Escândalo de fraude em adoções na Coreia do Sul: a mãe que passou 44 anos procurando filha sequestrada – e a encontrou do outro lado do mundo
- Author, Juna Moon e Tessa Wong
- Role, BBC News
- Reporting from Seul e Cingapura
A última lembrança que Han Tae-soon tem de sua filha quando criança é de maio de 1975, em sua casa, em Seul.
“Eu estava indo ao mercado e perguntei a Kyung-ha: ‘Você não vem?’ Mas ela me disse: ‘Não, vou brincar com meus amigos'”, lembrou Han.
“Quando voltei, ela havia sumido.”
Han não veria sua filha novamente por mais de quatro décadas. Quando se reencontraram, Kyung-ha estava quase irreconhecível — era uma americana de meia-idade chamada Laurie Bender.
Naquele dia em 1975 ela foi sequestrada perto de casa, levada para um orfanato e enviada ilegalmente para os EUA para ser criada por outra família, segundo Han, que agora está processando o governo sul-coreano por não impedir a adoção de sua filha.
Ela está entre as centenas de pessoas que nos últimos anos que apresentaram acusações contundentes de fraude, adoções ilegais, sequestro e tráfico de pessoas no controverso programa de adoção internacional da Coreia do Sul.
Nenhum outro país enviou tantas crianças para adoção no exterior, e por tanto tempo, quanto a Coreia do Sul. Desde o início do programa, na década de 1950, algo entre 170 mil e 200 mil crianças foram adotadas no exterior — a maioria delas no Ocidente.
Em março, uma investigação histórica concluiu que sucessivos governos cometeram violações de direitos humanos ao falharem na fiscalização do programa, permitindo que agências privadas “exportassem em massa” crianças com fins lucrativos em escala industrial.
As descobertas, na visão de especialistas, podem abrir caminho para a abertura de novos processos contra o governo.
O caso de Han, que deve ir a julgamento no próximo mês, é o primeiro em que um parente de sangue de alguém adotado em outro país reivindica indenização do governo.
Em 2019, um homem nos EUA foi a primeira pessoa adotada a entrar com uma ação judicial.
Um porta-voz do governo disse à BBC que “se solidariza profundamente com a dor emocional de indivíduos e famílias que não conseguiram se encontrar por um longo tempo”.
E declarou ter considerado o caso de Han com “profundo pesar”, preparando-se para tomar as “medidas necessárias” com base no resultado do julgamento.
Aos 71 anos, Han afirmou à BBC que está determinada a fazer com que o governo assuma sua responsabilidade.
“Passei 44 anos arruinando meu corpo e minha mente procurando por [minha filha]. Mas, durante todo esse tempo, alguém já me pediu desculpas? Ninguém. Nem uma vez.”
Durante décadas, ela e o marido visitaram delegacias de polícia e orfanatos, distribuíram panfletos e apareceram na televisão pedindo informações. Han disse ter passado dias inteiros percorrendo as ruas à procura da filha “até que todas as minhas 10 unhas dos pés caíram”.
Antes de encontrá-la de fato, em alguns momentos nas últimas décadas ela chegou a sentir ter chegado perto. Em 1990, após um de seus apelos na TV, conheceu alguém que acreditava ser Kyung-ha e chegou a acolhê-la em casa com sua família por um tempo — até a mulher confessar que não era sua filha.
A história progrediu em 2019, quando Han se inscreveu no 325 Kamra, um grupo que conecta coreanos adotados no exterior com seus pais biológicos por meio da comparação de DNA.
Em pouco tempo, ela recebeu a notícia de que haviam encontrado uma compatibilidade: Laurie Bender, uma enfermeira na Califórnia que, após vários telefonemas, voou para Seul.
As duas tiveram um encontro emocionante no aeroporto da capital sul-coreana.
Crédito, News1
Crédito, News1
Enquanto se abraçavam, Han passava os dedos pelos cabelos de Kyung-ha: “Sou cabeleireira há 30 anos. Consigo dizer rapidamente se é minha filha só de sentir o cabelo dela. Eu tinha pensado erroneamente que a tinha encontrado antes, então tive que tocar e sentir o cabelo para confirmar”, afirmou.
A primeira coisa que ela disse à filha foi: “Sinto muito”.
“Eu me senti culpada por ela não ter conseguido encontrar o caminho de casa quando era criança. Fiquei pensando no quanto ela devia ter procurado pela mãe… Encontrá-la depois de todos aqueles anos me fez perceber o quanto ela devia ter sentido falta da mãe, e isso partiu meu coração.”
“É como se um buraco no coração tivesse sido curado, você finalmente se sente uma pessoa completa”, disse Kyung-ha sobre o reencontro em uma entrevista à Associated Press. Ela não respondeu aos pedidos de entrevista da BBC.
A dupla finalmente conseguiu juntar as peças do que aconteceu naquele dia de maio de 1975.
Kyung-ha, que tinha seis anos na época, estava brincando perto de casa quando foi abordada por uma mulher que alegava conhecer sua mãe e dizia que Han “não precisava mais” dela.
A menina foi então levada para uma estação de trem e após viajar com a mulher foi abandonada no ponto final, apanhada por policiais e colocada em um orfanato. De lá, foi levada de avião para os EUA para ser adotada por um casal na Virgínia.
Anos depois, ela recebeu documentos falsos, em que era identificada como órfã de pais desconhecidos.
“É como se você estivesse vivendo uma vida falsa e tudo o que você sabe não é verdade”, disse Kyung-ha em entrevista.
Seu caso estava longe de ser isolado.
‘Comércio de crianças’ da Ásia para o Ocidente
O programa de adoção internacional da Coreia do Sul teve início logo após o fim da sangrenta guerra civil da Coreia, que se estendeu entre 1950 e 1953 e deixou o país profundamente empobrecido, com cerca de 100 mil crianças órfãs e deslocadas.
O governo anunciou o programa de adoção internacional como um esforço humanitário, sob o argumento de que poucas famílias locais estavam dispostas a acolher as crianças que tinham perdido seus parentes.
O programa era administrado inteiramente por agências de adoção privadas que, apesar de estarem sob supervisão governamental, com o tempo ganharam autonomia significativa por meio de novas leis.
À medida que seu poder crescia, também crescia o número de crianças enviadas ao exterior, aumentando na década de 1970 e atingindo o pico na década de 1980. Somente em 1985, mais de 8.800 crianças foram enviadas ao exterior.
Houve uma demanda enorme do Ocidente — com a queda nas taxas de natalidade e menos bebês para adotar internamente, as famílias começaram a buscar crianças em outros países.
Fotos daquela época mostram aviões lotados de crianças coreanas, com bebês enfaixados e presos aos assentos — o que o inquérito da Comissão da Verdade e Reconciliação chamou de “transporte em massa de crianças como carga”.
O relatório alega que pouco cuidado foi tomado com essas crianças durante esses longos voos. Em um caso citado de 1974, uma criança com intolerância à lactose foi alimentada com leite durante o transporte e posteriormente morreu ao chegar à Dinamarca.
Críticos do programa há muito questionam por que tantas crianças precisavam ser enviadas para o exterior em um momento em que a Coreia do Sul já vivenciava um rápido crescimento econômico.
Um documentário do programa Panorama da BBC de 1976 que apresentou a Coreia do Sul como um dos vários países asiáticos que enviavam crianças para o Ocidente, citou um observador que descrevia a situação como “fora de controle” e “quase como um comércio de crianças… fluindo da Ásia para a Europa e a América do Norte”.
De acordo com o relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação, agências estrangeiras de adoção estabeleceram cotas para crianças, que as agências coreanas cumpriram de bom grado.
Era um negócio lucrativo — a falta de regulamentação governamental permitia que as agências coreanas cobrassem grandes quantias e exigissem taxas ocultas, chamadas de “doações”.
Crédito, Comissão da Verdade e Reconciliação
Algumas dessas crianças podem ter sido obtidas por meios inescrupulosos, afirmam parentes como Han, que alegam que seus filhos foram sequestrados. Nas décadas de 1970 e 1980, milhares de crianças desabrigadas ou abandonadas foram recolhidas e colocadas em orfanatos ou centros de assistência social como parte de uma campanha nacional para “limpar as ruas” da Coreia do Sul.
Outros pais foram informados que seus bebês adoeceram e morreram, quando, na verdade, estavam vivos e foram levados para agências de adoção. As agências também não obtiveram o consentimento adequado das mães biológicas para levar seus filhos para adoção, de acordo com o relatório.
O documento também apontou que as agências de adoção falsificaram deliberadamente informações em registros de adoção para economizar tempo e atender rapidamente à demanda por crianças.
Crianças perdidas que eram encontradas sem documentos de identidade eram forçadas a aparecer, na papelada, como se tivessem sido abandonadas e colocadas para adoção.
Se uma criança destinada à adoção morresse ou fosse recuperada por seus pais biológicos, outra criança era trocada e recebia a identidade da criança original. Isso permitiu que as agências evitassem o reembolso das taxas de adoção e agilizassem o processo.
Décadas depois, isso criou imensas dificuldades para muitos adotados no exterior que tentaram localizar seus pais biológicos.
Alguns têm informações incorretas ou ausentes em seus registros de adoção, enquanto outros descobriram que receberam identidades totalmente falsas.
“Somos vítimas de violência estatal, mas não há vestígios disso — literalmente. Essa falta de documentos não deve nos tornar vítimas pela segunda vez”, disse Han Boon-young, cofundadora de um grupo de direitos de adotados no exterior que faz campanha por maior acesso a informações de registros de nascimentos.
“Esta é uma questão de direitos humanos. Houve sequestros, documentos falsificados — todos exemplos de violações cometidas durante o processo de adoção internacional.”
“É realmente necessário avançar para a reconciliação, para que reconheçamos essas experiências e para que as pessoas que cometeram essas violações sejam responsabilizadas.”
Alguns dos principais atores, contudo, continuam em silêncio ou negam qualquer irregularidade.
A BBC contatou Bu Chung-ha, que na década de 1970 foi presidente da Holt International, a maior agência de adoção da Coreia do Sul.
A Holt está no centro de inúmeras alegações de fraude e adoções ilegais e é alvo de dois processos até o momento, incluindo o de Han.
Em uma breve resposta, Bu negou que a agência tenha enviado para o exterior quaisquer crianças identificadas erroneamente como órfãs durante sua gestão. Os pais que alegaram que seus filhos foram sequestrados “não perderam seus filhos, eles os abandonaram”, disse ele.
A atual administração da Holt International ainda não respondeu ao pedido de comentário da BBC.
‘O governo era o capitão, as agências remavam o barco’
Especialistas afirmam que a responsabilidade não recai apenas sobre as agências privadas, mas também sobre o Estado.
“As agências de adoção exploraram o sistema, e o governo fez vista grossa, permitindo que práticas ilegais se enraizassem”, disse Lee Kyung-eun, acadêmica de direito internacional da Universidade Nacional de Seul.
“O governo era o capitão, e as agências remavam o barco”, pontuou Shin Pil-sik, pesquisadora sobre adoção transnacional na Universidade de Seokyeong, acrescentando que essa estrutura permitiu que ambos os lados se esquivassem da responsabilidade.
Shin afirmou que o Estado não era um observador passivo — ele moldava ativamente a política de adoção, estabelecendo cotas anuais para colocações no exterior e até mesmo, ocasionalmente, suspendendo algumas adoções.
Uma investigação da Associated Press no ano passado descobriu que sucessivos governos coreanos reescreveram leis para remover salvaguardas mínimas e supervisão judicial, adaptaram suas leis às americanas para tornar as crianças adotáveis e permitiram que famílias estrangeiras adotassem crianças coreanas rapidamente, sem nunca visitar o país.
Embora o governo tenha anunciado o programa como um esforço humanitário, observadores dizem que ele também serviu para fortalecer os laços com os países ocidentais.
Um documento governamental de 1984 obtido pela BBC afirmava que os objetivos oficiais da política de adoção incluíam não apenas o bem-estar das crianças, mas também “a promoção da futura força nacional e da diplomacia interpessoal”.
Quando questionado sobre o papel do Estado em práticas de adoção anteriores, o Ministério da Saúde e Bem-Estar da Coreia do Sul afirmou que estava “continuando os esforços para fortalecer a responsabilidade do Estado” no sistema e que planeja promover adoções que cumpram os padrões internacionais.
Em 2012, o governo revisou as leis de adoção para reforçar a triagem de potenciais pais adotivos e para rastrear melhor os dados dos pais biológicos e as informações sobre o nascimento.
Também implementou reformas no sistema de adoção, garantindo que as adoções no exterior sejam minimizadas e que todas as adoções sejam conduzidas pelo governo em vez de agências privadas. As mudanças entrarão em vigor em julho.
No final da década de 1980, as adoções no exterior caíram drasticamente, antes de se estabilizarem na década de 1990 e caírem novamente na década de 2010. Apenas 79 crianças foram adotadas no exterior em 2023, de acordo com os últimos dados disponíveis.
Mas, à medida que a Coreia do Sul começa a abordar esse capítulo sombrio do seu passado, pessoas adotadas e pais biológicos como Han continuam a lutar contra o trauma.
Após o primeiro reencontro, Han e Kyung-ha têm se esforçado para manter uma conexão próxima.
Além de morarem em lados opostos do mundo, a filha esqueceu a maior parte do que sabia de coreano, já Han tem pouco conhecimento de inglês.
Elas mantêm contato por mensagens de texto ocasionalmente, e Han passa duas horas por dia estudando inglês.
“Mesmo tendo encontrado minha filha, não sinto que a encontrei de verdade. Tudo o que sei é onde ela está, mas de que adianta isso, se não conseguimos nem nos comunicar?”, ela reflete.
“Minha vida inteira foi arruinada… nenhum dinheiro jamais compensará o que perdi.”