‘Robinson Crusoé gay’: a trágica história real do marinheiro abandonado em uma ilha para morrer
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- Author, Kaine Pieri
- Role, BBC World Service
O passado está igualmente permeado de repreensões cruéis. Em um caso notável do século 18, um holandês foi abandonado em uma ilha deserta — uma história quase perdida no tempo, até ser reconstruída por dois historiadores.
Trezentos anos atrás, Leendert Hasenbosch escreveu estas palavras depois de ser abandonado na Ilha de Ascensão, um ponto remoto de afloramento vulcânico no Atlântico, a cerca de 1.540 quilômetros da costa da África e 2.300 quilômetros da América do Sul:
“Sábado, 5 de maio de 1725.
Por ordem do comandante e dos capitães da Frota Holandesa, eu, Leendert Hasenbosch, fui deixado nesta ilha desolada, para minha grande aflição.”
Ao escrever essas primeiras palavras em seu diário, Hasenbosch dava início ao capítulo final da sua vida, uma história que permaneceria desconhecida por séculos se não tivesse sido redescoberta.
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No século 18, histórias de náufragos faziam sucesso. Poucos anos antes, Robinson Crusoé, personagem criado pelo escritor inglês Daniel Defoe, e inspirado em uma história real, havia capturado a imaginação dos leitores.
Mas o destino de Hasenbosch era único. Segundo o historiador Elwin Hofman, Hasenbosch não foi parar na ilha de Ascensão por acidente: ele foi deixado lá deliberadamente, condenado como um “sodomita”, termo criminal usado naquela época para atos praticados por pessoas do mesmo sexo.
O marinheiro abandonado
A história de Hasenbosch veio à tona pela primeira vez em janeiro de 1726, quando um grupo de marinheiros britânicos desembarcou na ilha de Ascensão e encontrou uma tenda improvisada. Dentro dela havia um diário, mas sem qualquer sinal de quem era o autor.
O diário foi levado pelo grupo de volta à Inglaterra, onde foi traduzido e publicado de forma sensacionalista em várias edições, incluindo uma intitulada Sodomy Punished (Sodomia Punida, na tradução livre para o português).
Embora essas publicações tenham preservado fragmentos da história de Hasenbosch, seu nome foi apagado, fazendo dele um exemplo anônimo usado para advertência moral.
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Leendert Hasenbosch nasceu em 1695, em Haia, e era filho único de Johannes Hasenbosch e Maria van Bergende.
Depois da morte de sua mãe, seu pai se mudou para Batávia (hoje, Jacarta), enquanto Leendert ficou.
Aos 18 anos, ele ingressou na Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC, sigla em inglês), começando como soldado e mais tarde alcançando o posto de contador de confiança.
A VOC, considerada a primeira corporação multinacional do mundo, exercia um imenso poder comercial na Ásia, mas seus trabalhadores viviam condições de trabalho extremamente duras.
Por quase uma década, Leendert serviu em postos da VOC em Batávia e Cochim (hoje Kochi, na Índia). Até que, em outubro de 1724, por razões desconhecidas, ele embarcou rumo à Holanda, uma viagem de volta para casa que ele nunca completou.
Carne de tartaruga, sangue e urina
Em algum momento durante a viagem, Hasenbosch foi acusado de somodia, considerada um dos pecados mais graves da época.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais costumava punir esse tipo de acusação com execução, mas, no caso dele, a sentença foi o abandono.
No dia 5 de maio de 1725, Hasenbosch foi abandonado na ilha de Ascensão com uma tenda, uma bíblia, algumas sementes e um barril de água quase vazio.
No primeiro mês, ele explorou a ilha árida em busca de água potável e rezou para ser resgatado. Sua solidão logo se tornou insuportável. Ele tentou domesticar um pássaro para ter uma companhia, mas o animal morreu.
Também plantou cebolas, ervilhas e feijões, mas da terra não nascia quase nada.
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Em junho, Hasenbosch começou a ter alucinações e visões. Segundo ele, um dos espíritos “era um homem que eu conheci uma vez e que ficou comigo por um tempo”.
Ainda não se sabe ao certo se essas palavras foram realmente escritas por ele ou se foram adicionadas pelas edições britânicas para dar mais drama à história.
Como a única fonte natural de água na ilha — conhecida como Dampier’s Drip — secou, Hasenbosch foi ficando fraco. Sem forças para caçar cabras e com ratos comendo o pouco que conseguia plantar, ele passou a adotar medidas desesperadas.
Eu capturei uma tartaruga grande e bebi quase um quarto do sangue dela…eu bebi minha própria urina”
Em outubro, ele mal se mantinha vivo, sobrevivendo de carne de tartaruga, sangue e urina. As últimas anotações em seu diário, datadas de 14 de outubro de 1725, são inquietantes:
“Eu vivi aqui da mesma forma que antes.”
Descobrindo a história
Por mais de dois séculos, a história de Hasenbosch foi parcialmente esquecida. As publicações britânicas de Sodomia Punida (1726) ou Uma Relação Autêntica (1728) preservaram partes de seu sofrimento, mas escondiam sua identidade.
Em 1990, o historiador holandês Michiel Koolbergen encontrou uma rara edição de Uma Relação Autêntica, em inglês, no Museu Marítimo de Amsterdã. O livro contava a história da vida real de um ‘Robinson Crusoé holandês’, que tinha sido abandonado em uma ilha pelo crime de sodomia.
Intrigado, ele mergulhou nos arquivos da VOC e lá descobriu o nome de Hasenbosch.
Uma anotação arrepiante no registro de salários da VOC confirmou o destino do holandês: “Em 17 de abril de 1725, a bordo do Prattenburg, foi sentenciado a ser abandonado, sendo um vilão, na ilha de Ascensão ou em qualquer outro lugar, tendo sido seu salário confiscado”.
Koolbergen publicou suas descobertas em 2002, com o livro Een Hollandse Robinson Crusoe (Robinson Crusoé holandês, na tradução livre para o português), mas acabou morrendo de câncer pouco antes da obra ser lançada.
Três anos depois, o historiador e escritor Alex Ritsema esbarrou no trabalho de Koolbergen em uma livraria em Deventer.
Sendo um colecionador de histórias sobre ilhas, Ritsema ficou cativado e, em 2011, publicou A Dutch Castaway on Ascension Island (Um náufrago holandês na Ilha de Ascensão, na tradução livre para o português), trazendo a história de Hasenbosch — há muito tempo enterrada — aos leitores de língua inglesa.
Ele dedicou seu livro a “dois homens holandeses que morreram cedo demais: Leendert e Michiel”. Alex Ritsema também faleceu tragicamente de câncer em 2022.
Hoje, Hasenbosch, Koolbergen e Ritsema permanecem ligados através dos séculos — três homens holandeses cujas vidas se entrelaçaram no esforço de garantir que a história de Leendert não se perdesse.
‘Não somos mais invisíveis’
O sofrimento de Leendert Hasenbosch poder parecer distante, mas as forças por trás de sua perseguição continuam familiares.
Segundo o historiador Elwin Hofman, na Holanda, no século 18, a sodomia era geralmente ignorada ou um silenciosamente tolerada, até que uma percepção de “crise da masculinidade” após derrotas militares desencadeou uma onda de perseguição. Os sodomitas passaram a ser bodes expiatórios para o declínio da sociedade.
“Havia essa sensação de declínio, e a solução encontrada foi uma perseguição mais severa aos sodomitas”, explica.
“Isso nos serve de alerta nos dia de hoje. Em tempos de crise, há o risco de tentarmos restaurar a masculinidade punindo a comunidade LGTBQIA+ de forma mais dura.”
Apenas cinco anos depois da morte de Hasenbosch, os julgamentos em Utrecht por sodomia resultou na acusação de cerca de 300 pessoas. Muitas delas foram executadas publicamente, com penas que variavam de queima na fogueira a estrangulamento, até que a lei foi finalmente abolida em 1803.
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Atualmente, os ecos dessa estratégia de bode expiatório são visíveis no crescimento de leis anti-LGBTQIA+ em países como Rússia, Uganda e Polônia, frequentemente apresentadas como uma forma de proteger “valores tradicionais”.
Trump também assinou uma ordem reconhecendo apenas dois sexos — feminino e masculino — e declarou que isso não pode ser mudado.
Leis como essa contribuem para apagar a existência de pessoas LGBTQIA+ da história, transformando suas vidas em contos de advertência, afirma Julia Ehrt, diretora executiva da Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais.
Mas ela acrescenta: “Nós sempre estivemos aqui. O esforço para excluir pessoas LGBT da sociedade ‘respeitável’ pode estar tão forte quanto nunca, mas não somos mais invisíveis”.