é um entrave para a mobilidade de muitas delas.
Essa teria sido uma das razões que teria levado um grupo de condôminos anos atrás a procurar a construtora, que já havia trabalhado em projetos semelhantes, com demolição de edifícios mais antigos para a construção de novos.
Batalha judicial
Silva, representante legal das idosas, tem argumentado que a demolição só poderia acontecer com anuência de todos os condôminos, o que não aconteceu.
No fim de março, a Justiça determinou, em uma decisão de caráter liminar (provisória), a suspensão dos efeitos da assembleia de janeiro.
O desembargador encarregado do caso também ordenou a interrupção das intervenções nos apartamentos, que classificou, com base nas imagens que acompanham o processo, como o início das “obras de demolição”.
E determinou a reconstrução do que foi destruído, o que até o momento não foi feito.
Depois disso, advogados dos dois lados chegaram a se encontrar para discutir um possível acordo. Não houve resolução, segundo Silva, porque a construtora apresentou a mesma proposta, de R$ 450 mil.
No fim de maio, os demais moradores entraram com uma ação pedindo a adjudicação compulsória dos apartamentos de Elisier e Martha (ou seja, a aquisição judicial das duas unidades à revelia das duas proprietárias), mediante depósitos em juízo de R$ 458 mil e R$ 449 mil.
O argumento foi de que o “estado avançado de deterioração” dos edifícios representavam “perigo para a integridade física dos condôminos” e “risco iminente à vida”, conforme o processo, ao qual a reportagem teve acesso.
A questão da segurança da estrutura tem sido um ponto de divergência central na argumentação das duas partes.
Alguns condôminos afirmam que os prédios correm risco de colapso e argumentam que, por isso, não seria necessário que houvesse consenso de todos os moradores para a extinção do condomínio, evocando dois artigos do Código Civil.
Eles dizem ainda que o custo de recuperação da atual estrutura seria proibitivo, conforme uma vistoria técnica feita em dezembro de 2024 que apontou orçamento de R$ 2,1 milhões para os reparos necessários.
As famílias de Elisier e Martha enxergam que os edifícios precisam de reforma, mas refutam o valor estimado pela vistoria e argumentam que ele faz parte de uma estratégia para reforçar a narrativa de que o prédio estaria comprometido e precisaria ser demolido.
Marcos Pantoja, engenheiro civil que atua junto à representação legal delas como perito engenheiro, pontua que um laudo da Defesa Civil de maio de 2023 apontava risco médio de colapso de telhado como problema premente e que, na época, o serviço chegou a ser orçado pelo condomínio por R$ 23 mil.
“Isso está muito longe de um problema estrutural generalizado de um prédio que vai desabar”, diz ele, enfatizando que os três outros blocos que fazem parte do complexo seguem habitados.
Crédito, Arquivo pessoal
A Defesa Civil fez uma segunda vistoria nos edifícios em dezembro de 2024, onde apontou risco moderado de desabamento e recomendou “intervenções imediatas para as manutenções corretivas”, mas não condenou a estrutura.
Procurado pela reportagem, o órgão informou ter feito uma nova visita ao local no último mês de maio.
“Em todas [elas] foram identificadas diversas manifestações patológicas, a exemplo de ferragens expostas, infiltrações e afundamento do piso externo área do estacionamento”, disse por email, emendando que o quadro configuraria “risco de desabamento em grau médio, podendo evoluir para crítico se não forem tomadas as medidas necessárias”.
Por isso, os relatórios técnicos foram enviados aos responsáveis “solicitando que sejam feitas, com brevidade, as intervenções necessárias, evitando que a situação se agrave”.
O pedido de urgência para a compra compulsória dos apartamentos de Elisier e Martha feito pelos demais condôminos foi negado pelo juiz que analisou o caso.
Na decisão liminar, do início de junho, ele afirma que o suposto “risco à segurança não foi comprovado pelos documentos apresentados” e que os valores de mercado dos dois apartamentos são “amplamente superiores aos quantificados nos laudos apresentados”, no caso, R$ 458 mil e R$ 449 mil.
Silva vê o ajuizamento da ação como uma “escalada da construtora no assédio e nos métodos de pressão” que tem feito contra as duas idosas com o intuito de adquirir o terreno.
A Reata afirma que “não houve coação e não houve pressão”.
Os processos seguem tramitando e a disputa ganha complexidade à medida que o tempo passa: um dos moradores do edifício Kátia disse à reportagem estar pensando em voltar para seu apartamento, por considerar “frágil” o contrato de permuta que assinou com a empresa em outubro de 2022, afirmando que ele tem validade prevista de dois anos.
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‘Aqui é meu ninho, minha saudade’
Elisier é piauiense de Teresina. Mudou-se para Fortaleza depois de se casar com um imigrante grego que tinha uma loja de confecções no Piauí.
Eles foram morar no apartamento 104 no edifício Kátia em 1996.
Cerca de sete anos depois, o marido, Eustratios, morreu de um AVC e Elisier, para complementar a renda, passou a descer para o calçadão da Beira Mar, que está ali próximo, com um isopor e uma garrafa térmica para vender tapioca, cuscuz, coalhada e café. Fez isso por anos.
Além do marido, ela também perdeu um dos três filhos na casa, que ela define como “meu ninho, minha saudade, minhas relíquias”.
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Martha é mineira de Torres de Sebastião, um distrito de Barbacena. Para criar os quatro filhos, chegou a trabalhar como enfermeira no controverso hospital psiquiátrico da cidade, desativado nos anos 1990 depois de se tornar um dos maiores do país.
Aos 51 anos, depois que os filhos “cresceram e tomaram o mundo”, ela entrou na faculdade e se formou em Pedagogia.
Em 2010, mudou-se para Fortaleza em busca de melhor qualidade de vida e para estar mais perto da filha caçula.
Na capital cearense, reencontrou a pintura. As paredes de seu apartamento estão cheias de telas, muitas retratando “a força da mulher negra e sua beleza”, como ela define.
Martha vai caminhando de manhã à praia e frequenta as aulas de pilates de um clube ali perto. Depois de 15 anos, diz que cada canto do imóvel hoje guarda uma lembrança.
“O que estão fazendo conosco dói profundamente”, ela afirma. “Não é só o imóvel em si: é a perda de uma história, de uma rede de afetos, de tudo o que construímos com respeito, simplicidade e união. Sair de um lugar onde finalmente me senti em casa já não é fácil.”
A mineira afirma que ela e Elisier estão à espera de uma “proposta justa”.
“Eu não quero prejuízo deles, eles não hão de querer o meu também.”
Crédito, Arquivo pessoal
Roteiro de filme
Apesar das particularidades, o caso de Elisier e Martha não é isolado. Ele se encaixa em um contexto de mudanças aceleradas que estão acontecendo nessa região de Fortaleza e em diversas outras grandes cidades do país, onde a pressão imobiliária vem substituindo prédios antigos por grandes torres de apartamentos de alto padrão.
Essa transformação é visível no entorno dos edifícios Kátia e Ângela.
A poucos quarteirões dali foi inaugurado, em janeiro, o primeiro “superprédio” da cidade, com 51 andares e apartamentos de cerca de 600 metros quadrados, com 5 suítes e 8 vagas de garagem.
Um outro ainda mais alto, também nesse trecho próximo à praia, está em construção, com previsão de entrega para 2026 e preços estimados em cerca de R$ 17 milhões por apartamento.
A dois quarteirões dos prédios de Elisier e Martha há ainda um terceiro em construção que terá elevador para carros, para que os moradores possam estacionar em uma vaga dentro do apartamento.
Todos esses “prédios mansões”, como apelidou o coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (UFC) Renato Pequeno, têm altura superior ao que é permitido pelo Plano Diretor Municipal (que prevê algo próximo a 24 andares para o bairro do Meireles, onde estão os empreendimentos).
Nos últimos dez anos, contudo, as construtoras têm conseguido autorização da prefeitura para ultrapassar o limite utilizando instrumentos como a outorga onerosa, que prevê o pagamento aos cofres públicos pelo que exceder o que estabelece o plano diretor.
“É a regulamentação da desregulação, que faz com que a lei seja flexibilizada em favor de determinados agentes. Várias cidades têm passado por esse processo”, argumenta Pequeno.
Essa dinâmica, em sua visão, deve fazer com que histórias como a de Elisier e Martha se repitam, tanto em Fortaleza quanto em outras partes do país.
“Essa questão das senhoras que têm vivido na pele o roteiro do filme Aquarius tende a se multiplicar”, acrescenta, referindo-se ao filme de Kleber Mendonça Filho em que Sônia Braga interpreta uma mulher que resiste às investidas de uma construtora que quer demolir o prédio em que ela vive, perto da praia, no Recife, para erguer no lugar um grande empreendimento imobiliário.
“Acaba sendo um tipo de processo recorrente, no qual quem não concorda, ‘roda’. É a mesma coisa que está acontecendo em São Paulo, por exemplo, no entorno da Vila Madalena”, exemplifica o professor da UFC.
“Tenho um colega que tinha um escritório no sétimo andar, todo mundo foi vendendo, ele ficou por último e teve que sair de lá.”